(Como irão ver o texto começa com uma evocação, isto parece ser necessário quando o escritor desconfia que o sucesso, ou o inevitável fracasso, passa por outras palavras ditas com algum ilusionismo da certeza.

É certo que se aproxima um périplo; uma viagem muito idêntica à de Hanão, bordejando a praia africana, fazendo porto quando é preciso mantimentos. É nesse tipo de expedições que se observam os movimentos mais imperceptíveis, aqueles que participam da translação e rotação e que parecem fixar o mundo aos pés que usamos para caminhar. Recordo um dos episódios finais da viagem de Hanão: «... navegamos em frente, ao longo da costa durante cinco dias, no fim dos quais chegamos a um grande golfo, que os nossos intérpretes disseram chamar-se o Corno do Ocidente. Nele havia uma grande ilha e na ilha um lago salgado e neste uma outra ilha. Tendo desembarcado, não vimos, durante o dia, nada senão floresta; mas durante a noite porém, acenderam-se inúmeros  fogos e ouvimos o som de flautas, de címbalos e de tambores e gritos incontáveis. O medo apoderou-se de nós e os adivinhos aconselharam-nos a abandonar a ilha» Pode-se perceber por este excerto o que é um explorador: aquele que perseguindo o desconhecido no mais alto grau sempre encontra um argumento para nunca o olhar de frente. Afinal, para que serve o misterioso se não puder continuar a sê-lo?)

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Leitor, desta vez está um espírito ao meu lado; um espectro, não tem sombra, sussurra, fala-me ao ouvido... Ouço então esse sopro estrangeiro: «Onde estão as coisas que não as vejo?»

Mas pode um espírito ter olhos? Que aspiração é esta? Pode, porventura, um fantasma discorrer sobre as «coisas» quando se encontra do lado de lá, no reino dos mortos, entre os não-seres, sendo o «invisível», não sendo sequer uma coisa em si?

É difícil distinguir este espectro, suspeito então destas palavras:

«Digo-te, há uma lembrança do mundo. Deixa-me falar. As coisas ainda existem, o mundo está cheio delas, transborda, mas sempre quisemos separar uma coisa da outra, separar o mundo do que lhe é próprio, o de ser infinitamente abundante, mas, ainda assim, insuficiente.

Insuficiente para quê?

Para “o ser” vibrar inquestionavelmente sem se destruir.»

Assim, quando um espectro fala, manifesta-se por intermédio de um cúmplice, porque essa voz original e remota é sem som e não pode ser dita por quem de direito, porque aí não há próprio. Essa voz vem da gruta construída entre a quantidade inefável de mundo (o efeito de este ser vasto e não haver expressão disso) e o não-ser; para se ouvir tem de ser prestidigitada e é desta forma que os mortos enviam versos da eternidade, profecias, divinação, presságios de boa e a má sorte.

No oráculo de Orfeu, em Lesbos, é a própria cabeça de Orpheu, decapitada e incrustada num buraco na rocha, que diz os augúrios. A história é bem conhecida: depois de as Bacantes terem cortado Orfeu aos bocados, a cabeça partiu a boiar, cantando pelo Mediterrâneo fora até à ilha de Lesbos, acabando por aí ficar em récitas proféticas.

Para comunicar com o além, Sinan Raschid-Eddin, chefe dos Islamitas da Síria, escondia um discípulo debaixo de um altar deixando-lhe apenas a cabeça de fora. Assim, dando a ilusão de que a cabeça assentava num prato de bronze, fazia crer que esta falava milagrosamente em nome dos mortos prometendo a felicidade do outro mundo a todos os que estivessem presentes.

Os sacerdotes do oráculo de Avernus, na gruta onde se faziam as profecias, projectavam fantasmas nas paredes usando lamparinas e silhuetas de madeira. As sombras dos mortos compunham uma alegoria aterradora que iniciava o proponente do oráculo no ambiente do submundo.

Aparenta haver um sentido abissológico nisto, o ventriloquismo parece proceder à montagem de um desligamento, uma certa sutura descosida de duas ordens distintas: a vida e a morte. Afinal, o que é o ventriloquismo senão fingir o ser no não-ser, pôr a falar o-que-não-é, retomar o trabalho do insidioso, do falso, dando voz ao inanimado retalhando o significado perdido das coisas e do mundo, fazendo sentido do sem-sentido.

Evoquemos pois os mortos, convidamo-los a falar do que não podemos, desta vez, segurando nós a marionete das sombras, já que sob esse véu nada se permite reconhecer para além do indiscernível.


1.    «Existe uma lembrança de um outro mundo.»

Que revés, afinal a Terra é oca!

O princípio é nas cavernas. Os primitivos espreitam da gruta através dos mitos. É por esse túnel que os mortos ancestrais vociferam, dizem: «a superfície é uma ilusão, há um sentido a escavar nas coisas, veremos que tudo o que pensamos sobre as coisas se desfaz assim que habitarmos o oco das montanhas». E segue essa memória estrutural, que aliás todas as culturas chamadas primitivas partilham, que em tempos o Homem foi mais verdadeiro e que, algures na História, o Homem foi mais poderoso e as fogueiras mais altas.  É um reino irrecuperável. Sempre que Orfeu pensa em olhar para trás nos túneis assombrados do submundo, sabe que está em perda de Eurídece. Eis o que nos diz o fantasma: não existe mais acesso à gruta das coisas, ao real. Nessa regressão, estamos como numa fantasia primordial, como na visão da cópula parental, perante uma lembrança fantasmática cuja reconstituição é fabricada por não haver aí significação, a gruta desse paraíso perdido é um éden obstétrico onde Caronte, o barqueiro, executa a travessia em direcção ao lado de lá que não é margem nenhuma, é sem-margem. No plano pré-simbólico a vida tem como que dois úteros e um canal fantástico que, tanto no princípio como no fim, testemunha uma partida/chegada (a luz ao fundo do túnel). Esse outro, essa margem nenhuma, oferece ao existente o-que-pode-ser e tudo converge abissologicamente para tentar explicar esse mistério. Resta, pois,uma retórica pergunta: como falar com a voz no enigma?

Ossendowski (1876-1945) relata como inesperadamente quando seguia pelas planícies da Mongólia com uma caravana, esta deteve-se no meio do nada; os indígenas pararam, ajoelharam-se e começaram a rezar: «Om! Mani padme Hung!» Impressionado, Ossendowski aborda o guia da caravana:«Reparou?», perguntou o mongol. «Como os camelos mexeram as orelhas com medo? Como a manada de cavalos na planície se pôs em atenção e como o rebanho de ovelhas e o gado se deitou no chão? Reparou que os pássaros não voaram, as marmotas não corriam e os cães não ladravam? O ar tremeu levemente e trouxe de longe a música de uma canção que penetrou no coração dos homens da mesma maneira que nos animais e nos pássaros. A terra e o céu deixaram de respirar. O vento não soprou e o sol não mexeu. (…) Todas as criaturas vivas ficaram com medo e foram involuntariamente atiradas para a prece à espera da sua sorte. Foi o que aconteceu mesmo agora. E sempre assim foi desde que o rei do mundo no seu palácio subterrâneo reza e procura o destino de todos os povos na Terra.»  
Na estepe mongol, como no deserto de Gobi para onde viajou Gurdjieff no princípio do século, existe abaixo da superfície uma força espiritual extraordinária. Aí jaz o reino de Agharti, terra mitológica de um povo ancestral cuja lenda remete para diversas versões e fontes. O «rei do mundo» segundo o texto de Ossendowski  representa para os mongóis e os tibetanos o líder místico da Terra Oca. A sua relação com o destino dos homens parece ser a de um representante de Deus na terra, uma espécie de sumo- sacerdote, um semideus. O acontecimento narrado por Ossendowski está articulado com o imaginário de um país subterrâneo na mesma linha que a Atlântida do Timeu, mas imbuído de um significado inverso, porque em Agarthi tudo é escuridão; fala-se aqui de um invisível subterrâneo inacessível, um arcano que é ao mesmo tempo a fechadura e a chave de uma montanha inviolável e por isso, também, o mistério de um acesso impossível (recorde-se a Patafísica de Daumal e o estratagema de Sogol para chegar ao Monte Análogo). Agharti é o que podemos chamar de dimensão paralela, tudo aí se passa sem memória justapondo-se claramente à civilização, aos códigos, às hierarquias e à História.

Ossendowski, como descreve, testemunha o «nascimento do mistério». Esse inquietante sinal subterrâneo, que ele próprio apenas assiste à recepção, parece não existir. Qualquer coisa está desconexa no sentido, é isso que faz Ossendowski não perceber a ocorrência. O sinal é a ausência de sinal. Aparentemente, algo não natural, mas que ao mesmo tempo não é nada, é interpretado pelos mongóis como um cântico. Esse inaudível paralisa, pausa a celeridade, cessa o movimento. Procede daí a intensidade de uma desaceleração no tempo; a sensação intransmissível de que o tempo negoceia com a presença das coisas o temor da sua perda; que os corpos subtraem-se prisioneiros da sua profundidade assim que seja possível suspender o tempo. Mas curiosamente esse mesmo acontecimento produz a revolução do mundo. Aristóteles, na Metafísica, atribui a um motor imóvel a causa de todo o movimento e mudança: «O princípio e o primeiro dos seres é imóvel tanto absolutamente como relativamente, e produz o movimento primeiro, eterno e único.» À imagem de numa roda transcendente cujo eixo imóvel acelera todas as causas indirectamente, como se o pensamento divino, sempre igual a si mesmo, portanto imutável, fosse a potência da mudança do mundo visível. Este lugar que se mantém fixo, como um pólo da Terra, estático, todavia, propulsor da mecânica primordial, do dia e da noite, surge em várias culturas como Axis Mundis, absorvendo o encontro polissémico entre o céu e a terra, o útero, o umbigo e o falo; normalmente é o lugar de um grande simbolismo onde os seres redescobrem a sua manifestação original: onde repousam sustentadamente a sua forma no útero, como concepção, reencontram o trauma do nascimento e assistem ao paroxismo da morte.  Nesse lugar imóvel, a vida como a conhecemos também ela sustém-se, pára, porque se encontra no centro do cosmos.  O «sol deixa de mexer» e o indecidível revela o tempo: como «viajar sem movimento».

Compreende-se que essa dimensão paralela seja debaixo da terra onde tradicionalmente os mortos são sepultados, porque esse cântico não se dirige à superfície e aos homens, mas, entendamos bem, às coisas, aos seres que não abdicam da sua solidez; uma solidez de cadáver, que espreita todas as coisas, como se algo as tivesse abandonado à existência deixando os entes desamparados, desprotegidos da intempérie da multiplicidade. Efectivamente, é a quantidade e a extensão do mundo que cega o Homem. Aí na profusão sente-se o inominável. O vácuo que pertence a Erebus lança um véu de incerteza sobre o que é e o que jamais será na imersão do genérico entre o informe e o descaracterizado. Mas o limite dos objectos não pode senão emergir do oco indiscernível, dessa cavidade cadavérica que simultaneamente lança o múltiplo no mundo e o devolve à sua solidão. A gruta, o oco das coisas, é ao mesmo tempo a separação entre elas, a sua diferença interna e a sua concretude. De outra maneira não haveria a sensibilidade dos sólidos e como consequência não haveria o número.

«Os homens-ocos moram na pedra; circulam nela como cavernas viajantes. No gelo, passeiam-se como bolhas com forma de homens. Mas não se aventuram no ar, porque seriam levados pelo vento.» É também por essa razão que as pedras marcam as sepulturas, não irão os espíritos dissolverem-se na atmosfera. «Nada de mais imediato e mais autónomo na plenitude da sua força, nada de mais nobre e mais terrificante do que o majestoso rochedo, o bloco de granito audaciosamente erecto. Antes de mais, a pedra é. Ela permanece sempre igual a si própria e subsiste. E, o que é mais importante, ela serve para bater. Antes mesmo de pegar nela para bater, o homem vai de encontro a ela. Não necessariamente com o corpo, mas pelo menos com a vista.» O objecto lítico sacraliza de uma maneira particular: a sua primeira função é exaltar aquilo que é obstinadamente, sem dissipação, sem ruína; aquilo que no nevoeiro não se confunde com o clima, com o temperamental, com a meteorologia. Está aí definitivo, marcando também o transitório, o túmulo, sob a forma de um aviso, dizendo: «esta gruta está selada». A pedra é erigida nessa transgressão da natureza, fixando a banalidade da paisagem, segredando à sepultura a diferença entre o ser e o não-ser. A voz da coisa lítica é a autoridade do sem tempo. A pedra é aqui simultaneamente o refém e o resgate do tempo, aludindo, pela sua solidez, à separação do tudo mais não assinalável na profusão do mundo.

Bergson insiste que o pensamento apenas se debruça sobre coisas sólidas como consequência de uma cilada do real. Essa observação prende-se com o facto de o entendimento lidar com a fluidez da realidade de forma extática, extraindo as impressões extemporâneas do movimento e da mudança como imagens fixas, precisamente enquanto estados solidificados, sem devir, contrariando dessa maneira a natureza do tempo. Como refere, é Zenão que dá conta dessa inadequação do tempo e da consciência da «duração». Prova-se aqui uma disjunção, não porque Zenão prove uma coisa e Bergson o contrário, mas porque se observa que não há relação entre o tempo e a sua representação: o que é a «duração» no sentido de Bergson senão o nome do insidioso temporal e insidioso a coisa que não é, ou seja, que não tem um estatuto metafísico representável. A morte, como o tempo, são noções sem coisalidade alguma. Alberto Caeiro refere-se com aversão a essas noções imateriais:

Que pode ter comigo o que não começa nem acaba?
Não creio no infinito, não creio na eternidade

Creio que o espaço começa numa parte e numa parte acaba...”

A solidez serve-se então da circustância do limite, da noção de forma. Todavia, o que funda a forma deverá ser o informe e, de facto, só o que funda existe no real, mas indiscriminadamente e de forma insidiosa. Segue que a profusão do mundo é também o que existe aí, obstinadamente, numa-margem-que-não-é. O tempo e a morte alinham a partir do seu teor indiferenciado com real retornando depois como assombração, espiando o desconhecido como se o real não fosse mais do que uma cilada.

Insidioso é o que para a Abissologia pode descrever esta ratoeira:

1.    Que o tempo jamais «dura» durando efectivamente.

É preciso dizer que para o ser é impossível participar no movimento descrito pela relatividade que é a dobra do tempo. Isto é, para o ser é impossível frequentar o tempo de forma a repeti-lo – parece que só o não-ser (e aí de forma inadequada) reconhece essa impropriedade. Isto quer dizer que não existem dois momentos iguais no tempo para o ser, que o ser no tempo é incoincidente. É essa a sua natureza. Para a Abissologia essa lei traduz-se por uma prescrição categórica: pensar o tempo movente é insustentável, a imobilização é sempre o que resta de tal operação. De modo que, o que se afigura como possível é descrever o movimento enquanto somos transportados pela sua desaceleração, procurando a sua aproximação ao extático, revelando a intensidade dos movimentos mínimos, aqueles que sempre se afiguram como o incondicional do próprio movimento e do tempo.

2.    Que as coisas são como cadáveres abandonados no mundo.

Não incorremos num erro grave se afirmarmos que as coisas são melhor entendidas na sua acepção comum, isto é, na sua acepção objectual. As coisas são a interacção com o mundo, na medida em que o fazer sentido do mundo provém dessa capacidade de solidificação das formas: as coisas sugerem ao homem um telos, uma finalidade, é por isso que se equiparam a objectos. Esta é, em certa medida, a razão da sua reificação, não só das coisas materiais como das coisas imateriais. Para o Abissologista, a coisalidade é ateleológica, não se pode aí encontrar mais do que aquela existência grave dos minerais que têm origem no meteorito, a saber, que o existente é lançado para a sua propriedade finita como uma interrupção duma viagem cujo termo inicial é o não-ser, isto é, o infinito vazio do espaço sideral.

3.    Que a vastidão do mundo é tanta que nos cega.

Retomando o grande anátema Abissologista: «o mundo sempre se manifesta segundo alguns aspectos indiscerníveis», podemos dizer que o visível está em lapso. Que, então, ver intimamente o mundo é apreciar a sua ausência de nexo, verificar que na sua essência este é constituído de partes que não reportam a um todo; que não há Um e que as partes que compõem o mundo, também elas, têm um zero indiscernível que espreita, nem que seja a sua sombra.

4.    Que a morte trabalha o tempo e as coisas numa dimensão paralela e que esse trabalho não se vê porque é indiscernível e não se ouve porque é inaudível.

Para o Abissologista que se debruça no abismo que ampara o real, as coisas e o tempo perspiram o não-ser. Existe aqui, mais do que tudo, um sentido meteorológico; a qualidade da atmosfera, sempre incerta, exprime esse sentimento de grande insegurança: não se adivinha o dia de amanhã. E assim, o que naturalmente não pode ter expressão: a verdade das coisas e do tempo, só é autorizada mediante o reconhecimento da lógica desse inominável, o não-ser, uma vez que a propriedade do que existe é incontestável, mas arriscada.  Tal acontece porque o tempo dura ininterruptamente, sugerindo as coisas ao mundo de uma forma particularmente incondicional: enquanto abandonadas na vastidão cega do múltiplo. Segue que o não-ser é assombração do real, porque é o que sustém a presença na sua fulgurância, isto é, acontecimento e dissipação.

5.    Que na verdade todos os lugares centrifugam e há momentos ou perspectivas onde tudo parece estar parado no movimento.

Como em Descartes, a teoria do movimento na Abissologia também tem algo de relacional, isto é, joga-se entre o móbil e o observador. Na verdade, sujeitando os dois à mesma velocidade produz-se no observador a noção extática da celeridade a que ambos estão submetidos. É, porém, de todo impossível ludibriar o movimento, o que existe neste caso é uma certa perspectiva sobre a situação. A Abissologia chama a essa miragem do imóvel Horizonte de Acontecimentos. Este verifica-se quando vários acontecimentos se precipitam lentamente para a clareira de um «buraco negro» e na aproximação desse grande não-ser, hesitam reverberantemente a entrar na não existência.

Então, apenas se pode desejar que, como quem põe a mão num buraco onde se julgam estar peras, se consiga tirar a fruta sem entalar os dedos ou, como quem diz, havemos de tirar nabos da púcara.

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2. (Como é sabido, os intrépidos Ulisses deste mundo introduziram-se secretamente na boca do lobo, na caverna do urso e também na jaula do tigre. O leitor dirá: «Eles não sabem o que fazem. Existem outras formas de alimentar o bicho, amansar a fera.» Sim, é certo, mas alguém tem de mostrar o monstro ao mundo e saber-lhe o nome. E se isso significa entrar no covil e perguntar-lhe, que tal se faça uma vez que é necessário. Porém, para aqueles que pretendem voltar das profundezas de tais lugares, uma recomendação, a curiosidade é precisamente aquilo que faz o curioso ter pouca prudência. Nunca esquecer, pois, enquanto se espreita o abismo, dessa parca qualidade que é a cautela.)

Da antiguidade chegam dois nomes quase esquecidos: Empédocles de Agrigento e Heróstrato de Efesos.

O encontro desses dois nomes dá-se na loucura, num acto derrisório, inconsequente, mas da maior consequência.  Esses nomes são devolvidos ao nosso tempo pelo rumor da não existência, isto é, uma certa interpretação da morte voluntária onde só se pode aludir ao eco da morte. Aqui, mais importante do que a existência em vida de Empédocles e Heróstrato, importa a convocação da possibilidade da sua morte; a História menciona a lenda que o pensamento tenta «forçar» em alegoria: que ambos se lançaram no fogo divino e o que isso pode significar não sabemos, cobre-se enigmaticamente de um desejo de infinito.

Em 356 a. C., Heróstrato incendeia o templo dedicado a Diana em Efesos e considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo. Capturado, Heróstrato revela sob tortura a intenção por trás do crime: aspirava a perpetuar o seu nome próprio na História, a gravar para todo o sempre a memória da sua vida no desastre. Porém, uma vez que o confessa, as autoridades executam-no e proíbem a menção do seu nome.

Diógenes Laércio conta como, no final da sua vida como filósofo, Empédocles se atirou para dentro do Etna. São muitas as versões da morte de Empédocles, mas quase todas aludem a um sacrifício; a ideia que nos é transmitida, seja pela sua filosofia, seja pelos relatos, é que a sua intenção era transformar-se num deus.

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Damnation memoriae é a forma pela qual um nome próprio desaparece do uso e é retirado da história. O nome proscrito dissolve-se na memória colectiva, deve-se isso a um decreto jurídico, como acontecia em Roma, ou a um tabu, quando certo uso do nome numa sociedade específica é particularmente ofensivo. Frazer conta como este tabu é comum entre vários povos primitivos. Perguntando o nome a um selvagem ele prontamente indica outra pessoa para responder por ele, e, sem qualquer inibição, o companheiro diz o nome do primeiro. Aparentemente, o nome não pode ser mencionado pelo próprio, essa restrição liga o sopro ao nome através de um vínculo material; para o primitivo esta palavra em particular, o nome, tem um poder no real, exaura a profundidade das coisas. Quando o nome próprio é proferido pelo mesmo, alguma parte do ser abandona o corpo deixando-o diminuído; as palavras e os nomes não são apenas coisas que chamam outras, que descriminam o um do diverso, são entidades analógicas que pela mimese dão poder a quem as ouça. Assim, se o peixe ouvir o nome do pescador consegue escapar-lhe da rede. O poder das palavras está relacionado com o desaparecimento das coisas, capturam a essência pela relação que o significante estabelece com o referente inicial. Ocorre, então, que o sinal é confundido com a coisa expropriando-a do ser. E, se a linguagem é um factor de evolução, também, pela mesma via, os nomes afastam o homem primitivo da origem, de um estar sem medo, do convívio harmonioso com os deuses e com a natureza. Nesse sentido, o nome próprio pode ser o conceito mais próximo de uma nomeação sem ambiguidade, como uma protolinguagem, em que cada indivíduo assinala a sua diferença ontológica do outro, todavia encontra-se também aí o primeiro passo da profanação do mundo, da perda da imanência divina, porque afinal o mundo não tem nome próprio e essa diferença face ao sujeito é o abismo.

O sagrado é para o sentimento religioso a restauração do mundo apodíctico ou a via pela qual se pode reconduzir a manifestação ao todo e a vida ao telos. Lembre-se a carta que Freud recebe em A Civilização e o Seu Descontentamento. Essa carta, escrita por um correspondente, argumentava contra Freud que a fonte verdadeira da religiosidade era um sentimento de eternidade, o sentimento de uma coisa sem limites, sem fronteiras, um «sentimento oceânico». Existe aí essencialmente a ideia de uma pertença a um todo original, fons e orige, inspirado pela imersão, isto é, em que o sujeito é mergulhado no mundo vivendo a experiência desse nascimento simultâneo: o nascimento do homem e a criação do cosmos. «A intencionalidade decifrada na experiência do Espaço e do Tempo sagrados revela o desejo de reintegrar uma situação primordial: aquela em que os deuses e os antepassados míticos estavam presentes, quer dizer, estavam em vias de criar o Mundo, ou de o organizar,  ou de revelar  aos homens os fundamentos da civilização.» Trata-se aqui de reencontrar o princípio dos tempos; a inauguração do existente no sentido do seu acontecimento preciso, a saber, estar na presença do divino.

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O rumor do nome de Heróstrato é o rumor da sua extinção ou o barulho daquela que é a sua única obra: o desastre. Na verdade, a premeditação incendiária de Heróstrato lança-o metaforicamente para o sinistro. É lá que o fogo da extinção trabalha e fornece uma pista para o sucedido: é o seu nome, enquanto resto, que aparece como ruína. «O seu acto pode ser, de certa forma, comparado àquele terrível elemento da iniciação dos Templários, que, depois de terem dado provas de serem absolutamente crentes em Cristo [...] tinham que cuspir no crucifixo no acto da sua iniciação. [...] O Deus em que cuspiam era a substância sagrada da redenção. Era para o Inferno que olhavam, enquanto as bocas se enchiam da água da blasfémia necessária. [...] Sofre como Cristo, que morre como homem para provar que é Verbo.»  A ruína é, pois, o que faz a memória do nome, ou melhor, o que faz do nome uma memória. É o que foi destruído e cuja existência é deixada à assombração no que aí podemos encontrar de eterno: um acto derradeiro, uma afirmação invulnerável, como se fosse a primeira e a última, justamente como criação e renúncia, como Verbo.

Por sua vez, a morte de Empédocles procura a reunião com a natureza elementar. É um desejo também de vida porque, estando escondida a identidade de Deus (ou do Uno), o suicídio permite reencenar o nascimento e o reencontro com o divino, isto, na medida em que se creia no relançamento da vida depois da morte, na reencarnação. Os Gregos têm uma noção clara do profano do mundo e da inacessibilidade do ser. É por essa via que é forçoso encontrar as condições de acesso ao ser, precisamente porque existe um selo de ilusão em torno dos sentidos e da apreensão da realidade. O suicídio para Empédocles apresenta a possibilidade de se ligar ao gérmen; a morte é aqui também uma fusão com a lava, com o pré-formal. O que está em causa é uma deificação que opera também numa redução ao indiferenciado, de forma que a morte de Empédocles regista essa imersão também no-antes-das-coisas, no fluxo eterno, cujo nome (im)próprio só admite extemporaneamente ser um: «Para que houvesse um nome verdadeiramente próprio, seria preciso que não houvesse senão um único nome próprio, que não seria então nem mesmo um nome mas pura convocação do outro puro, vocativo absoluto que nem mesmo chamaria, pois a chamada implica a distância e diferença [...] e se quisermos chamar essa «origem» pelo nome de Deus, o melhor nome próprio, o mais próprio, arrastaremos Deus para a violência da diferença, faz-se dele o nome deste que me desapropria de mim mesmo...»

Tanto Empédocles como Heróstrato acedem ao infindável perseguindo essa conclusão, a morte, cujo acto representa um meio para um fim incerto. Severamente, a separação da morte ou a inexistência do não-ser convida a uma relação não mediada com o eterno. A memória infinita de um nome divino – Heróstrato-Empédocles –, ao chegar a nós, tem a marca de uma ruína construída sobre o inominável. Pascal argumenta que, no que diz respeito a Deus, nada é seguro, não obstante, o infinito exige uma aposta: «Conhecemos, pois, a existência e a natureza do finito, porque somos finitos e temos uma extensão como ele. Conhecemos a existência do infinito e ignoramos a sua natureza, porque ele tem extensão como nós, mas não limites como nós. [...] Se há um Deus, ele é infinitamente incompreensível, uma vez que, não tendo nem partes nem limites, não tem qualquer comparação connosco. Somos, portanto, incapazes de saber o que ele é e se existe. [...] E digamos: «Deus existe ou não existe.» Mas para que lado nos havemos de inclinar? A razão nada pode determinar. Há um caos infinito que nos separa de Deus. Joga-se um jogo no extremo desta distância infinita, onde surgirá cruzes ou cunhos. Que apostareis?»

Claro está, que em vida, a insistência na eternidade termina na morte e podemos pensar que o niilismo mais exaurível passa por toda a vontade do eterno. Nietzsche atribui um sentido particular a isso. Mas Heróstrato-Empédocles parecem compartilhar esse desejo do infinito com um princípio de negação que não deixa de ser afirmativo; a insanidade de um louco faz com que entre em jogo com uma maquia que não pode pagar: o louco aposta sempre a vida-ou-morte. Como veremos, existe aí algo cuja urgência é da maior autorização do finito, do irredutível. Esse é o balanço da aposta, o seu preço é uma eternidade diluída no rumor fantasmático, sem nome, sem detalhe, desapropriado, mas que retorna sob as mais diversas formas.

Blanchot identifica, a propósito da tragédia de Holderlin, A Morte de Empédocles, aquilo que, mais tarde, o próprio autor da tragédia chama «a inversão categórica». Em conformidade com o romantismo e o tema da nostalgia da natureza, A Morte de Empédocles explora a perda irremediável de uma pureza essencial originária. Nos textos mais tardios de Holderlin, depois das primeiras crises mentais, este tema é completamente substituído. O irremediável passa a significar que os deuses, não estando mais presentes, demonstram quanto engano existe nessa nostalgia: que não há todo algum para o qual a morte possa remeter; que o eterno é um ardil do próprio homem. Neste sentido, a Natureza não tolera continuar a ser a manifestação do divino. Confirma-se aqui uma insurreição que, todavia, abre um caminho ao poeta: «Hoje os deuses foram embora; estão ausentes, infiéis. E o homem tem de compreender o sentido sagrado da infidelidade divina, não opondo-se a esta, mas fazendo-a ele mesmo. «Num momento desses», diz Holderlin, «o homem esquece-se de si e esquece-se de Deus; vira as costas como um traidor, mas faz isso de uma forma sacra».

O que significa trair os deuses de uma forma sacra? A chave aparece numa versão do poema Mnemosyne, de Holderlin:

Eles não conseguem fazer tudo,
Os Celestiais. Os mortais tocam

O abismo. E assim com eles

A inversão é desempenhada.

Significa que o sagrado é também uma vocação que se retém aí numa suspensão sobre o abismo, na sua borda, debruçado cautelosamente na caverna onde os titãs agrilhoados desaparecem do mundo. Nesta circunstância o poeta retrai-se, o todo já não o inspira; a poesia oferece-se antes ao sacrifício da contenção, o trabalho do poeta é o labor do finito ladeado por infindáveis ausências – e é isso o que podemos entender por «inversão categórica», o sagrado como abandono. De qualquer maneira, não há outra forma de explicar a existência que não seja essa: a explicação do puro desamparo, aquele que não se deve a nenhuma entidade que não seja a vinda ao mundo, que não se deve ao nascimento. No momento em que o Homem compreende a grande consequência da mortalidade apercebe-se que não tem deuses: quando morre está só e o real dessa solidão é anónimo, não se revela aí o divino ou a profanação da vida, mas a sacralidade da morte. Segue, ainda assim, que o nome do morto tem um agravo: o cadáver agita-se ao som do seu nome e esta é a expressão maior do ventriloquismo, a ocasião em que os fantasmas ainda falam: «É impressionante que nesse preciso momento em que a presença do cadáver é a presença do desconhecido à nossa frente, o defunto enlutado começa a parecer consigo mesmo.» A mesmidade, o próprio, retorna sem nome, apenas assombração das coisas abandonadas, separadas dos deuses e dos homens pela sua profundidade, esse segredo concreto, a saber, que todas as coisas vivas e mortas tocam o não-ser, que o mais real do mundo acontece quando a existência é tomada entre o desconhecimento do que é próprio e a propriedade das coisas.
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