(Como irão ver o texto começa com uma evocação, isto parece ser
necessário quando o escritor desconfia que o sucesso, ou o inevitável
fracasso, passa por outras palavras ditas com algum ilusionismo da
certeza.
É certo que se aproxima um périplo; uma viagem
muito idêntica à de Hanão, bordejando a praia africana, fazendo porto
quando é preciso mantimentos. É nesse tipo de expedições que se
observam os movimentos mais imperceptíveis, aqueles que participam da
translação e rotação e que parecem fixar o mundo aos pés que usamos
para caminhar. Recordo um dos episódios finais da viagem de Hanão: «...
navegamos em frente, ao longo da costa durante cinco dias, no fim dos
quais chegamos a um grande golfo, que os nossos intérpretes disseram
chamar-se o Corno do Ocidente. Nele havia uma grande ilha e na ilha um
lago salgado e neste uma outra ilha. Tendo desembarcado, não vimos,
durante o dia, nada senão floresta; mas durante a noite porém,
acenderam-se inúmeros fogos e ouvimos o som de flautas, de címbalos e
de tambores e gritos incontáveis. O medo apoderou-se de nós e os
adivinhos aconselharam-nos a abandonar a ilha» Pode-se perceber por
este excerto o que é um explorador: aquele que perseguindo o
desconhecido no mais alto grau sempre encontra um argumento para nunca
o olhar de frente. Afinal, para que serve o misterioso se não puder
continuar a sê-lo?)
---------------------------------------
Leitor,
desta vez está um espírito ao meu lado; um espectro, não tem sombra,
sussurra, fala-me ao ouvido... Ouço então esse sopro estrangeiro: «Onde estão as coisas que não as vejo?»
Mas
pode um espírito ter olhos? Que aspiração é esta? Pode, porventura, um
fantasma discorrer sobre as «coisas» quando se encontra do lado de lá,
no reino dos mortos, entre os não-seres, sendo o «invisível», não sendo
sequer uma coisa em si?
É difícil distinguir este espectro, suspeito então destas palavras:
«Digo-te,
há uma lembrança do mundo. Deixa-me falar. As coisas ainda existem, o
mundo está cheio delas, transborda, mas sempre quisemos separar uma
coisa da outra, separar o mundo do que lhe é próprio, o de ser
infinitamente abundante, mas, ainda assim, insuficiente.
Insuficiente para quê?
Para “o ser” vibrar inquestionavelmente sem se destruir.»
Assim,
quando um espectro fala, manifesta-se por intermédio de um cúmplice,
porque essa voz original e remota é sem som e não pode ser dita por
quem de direito, porque aí não há próprio. Essa voz vem da gruta
construída entre a quantidade inefável de mundo (o efeito de este ser
vasto e não haver expressão disso) e o não-ser; para se ouvir tem de
ser prestidigitada e é desta forma que os mortos enviam versos da
eternidade, profecias, divinação, presságios de boa e a má sorte.
No
oráculo de Orfeu, em Lesbos, é a própria cabeça de Orpheu, decapitada e
incrustada num buraco na rocha, que diz os augúrios. A história é bem
conhecida: depois de as Bacantes terem cortado Orfeu aos bocados, a
cabeça partiu a boiar, cantando pelo Mediterrâneo fora até à ilha de
Lesbos, acabando por aí ficar em récitas proféticas.
Para
comunicar com o além, Sinan Raschid-Eddin, chefe dos Islamitas da
Síria, escondia um discípulo debaixo de um altar deixando-lhe apenas a
cabeça de fora. Assim, dando a ilusão de que a cabeça assentava num
prato de bronze, fazia crer que esta falava milagrosamente em nome dos
mortos prometendo a felicidade do outro mundo a todos os que estivessem
presentes.
Os sacerdotes do oráculo de Avernus, na gruta onde
se faziam as profecias, projectavam fantasmas nas paredes usando
lamparinas e silhuetas de madeira. As sombras dos mortos compunham uma
alegoria aterradora que iniciava o proponente do oráculo no ambiente do
submundo.
Aparenta haver um sentido abissológico nisto, o
ventriloquismo parece proceder à montagem de um desligamento, uma certa
sutura descosida de duas ordens distintas: a vida e a morte. Afinal, o
que é o ventriloquismo senão fingir o ser no não-ser, pôr a falar
o-que-não-é, retomar o trabalho do insidioso, do falso, dando voz ao
inanimado retalhando o significado perdido das coisas e do mundo,
fazendo sentido do sem-sentido.
Evoquemos pois os mortos,
convidamo-los a falar do que não podemos, desta vez, segurando nós a
marionete das sombras, já que sob esse véu nada se permite reconhecer
para além do indiscernível.
1. «Existe uma lembrança de um outro mundo.» Que revés, afinal a Terra é oca!
O
princípio é nas cavernas. Os primitivos espreitam da gruta através dos
mitos. É por esse túnel que os mortos ancestrais vociferam, dizem: «a
superfície é uma ilusão, há um sentido a escavar nas coisas, veremos
que tudo o que pensamos sobre as coisas se desfaz assim que habitarmos
o oco das montanhas». E segue essa memória estrutural, que aliás todas
as culturas chamadas primitivas partilham, que em tempos o Homem foi
mais verdadeiro e que, algures na História, o Homem foi mais poderoso e
as fogueiras mais altas. É um reino irrecuperável. Sempre que Orfeu
pensa em olhar para trás nos túneis assombrados do submundo, sabe que
está em perda de Eurídece. Eis o que nos diz o fantasma: não existe
mais acesso à gruta das coisas, ao real. Nessa regressão, estamos como
numa fantasia primordial, como na visão da cópula parental, perante uma
lembrança fantasmática cuja reconstituição é fabricada por não haver aí
significação, a gruta desse paraíso perdido é um éden obstétrico onde
Caronte, o barqueiro, executa a travessia em direcção ao lado de lá que
não é margem nenhuma, é sem-margem. No plano pré-simbólico a vida tem
como que dois úteros e um canal fantástico que, tanto no princípio como
no fim, testemunha uma partida/chegada (a luz ao fundo do túnel). Esse
outro, essa margem nenhuma, oferece ao existente o-que-pode-ser e tudo
converge abissologicamente para tentar explicar esse mistério. Resta,
pois,uma retórica pergunta: como falar com a voz no enigma?
Ossendowski
(1876-1945) relata como inesperadamente quando seguia pelas planícies
da Mongólia com uma caravana, esta deteve-se no meio do nada; os
indígenas pararam, ajoelharam-se e começaram a rezar: «Om! Mani padme
Hung!» Impressionado, Ossendowski aborda o guia da caravana:«Reparou?»,
perguntou o mongol. «Como os camelos mexeram as orelhas com medo? Como
a manada de cavalos na planície se pôs em atenção e como o rebanho de
ovelhas e o gado se deitou no chão? Reparou que os pássaros não voaram,
as marmotas não corriam e os cães não ladravam? O ar tremeu levemente e
trouxe de longe a música de uma canção que penetrou no coração dos
homens da mesma maneira que nos animais e nos pássaros. A terra e o céu
deixaram de respirar. O vento não soprou e o sol não mexeu. (…) Todas
as criaturas vivas ficaram com medo e foram involuntariamente atiradas
para a prece à espera da sua sorte. Foi o que aconteceu mesmo agora. E
sempre assim foi desde que o rei do mundo no seu palácio subterrâneo
reza e procura o destino de todos os povos na Terra.» Na estepe
mongol, como no deserto de Gobi para onde viajou Gurdjieff no princípio
do século, existe abaixo da superfície uma força espiritual
extraordinária. Aí jaz o reino de Agharti, terra mitológica de um povo
ancestral cuja lenda remete para diversas versões e fontes. O «rei do
mundo» segundo o texto de Ossendowski representa para os mongóis e os
tibetanos o líder místico da Terra Oca. A sua relação com o destino dos
homens parece ser a de um representante de Deus na terra, uma espécie
de sumo- sacerdote, um semideus. O acontecimento narrado por
Ossendowski está articulado com o imaginário de um país subterrâneo na
mesma linha que a Atlântida do Timeu, mas imbuído de um significado
inverso, porque em Agarthi tudo é escuridão; fala-se aqui de um
invisível subterrâneo inacessível, um arcano que é ao mesmo tempo a
fechadura e a chave de uma montanha inviolável e por isso, também, o
mistério de um acesso impossível (recorde-se a Patafísica de Daumal e o
estratagema de Sogol para chegar ao Monte Análogo). Agharti é o que
podemos chamar de dimensão paralela, tudo aí se passa sem memória
justapondo-se claramente à civilização, aos códigos, às hierarquias e à
História.
Ossendowski, como descreve, testemunha o «nascimento
do mistério». Esse inquietante sinal subterrâneo, que ele próprio
apenas assiste à recepção, parece não existir. Qualquer coisa está
desconexa no sentido, é isso que faz Ossendowski não perceber a
ocorrência. O sinal é a ausência de sinal. Aparentemente, algo não
natural, mas que ao mesmo tempo não é nada, é interpretado pelos
mongóis como um cântico. Esse inaudível paralisa, pausa a celeridade,
cessa o movimento. Procede daí a intensidade de uma desaceleração no
tempo; a sensação intransmissível de que o tempo negoceia com a
presença das coisas o temor da sua perda; que os corpos subtraem-se
prisioneiros da sua profundidade assim que seja possível suspender o
tempo. Mas curiosamente esse mesmo acontecimento produz a revolução do
mundo. Aristóteles, na Metafísica, atribui a um motor imóvel a
causa de todo o movimento e mudança: «O princípio e o primeiro dos
seres é imóvel tanto absolutamente como relativamente, e produz o
movimento primeiro, eterno e único.» À imagem de numa roda
transcendente cujo eixo imóvel acelera todas as causas indirectamente,
como se o pensamento divino, sempre igual a si mesmo, portanto
imutável, fosse a potência da mudança do mundo visível. Este lugar que
se mantém fixo, como um pólo da Terra, estático, todavia, propulsor da
mecânica primordial, do dia e da noite, surge em várias culturas como Axis Mundis,
absorvendo o encontro polissémico entre o céu e a terra, o útero, o
umbigo e o falo; normalmente é o lugar de um grande simbolismo onde os
seres redescobrem a sua manifestação original: onde repousam
sustentadamente a sua forma no útero, como concepção, reencontram o
trauma do nascimento e assistem ao paroxismo da morte. Nesse lugar
imóvel, a vida como a conhecemos também ela sustém-se, pára, porque se
encontra no centro do cosmos. O «sol deixa de mexer» e o indecidível
revela o tempo: como «viajar sem movimento».
Compreende-se que
essa dimensão paralela seja debaixo da terra onde tradicionalmente os
mortos são sepultados, porque esse cântico não se dirige à superfície e
aos homens, mas, entendamos bem, às coisas, aos seres que não abdicam
da sua solidez; uma solidez de cadáver, que espreita todas as coisas,
como se algo as tivesse abandonado à existência deixando os entes
desamparados, desprotegidos da intempérie da multiplicidade.
Efectivamente, é a quantidade e a extensão do mundo que cega o Homem.
Aí na profusão sente-se o inominável. O vácuo que pertence a Erebus
lança um véu de incerteza sobre o que é e o que jamais será na imersão
do genérico entre o informe e o descaracterizado. Mas o limite dos
objectos não pode senão emergir do oco indiscernível, dessa cavidade
cadavérica que simultaneamente lança o múltiplo no mundo e o devolve à
sua solidão. A gruta, o oco das coisas, é ao mesmo tempo a separação
entre elas, a sua diferença interna e a sua concretude. De outra
maneira não haveria a sensibilidade dos sólidos e como consequência não
haveria o número.
«Os homens-ocos moram na pedra;
circulam nela como cavernas viajantes. No gelo, passeiam-se como bolhas
com forma de homens. Mas não se aventuram no ar, porque seriam levados
pelo vento.» É também por essa razão que as pedras marcam as
sepulturas, não irão os espíritos dissolverem-se na atmosfera. «Nada de
mais imediato e mais autónomo na plenitude da sua força, nada de mais
nobre e mais terrificante do que o majestoso rochedo, o bloco de
granito audaciosamente erecto. Antes de mais, a pedra é. Ela permanece
sempre igual a si própria e subsiste. E, o que é mais importante, ela
serve para bater. Antes mesmo de pegar nela para bater, o homem vai de
encontro a ela. Não necessariamente com o corpo, mas pelo menos com a
vista.» O objecto lítico sacraliza de uma maneira particular: a sua
primeira função é exaltar aquilo que é obstinadamente, sem dissipação,
sem ruína; aquilo que no nevoeiro não se confunde com o clima, com o
temperamental, com a meteorologia. Está aí definitivo, marcando também
o transitório, o túmulo, sob a forma de um aviso, dizendo: «esta gruta
está selada». A pedra é erigida nessa transgressão da natureza, fixando
a banalidade da paisagem, segredando à sepultura a diferença entre o
ser e o não-ser. A voz da coisa lítica é a autoridade do sem tempo. A
pedra é aqui simultaneamente o refém e o resgate do tempo, aludindo,
pela sua solidez, à separação do tudo mais não assinalável na profusão
do mundo.
Bergson insiste que o pensamento apenas se debruça
sobre coisas sólidas como consequência de uma cilada do real. Essa
observação prende-se com o facto de o entendimento lidar com a fluidez
da realidade de forma extática, extraindo as impressões extemporâneas
do movimento e da mudança como imagens fixas, precisamente enquanto
estados solidificados, sem devir, contrariando dessa maneira a natureza
do tempo. Como refere, é Zenão que dá conta dessa inadequação do tempo
e da consciência da «duração». Prova-se aqui uma disjunção, não porque
Zenão prove uma coisa e Bergson o contrário, mas porque se observa que
não há relação entre o tempo e a sua representação: o que é a «duração»
no sentido de Bergson senão o nome do insidioso temporal e insidioso a
coisa que não é, ou seja, que não tem um estatuto metafísico
representável. A morte, como o tempo, são noções sem coisalidade
alguma. Alberto Caeiro refere-se com aversão a essas noções imateriais:
Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito, não creio na eternidade
Creio que o espaço começa numa parte e numa parte acaba...”
A
solidez serve-se então da circustância do limite, da noção de forma.
Todavia, o que funda a forma deverá ser o informe e, de facto, só o que
funda existe no real, mas indiscriminadamente e de forma insidiosa.
Segue que a profusão do mundo é também o que existe aí, obstinadamente,
numa-margem-que-não-é. O tempo e a morte alinham a partir do seu teor
indiferenciado com real retornando depois como assombração, espiando o
desconhecido como se o real não fosse mais do que uma cilada.
Insidioso é o que para a Abissologia pode descrever esta ratoeira:
1. Que o tempo jamais «dura» durando efectivamente.
É
preciso dizer que para o ser é impossível participar no movimento
descrito pela relatividade que é a dobra do tempo. Isto é, para o ser é
impossível frequentar o tempo de forma a repeti-lo – parece que só o
não-ser (e aí de forma inadequada) reconhece essa impropriedade. Isto
quer dizer que não existem dois momentos iguais no tempo para o ser,
que o ser no tempo é incoincidente. É essa a sua natureza. Para a
Abissologia essa lei traduz-se por uma prescrição categórica: pensar o
tempo movente é insustentável, a imobilização é sempre o que resta de
tal operação. De modo que, o que se afigura como possível é descrever o
movimento enquanto somos transportados pela sua desaceleração,
procurando a sua aproximação ao extático, revelando a intensidade dos
movimentos mínimos, aqueles que sempre se afiguram como o incondicional
do próprio movimento e do tempo.
2. Que as coisas são como cadáveres abandonados no mundo.
Não
incorremos num erro grave se afirmarmos que as coisas são melhor
entendidas na sua acepção comum, isto é, na sua acepção objectual. As
coisas são a interacção com o mundo, na medida em que o fazer sentido
do mundo provém dessa capacidade de solidificação das formas: as coisas
sugerem ao homem um telos, uma finalidade, é por isso que se equiparam
a objectos. Esta é, em certa medida, a razão da sua reificação, não só
das coisas materiais como das coisas imateriais. Para o Abissologista,
a coisalidade é ateleológica, não se pode aí encontrar mais do que
aquela existência grave dos minerais que têm origem no meteorito, a
saber, que o existente é lançado para a sua propriedade finita como uma
interrupção duma viagem cujo termo inicial é o não-ser, isto é, o
infinito vazio do espaço sideral.
3. Que a vastidão do mundo é tanta que nos cega.
Retomando
o grande anátema Abissologista: «o mundo sempre se manifesta segundo
alguns aspectos indiscerníveis», podemos dizer que o visível está em
lapso. Que, então, ver intimamente o mundo é apreciar a sua ausência de
nexo, verificar que na sua essência este é constituído de partes que
não reportam a um todo; que não há Um e que as partes que compõem o
mundo, também elas, têm um zero indiscernível que espreita, nem que
seja a sua sombra.
4. Que a morte trabalha o tempo e as coisas
numa dimensão paralela e que esse trabalho não se vê porque é
indiscernível e não se ouve porque é inaudível.
Para o
Abissologista que se debruça no abismo que ampara o real, as coisas e o
tempo perspiram o não-ser. Existe aqui, mais do que tudo, um sentido
meteorológico; a qualidade da atmosfera, sempre incerta, exprime esse
sentimento de grande insegurança: não se adivinha o dia de amanhã. E
assim, o que naturalmente não pode ter expressão: a verdade das coisas
e do tempo, só é autorizada mediante o reconhecimento da lógica desse
inominável, o não-ser, uma vez que a propriedade do que existe é
incontestável, mas arriscada. Tal acontece porque o tempo dura
ininterruptamente, sugerindo as coisas ao mundo de uma forma
particularmente incondicional: enquanto abandonadas na vastidão cega do
múltiplo. Segue que o não-ser é assombração do real, porque é o que
sustém a presença na sua fulgurância, isto é, acontecimento e
dissipação.
5. Que na verdade todos os lugares centrifugam e há momentos ou perspectivas onde tudo parece estar parado no movimento.
Como
em Descartes, a teoria do movimento na Abissologia também tem algo de
relacional, isto é, joga-se entre o móbil e o observador. Na verdade,
sujeitando os dois à mesma velocidade produz-se no observador a noção
extática da celeridade a que ambos estão submetidos. É, porém, de todo
impossível ludibriar o movimento, o que existe neste caso é uma certa
perspectiva sobre a situação. A Abissologia chama a essa miragem do
imóvel Horizonte de Acontecimentos. Este verifica-se quando
vários acontecimentos se precipitam lentamente para a clareira de um
«buraco negro» e na aproximação desse grande não-ser, hesitam
reverberantemente a entrar na não existência.
Então, apenas se
pode desejar que, como quem põe a mão num buraco onde se julgam estar
peras, se consiga tirar a fruta sem entalar os dedos ou, como quem diz,
havemos de tirar nabos da púcara.
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2.
(Como é sabido, os intrépidos Ulisses deste mundo introduziram-se
secretamente na boca do lobo, na caverna do urso e também na jaula do
tigre. O leitor dirá: «Eles não sabem o que fazem. Existem outras
formas de alimentar o bicho, amansar a fera.» Sim, é certo, mas alguém
tem de mostrar o monstro ao mundo e saber-lhe o nome. E se isso
significa entrar no covil e perguntar-lhe, que tal se faça uma vez que
é necessário. Porém, para aqueles que pretendem voltar das profundezas
de tais lugares, uma recomendação, a curiosidade é precisamente aquilo
que faz o curioso ter pouca prudência. Nunca esquecer, pois, enquanto
se espreita o abismo, dessa parca qualidade que é a cautela.)
Da antiguidade chegam dois nomes quase esquecidos: Empédocles de Agrigento e Heróstrato de Efesos.
O
encontro desses dois nomes dá-se na loucura, num acto derrisório,
inconsequente, mas da maior consequência. Esses nomes são devolvidos
ao nosso tempo pelo rumor da não existência, isto é, uma certa
interpretação da morte voluntária onde só se pode aludir ao eco da
morte. Aqui, mais importante do que a existência em vida de Empédocles
e Heróstrato, importa a convocação da possibilidade da sua morte; a
História menciona a lenda que o pensamento tenta «forçar» em alegoria:
que ambos se lançaram no fogo divino e o que isso pode significar não
sabemos, cobre-se enigmaticamente de um desejo de infinito.
Em
356 a. C., Heróstrato incendeia o templo dedicado a Diana em Efesos e
considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo. Capturado,
Heróstrato revela sob tortura a intenção por trás do crime: aspirava a
perpetuar o seu nome próprio na História, a gravar para todo o sempre a
memória da sua vida no desastre. Porém, uma vez que o confessa, as
autoridades executam-no e proíbem a menção do seu nome.
Diógenes
Laércio conta como, no final da sua vida como filósofo, Empédocles se
atirou para dentro do Etna. São muitas as versões da morte de
Empédocles, mas quase todas aludem a um sacrifício; a ideia que nos é
transmitida, seja pela sua filosofia, seja pelos relatos, é que a sua
intenção era transformar-se num deus.
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Damnation memoriae
é a forma pela qual um nome próprio desaparece do uso e é retirado da
história. O nome proscrito dissolve-se na memória colectiva, deve-se
isso a um decreto jurídico, como acontecia em Roma, ou a um tabu,
quando certo uso do nome numa sociedade específica é particularmente
ofensivo. Frazer conta como este tabu é comum entre vários povos
primitivos. Perguntando o nome a um selvagem ele prontamente indica
outra pessoa para responder por ele, e, sem qualquer inibição, o
companheiro diz o nome do primeiro. Aparentemente, o nome não pode ser
mencionado pelo próprio, essa restrição liga o sopro ao nome através de
um vínculo material; para o primitivo esta palavra em particular, o
nome, tem um poder no real, exaura a profundidade das coisas. Quando o
nome próprio é proferido pelo mesmo, alguma parte do ser abandona o
corpo deixando-o diminuído; as palavras e os nomes não são apenas
coisas que chamam outras, que descriminam o um do diverso, são
entidades analógicas que pela mimese dão poder a quem as ouça. Assim,
se o peixe ouvir o nome do pescador consegue escapar-lhe da rede. O
poder das palavras está relacionado com o desaparecimento das coisas,
capturam a essência pela relação que o significante estabelece com o
referente inicial. Ocorre, então, que o sinal é confundido com a coisa
expropriando-a do ser. E, se a linguagem é um factor de evolução,
também, pela mesma via, os nomes afastam o homem primitivo da origem,
de um estar sem medo, do convívio harmonioso com os deuses e com a
natureza. Nesse sentido, o nome próprio pode ser o conceito mais
próximo de uma nomeação sem ambiguidade, como uma protolinguagem, em
que cada indivíduo assinala a sua diferença ontológica do outro,
todavia encontra-se também aí o primeiro passo da profanação do mundo,
da perda da imanência divina, porque afinal o mundo não tem nome
próprio e essa diferença face ao sujeito é o abismo.
O sagrado é
para o sentimento religioso a restauração do mundo apodíctico ou a via
pela qual se pode reconduzir a manifestação ao todo e a vida ao telos.
Lembre-se a carta que Freud recebe em A Civilização e o Seu Descontentamento.
Essa carta, escrita por um correspondente, argumentava contra Freud que
a fonte verdadeira da religiosidade era um sentimento de eternidade, o
sentimento de uma coisa sem limites, sem fronteiras, um «sentimento
oceânico». Existe aí essencialmente a ideia de uma pertença a um todo
original, fons e orige, inspirado pela imersão, isto é,
em que o sujeito é mergulhado no mundo vivendo a experiência desse
nascimento simultâneo: o nascimento do homem e a criação do cosmos. «A
intencionalidade decifrada na experiência do Espaço e do Tempo sagrados
revela o desejo de reintegrar uma situação primordial: aquela em que os
deuses e os antepassados míticos estavam presentes, quer dizer, estavam
em vias de criar o Mundo, ou de o organizar, ou de revelar aos homens
os fundamentos da civilização.» Trata-se aqui de reencontrar o
princípio dos tempos; a inauguração do existente no sentido do seu
acontecimento preciso, a saber, estar na presença do divino.
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O
rumor do nome de Heróstrato é o rumor da sua extinção ou o barulho
daquela que é a sua única obra: o desastre. Na verdade, a premeditação
incendiária de Heróstrato lança-o metaforicamente para o sinistro. É lá
que o fogo da extinção trabalha e fornece uma pista para o sucedido: é
o seu nome, enquanto resto, que aparece como ruína. «O seu acto pode
ser, de certa forma, comparado àquele terrível elemento da iniciação
dos Templários, que, depois de terem dado provas de serem absolutamente
crentes em Cristo [...] tinham que cuspir no crucifixo no acto da sua
iniciação. [...] O Deus em que cuspiam era a substância sagrada da
redenção. Era para o Inferno que olhavam, enquanto as bocas se enchiam
da água da blasfémia necessária. [...] Sofre como Cristo, que morre
como homem para provar que é Verbo.» A ruína é, pois, o que faz a
memória do nome, ou melhor, o que faz do nome uma memória. É o que foi
destruído e cuja existência é deixada à assombração no que aí podemos
encontrar de eterno: um acto derradeiro, uma afirmação invulnerável,
como se fosse a primeira e a última, justamente como criação e
renúncia, como Verbo.
Por sua vez, a morte de Empédocles
procura a reunião com a natureza elementar. É um desejo também de vida
porque, estando escondida a identidade de Deus (ou do Uno), o suicídio
permite reencenar o nascimento e o reencontro com o divino, isto, na
medida em que se creia no relançamento da vida depois da morte, na
reencarnação. Os Gregos têm uma noção clara do profano do mundo e da
inacessibilidade do ser. É por essa via que é forçoso encontrar as
condições de acesso ao ser, precisamente porque existe um selo de
ilusão em torno dos sentidos e da apreensão da realidade. O suicídio
para Empédocles apresenta a possibilidade de se ligar ao gérmen; a
morte é aqui também uma fusão com a lava, com o pré-formal. O que está
em causa é uma deificação que opera também numa redução ao
indiferenciado, de forma que a morte de Empédocles regista essa imersão
também no-antes-das-coisas, no fluxo eterno, cujo nome (im)próprio só
admite extemporaneamente ser um: «Para que houvesse um nome
verdadeiramente próprio, seria preciso que não houvesse senão um único
nome próprio, que não seria então nem mesmo um nome mas pura convocação
do outro puro, vocativo absoluto que nem mesmo chamaria, pois a chamada
implica a distância e diferença [...] e se quisermos chamar essa
«origem» pelo nome de Deus, o melhor nome próprio, o mais próprio,
arrastaremos Deus para a violência da diferença, faz-se dele o nome
deste que me desapropria de mim mesmo...»
Tanto Empédocles como
Heróstrato acedem ao infindável perseguindo essa conclusão, a morte,
cujo acto representa um meio para um fim incerto. Severamente, a
separação da morte ou a inexistência do não-ser convida a uma relação
não mediada com o eterno. A memória infinita de um nome divino – Heróstrato-Empédocles
–, ao chegar a nós, tem a marca de uma ruína construída sobre o
inominável. Pascal argumenta que, no que diz respeito a Deus, nada é
seguro, não obstante, o infinito exige uma aposta: «Conhecemos, pois, a
existência e a natureza do finito, porque somos finitos e temos uma
extensão como ele. Conhecemos a existência do infinito e ignoramos a
sua natureza, porque ele tem extensão como nós, mas não limites como
nós. [...] Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, uma vez
que, não tendo nem partes nem limites, não tem qualquer comparação
connosco. Somos, portanto, incapazes de saber o que ele é e se existe.
[...] E digamos: «Deus existe ou não existe.» Mas para que lado nos
havemos de inclinar? A razão nada pode determinar. Há um caos infinito
que nos separa de Deus. Joga-se um jogo no extremo desta distância
infinita, onde surgirá cruzes ou cunhos. Que apostareis?»
Claro
está, que em vida, a insistência na eternidade termina na morte e
podemos pensar que o niilismo mais exaurível passa por toda a vontade
do eterno. Nietzsche atribui um sentido particular a isso. Mas
Heróstrato-Empédocles parecem compartilhar esse desejo do infinito com
um princípio de negação que não deixa de ser afirmativo; a insanidade
de um louco faz com que entre em jogo com uma maquia que não pode
pagar: o louco aposta sempre a vida-ou-morte. Como veremos, existe aí
algo cuja urgência é da maior autorização do finito, do irredutível.
Esse é o balanço da aposta, o seu preço é uma eternidade diluída no
rumor fantasmático, sem nome, sem detalhe, desapropriado, mas que
retorna sob as mais diversas formas.
Blanchot identifica, a propósito da tragédia de Holderlin, A Morte de Empédocles,
aquilo que, mais tarde, o próprio autor da tragédia chama «a inversão
categórica». Em conformidade com o romantismo e o tema da nostalgia da
natureza, A Morte de Empédocles explora a perda irremediável de
uma pureza essencial originária. Nos textos mais tardios de Holderlin,
depois das primeiras crises mentais, este tema é completamente
substituído. O irremediável passa a significar que os deuses, não
estando mais presentes, demonstram quanto engano existe nessa
nostalgia: que não há todo algum para o qual a morte possa remeter; que
o eterno é um ardil do próprio homem. Neste sentido, a Natureza não
tolera continuar a ser a manifestação do divino. Confirma-se aqui uma
insurreição que, todavia, abre um caminho ao poeta: «Hoje os deuses
foram embora; estão ausentes, infiéis. E o homem tem de compreender o
sentido sagrado da infidelidade divina, não opondo-se a esta, mas
fazendo-a ele mesmo. «Num momento desses», diz Holderlin, «o homem
esquece-se de si e esquece-se de Deus; vira as costas como um traidor,
mas faz isso de uma forma sacra».
O que significa trair os deuses de uma forma sacra? A chave aparece numa versão do poema Mnemosyne, de Holderlin:
Eles não conseguem fazer tudo,
Os Celestiais. Os mortais tocam
O abismo. E assim com eles
A inversão é desempenhada.
Significa que o sagrado é
também uma vocação que se retém aí numa suspensão sobre o abismo, na
sua borda, debruçado cautelosamente na caverna onde os titãs
agrilhoados desaparecem do mundo. Nesta circunstância o poeta
retrai-se, o todo já não o inspira; a poesia oferece-se antes ao
sacrifício da contenção, o trabalho do poeta é o labor do finito
ladeado por infindáveis ausências – e é isso o que podemos entender por
«inversão categórica», o sagrado como abandono. De qualquer maneira,
não há outra forma de explicar a existência que não seja essa: a
explicação do puro desamparo, aquele que não se deve a nenhuma entidade
que não seja a vinda ao mundo, que não se deve ao nascimento. No
momento em que o Homem compreende a grande consequência da mortalidade
apercebe-se que não tem deuses: quando morre está só e o real dessa
solidão é anónimo, não se revela aí o divino ou a profanação da vida,
mas a sacralidade da morte. Segue, ainda assim, que o nome do morto tem
um agravo: o cadáver agita-se ao som do seu nome e esta é a expressão
maior do ventriloquismo, a ocasião em que os fantasmas ainda falam: «É
impressionante que nesse preciso momento em que a presença do cadáver é
a presença do desconhecido à nossa frente, o defunto enlutado começa a
parecer consigo mesmo.» A mesmidade, o próprio, retorna sem
nome, apenas assombração das coisas abandonadas, separadas dos deuses e
dos homens pela sua profundidade, esse segredo concreto, a saber, que
todas as coisas vivas e mortas tocam o não-ser, que o mais real do
mundo acontece quando a existência é tomada entre o desconhecimento do
que é próprio e a propriedade das coisas. Topo