Herwig Turk e Paulo Pereira têm desenvolvido um projecto artístico a vários títulos excepcional, com a peculiaridade de ser protagonizado por um artista plástico e um biólogo. Trata-se de um trabalho de co-criação deveras singular no cruzamento arte / ciência, tendo como eixo a percepção. Partindo de um olhar com um certo cariz documental e etnográfico, algo afim ao trabalho de campo levado a cabo dentro dos laboratórios de ciência por antropólogos e sociólogos, rapidamente percebemos que esse ponto de vista é subvertido. Paulo Pereira gosta de se referir a «Retratos da Vida em Laboratório». Com este projecto, em construção, têm explorado aquilo que gostam de caracterizar como regiões de fronteira, onde ocorrem sobreposições de territórios disciplinares, e para isso têm construido uma linguagem poderosa a partir do uso da fotografia, do vídeo, da escultura e da performance. — Entrevista por João Urbano

NADA — Podias, Herwig, dar-nos uma panorâmica do teu percurso antes de chegares a Portugal?

HERWIG TURK — Faz sentido falar sobre os meus projectos artísticos antes de chegar a Portugal para poder fazer uma ligação entre o antes e o depois. Estive a trabalhar na Áustria principalmente com novas tecnologias, debruçando-me sobre o corpo e o movimento e em especial estive sempre interessado em questões ligadas à medicina e à clínica. Fiz algumas instalações sobre Imortalidade e realizei uma série de fotografias sobre genetechnology, que foram os Super-Orgãos. Acho que este trabalho teve continuação em Portugal, agora com um pendor muito mais intenso nesta troca entre arte e ciência e arte e medicina. Estou interessado em compreender como estes dispositivos institucionais ou técnicos estão a influir no processo de conhecimento.

N — A tua fase Austríaca decorre entre que datas?

HT — As primeiras animações em computador datam de 1992; os Super-Orgãos foram realizadas em 93–94; as instalações sobre Imortalidade em 95–96. Fiz também uma exposição em 97 num hospital de Roterdão e posteriormente, em 98, apresentei o Referenceless Photography.

N — Tu trabalhavas isoladamente ou tinhas um grupo?

HT — Desde 89 que faço exposições sob o rótulo «Herwig Turk». No entanto, em Viena tive sempre um grupo de pessoas à minha volta com as quais era possível trocar ideias e discutir alguns conceitos. Éramos não apenas artistas mas também organizadores, curadores e técnicos ao mesmo tempo. Muitas vezes não era claro onde começava e acabava a prática artística e todos contribuíam para os projectos de cada qual. Criámos muitos projectos em rede (networking) sob o rótulo HILUS até 1996. Depois tive um projecto maior, onde juntei 27 pessoas de vários países, para reflectir e discutir sobre o esquecimento como um processo quase patológico na nossa cultura, mas que está também muito presente no nosso quotidiano

N — Esse esquecimento teve algo haver com a História relativamente recente da própria Áustria? Estou a referir-me em especial ao fascismo.

HT — Foi obviamente um tópico dentro do grupo, porque o esquecimento na Áustria é um tabu. Não podes esquecer. Tens sempre de lembrar. Só que na verdade nunca te podes lembrar porque o mecanismo de rememoração altera o acontecimento original, por assim dizer. Tens sempre imagens sobre imagens. Tens um processo de diluição do acontecimento inicial. Nunca tens o original. Tens uma cópia, uma variação. Aliás, acho que o problema dos monumentos é esse. Ao erigires um monumento estás automaticamente a esquecer o evento original, ou, melhor ainda, com a criação do monumento instalas um novo incidente. E nós estávamos muito interessados em isolar o processo de esquecimento ao encontrar um acto de esquecimento activo ou uma coisa sobre a qual pudesses falar.

N — As tuas preocupações com a medicina e com a clínica vêm donde?

HT — Durante muito tempo pensei que era uma mera coincidência, mas na verdade não o é. Quando era criança fui sujeito a várias operações. Por volta dos três, quatro anos estive pela primeira vez internado numa clínica durante três semanas por causa do meu olho, a seguir fui operado aos seis anos, e mais duas com dezoito, dezanove anos, e não consegui andar durante dois anos. Entendi que estes processos são muito graves e que estás muito dependente das instituições de medicina. Por exemplo, quando tive o meu problema com o joelho a única coisa que eu tinha na mão era um raio-X e o primeiro médico a que recorri disse-me que eu já não tinha cartilagem no joelho e que devia de ser operado, enquanto o médico seguinte me disse para não se tocar no joelho, que era melhor esperar, provavelmente em cinco anos o joelho voltaria a funcionar. Depois de consultar três médicos, eu e os meus pais decidimos que íamos fazer a operação. Durante o ano seguinte fui sujeito a duas operações muito delicadas e nunca recuperei a 100%. Tive várias complicações. Isto foi muito interessante para mim, na medida em que fui obrigado a alterar completamente a minha vida. Tornei-me um inválido. Nessa altura ingresso na Academia das Belas Artes de Viena e percebi que podia levar a vida para a frente, mesmo tendo de deslocar-me em canadianas, etc. Nessa altura era uma incógnita a minha evolução clínica, se ia melhorar ou não. Tudo correu pelo melhor, mas tenho a consciência que tudo podia ter sido diferente. Quando tu entras no hospital como um paciente, deixas de ter o controle da situação, entregas-te na mão de um dispositivo feito de aparelhos, peritos, etc. A anestesia foi, quanto a mim, uma experiência fundamental. Eu, com dezoito anos, tinha já sido quatro ou cinco vezes anestesiado, e foi sempre algo incrível. Eu lembro-me muito bem do momento em que a anestesia começava a actuar (o anestesista diz sempre que tu tens de contar um, dois, três, e por aí fora.) e, num espaço de tempo muito curto, as tuas imagens oculares mudavam e parecia que estavas diante de um televisor sem sinal. Isto para mim foi algo muito importante.

N — E quando chegas a Portugal...

HT — Quando vim para Portugal eu pensava que ia deixar de fazer arte, estava um pouco farto, sentia já algum desgaste e alguma erosão em relação ao que fazia em Viena. Portugal tem um bom clima, vou fazer coisas diferentes, pensei. Mas depois, quando encontrei o Paulo fiquei muito curioso com o que se passava no Instituto de Oftalmologia onde ele investigava. Essa área científica sempre me interessara. O Paulo trabalha em oftalmologia e também em biologia molecular. Eu tenho dois tios que são físicos atómicos, um deles muito conhecido, que esteve em Los Álamos, e sempre gostei imenso de conversar com eles. Não que eu compreendesse tudo o que me diziam, mas eles eram pessoas muito particulares e tinham um conhecimento sobre muitas coisas invisíveis e no meu mundo, vivia numa pequena cidade da Áustria, nunca tivera acesso a esse conhecimento. O conhecimento científico para eles não tinha a mínima importância. Eram muito atrasados. Eu fiquei fascinado com essa comunidade que se dedicava a analisar coisas invisíveis num nível de especialização e de conhecimento muito elevados. E achei que isso tinha também uma ligação com a arte.

– O teu encontro, Paulo, com o Herwig ocorreu quando?

PAULO PEREIRA – Em 2003. Há seis anos.

N – Não te vou pedir para me contares a história da tua vida mas o que é que te motivou a trabalhar com o Herwig? É que a vossa parceria é peculiar. Habitualmente um artista quando trabalha com um cientista, este fica na sombra, não passa de um facilitador e está longe de adquirir o estatuto de criador ou de co-autor. Mas vocês têm uma verdadeira parceria criativa e conceptual.

PP – No início, como há pouco dizia o Herwig, houve alguma curiosidade para explorar territórios que eu conheço menos bem e a intersecção com a arte criou essa oportunidade. Eu acho que só vale a pena falarmos se tivermos alguma coisa para dizer. Muitas vezes queremos dizer coisas mas não temos formas adequadas de dar expressão às coisas que precisamos de dizer; e o encontro com o Herwig criou aqui também uma nova oportunidade ao nível da linguagem.

N De alguma maneira tinhas já um interesse por matérias extra-cientificas, por assim dizer, em especial a arte?

PP – Parece-me que actualmente, na ciência, se criou uma espécie de hiper-especialização e as pessoas confinam o âmbito do seu estudo a coisas infinitamente pequenas, acabando por saber quase tudo sobre quase nada. Eu sempre tive alguma curiosidade sobre a natureza dos procedimentos que servem de suporte à ciência e sobre a ligação destes mesmos procedimentos ao resto do mundo. Como é que se relacionam?, como é que se integram?, para que é que servem?, porque é que são importantes as coisas que dizemos que são importantes?, e quem é que decide o que é importante? Por outro lado, encontras na arte uma forma legítima de dar expressão a coisas que a ciência, pela natureza dos seus próprios procedimentos, não te permite. A ciência adopta necessariamente procedimentos e metodologias de rigor e de normalização. A ligação à arte e ao Herwig permitiu-me, de alguma maneira, dar voz e corpo a uma certa inquietação e a um certo desconforto que eu sentia. Esta ligação permitiu-me explorar, se quiseres, um território que não se limitava a facilitar o acesso de um artista a um local de produção de ciência. Tratou-se, de facto, de fazermos alguma coisa em conjunto, alguma coisa cujo resultado não fosse o de um artista que tem acesso à ciência nem fosse o de um cientista que quer aproveitar a arte para promover a ciência. Não queríamos mais promover de forma explícita ou encapotada, uma espécie de discurso panfletário para fazer a apologia da ciência e dos seus procedimentos. Acho até que muitas vezes esta apologia é feita de uma maneira um bocado excessiva e descontrolada, se quiseres. Portanto, esta questão de perceber melhor qual é a ligação da ciência com o resto do mundo e podermos socorrer-nos da arte para ajudar à resposta, foi o que despoletou esta colaboração. Eu tenho, desde há algum tempo, a impressão de que, na história recente, a ciência é um bocado arrogante e a arte autofágica, o que é uma combinação que proporciona algum autismo e não favorece a comunicação. Entendo, também, que se quiseres fazer isto de uma maneira séria tens de ir para o terreno. Tens de desenhar um projecto em conjunto que possa denunciar esta dificuldade e simultaneamente traduzir esta necessidade de nos compreendermos melhor um ao outro e de criarmos, pelo caminho, uma linguagem que não é nem uma linguagem da ciência nem uma linguagem da arte, mas que existe num território mais ou menos híbrido—eu não gosto de dizer híbrido porque é actualmente uma palavra um bocado abusada. É a ideia de um ecótone, que são regiões de sobreposição e transição entre territórios ou ecossistemas diferentes. São regiões de diversidade improvável. Por exemplo, na transição entre as cidades e ambientes selvagens podes encontrar inesperadamente um tigre ou um leão. Esta zona de transição, este ecótone, criou, na minha perspectiva, um território propício a esta experimentação com o Herwig. Como é que podíamos documentar esta espécie de inquietação que cada um de nós sentia? O Herwig já explicou o seu fascínio pelos aspectos mais ou menos secretos, mais ou menos ocultos, mais ou menos invisíveis, da ciência. O mesmo se passa comigo em relação à arte, de alguma maneira. Como é que eu posso, em conjunto com um artista, dizer alguma coisa que a ciência, no âmbito razoavelmente restrito da sua linguagem, não me permite dizer? A linguagem da ciência é muito reduzida. A linguagem é reduzida, os procedimentos são muito padronizados, muito estandardizados. E se é certo que isso te dá uma grande eficácia, também te impõe limites e constrangimentos diversos. Há limitações do ponto de vista do discurso, das ideias e da exploração de uma coisa que, no nosso caso, tinha de ser outra, tinha de ser diferente. O objectivo não era o produto final. Não queríamos produzir um objecto que deslumbrasse o espectador. Interessava-nos o próprio processo e tivemos necessidade de o criar. Eu acho que é também aqui que reside a diferença da nossa abordagem. O Luís Quintais costuma referir-se às «qualidades encantatórias» dos objectos científicos. São coisas reluzentes. São coisas sobre as quais é possível sentir algum fascínio e alguma sedução porque nunca se mostram completamente. Nunca vês tudo. O nosso objectivo era também desmontar isso. O que é que está por detrás do brilho? O que é que se esconde por detrás da sedução do brilho? Afinal, nem tudo o que brilha é ouro. Não queríamos, por isso, fazer um aproveitamento desleal dessas qualidades encantatórias dos objectos científicos. Queríamos criar e dizer, em conjunto, alguma coisa que fosse mais do que a soma dos dois. Para mim foi uma oportunidade de poder dizer coisas que talvez não pudesse dizer de outra maneira. Não sei se as consegui dizer ou se as conseguimos em conjunto dizer, mas foi uma oportunidade de criar um processo. Foi uma oportunidade de pensar como é que podemos retratar a vida no laboratório, as coisas visíveis e invisíveis de que é feita a ciência. O Herwig falava ainda há pouco nos raios-x, nas imagens e na legitimidade dos seus intérpretes, o que, de algum modo, nos permite também questionar a autoridade da ciência e as suas formas de legitimação. Parece-me que se atingiu um ponto em que és inundado por um vasto conjunto de informação de todos os tipos (tsunamis, escândalos políticos e crimes vários) e no meio de tudo isto dizem-te que se descodificou o genoma humano ou que se podem fabricar orelhas humanas num rato. E habituámo-nos todos a ser crentes em relação a estas coisas e obedientes em relação a quem conferimos a legitimidade de saber mais. Por todas estas razões estava também presente, na nossa abordagem, a questão da autoridade da ciência. Esta tentação de ver o que está por detrás destes véus e destas opacidades que há nas diversas áreas disciplinares da ciência. E é importante saber denunciar o que vês ou sabes existir de uma maneira que não seja agressiva socialmente e que não crie tensões desnecessárias. Questionar de uma forma serena mas séria o que está por detrás da ciência e perceber o que move os seus protagonistas. O que é que os faz correr e o que é que os faz parar. Porque a ciência tem determinantes políticas. Há toda uma teia e uma malha social, política e económica por detrás da ciência a que é importante, de alguma maneira, dar visibilidade. Só isso. Quando fazemos algumas destas exposições que questionam a percepção, a autoridade, a legitimidade, tem um bocadinho também a ver com a intenção de tornar visíveis muitas destas determinantes sociais, políticas e económicas.

N – Turk, apresentaste recentemente o projecto, O Laboratório Invisível, que de certa forma é a continuação do Blindspot. Ambos os projectos se imbricam um no outro, qual work in progress. O que é que pretendes explorar com este projecto em parceria ou co-autoria com o Paulo?

HT – Para mim era muito importante desenvolver uma técnica, uma sistemática diferente e aprender coisas do sistema científico. Verifico agora que o Paulo teve uma grande influência no meu trabalho mais recente. Entretanto surgiu um outro problema, porque agora tenho receio de fazer trabalhos que não possa explicar ou que não possa formular rigorosamente. E essa falta de explicação e clarificação exaustiva, sendo um grave defeito na área cientifica, é, por outro lado, uma coisa muito rica nas artes plásticas, uma coisa central. Na última exposição percebi que tinha aprendido muito e mesmo sido contagiado por esse rigor e que, se calhar, estive a desenvolver coisas demasiado didáticas, demasiado ilustrativas e ligadas com o nosso discurso, e sinto um bocado a falta do enigma, algo que tu sintas mas que não possas traduzir em palavras, um tacit knowledge, em que instalas uma relação física e emocional com a peça e tens várias ligações com isso sem ser só esta coisa racional passível de ser traduzida em palavras ou em conceitos rigorosos. É muito complicado de explicar. Antigamente fazia coisas e estava muito seguro ao fazê-las, porque acreditava que a coisa estava certa mas sem conseguir explicar com grande pormenor porquê. Agora, quando tenho a certeza de que devo fazer uma coisa, põe-se logo a questão de como a posso explicar ao Paulo, de que ele a não vai entender, e que para o mundo científico a minha ideia ou certeza quanto ao que devo fazer é ridícula. Isto dentro do nosso processo de trabalho é super interessante. Agora temos de fazer um movimento de recuo, temos de brincar mais. Para mim foi importante ter estado a aprender a limpar a linguagem, a reduzir as metáforas e tudo isso, mas ficas com uma linguagem muito rígida, muito reduzida, que de certeza não é a linguagem da arte. E é interessante observar como o Paulo me influenciou. Na última exposição compreendi que tinha estado demasiado ocupado com a maneira como os cientistas podem entender e usar as peças que nós produzimos e afinal isso é irrelevante. Nunca podemos pensar como é que as nossas peças vão fazer sentido para os outros, sejam ou não cientistas. Se para nós dois as peças, de alguma maneira, fizerem sentido, é o suficiente. Temos esta linguagem entre as fronteiras, entre dois campos disciplinares que tendo algumas semelhanças, são, no fundo, linguagens muito diferentes e temos de aceitar que nunca podemos explicar tudo e que tens poucas pessoas que vão entender o teu trabalho. Porque as pessoas das artes plásticas são às vezes demasiado convencionais, às vezes não dispõem ou não despendem o tempo que é necessário para aprender os tópicos implicados na nossa obra e, por outro lado, nas ciências há poucos cientistas que tenham algum conhecimento de arte contemporânea. Isto faz com que sejam poucas as pessoas que entendem o nosso trabalho.

N – Que tópicos tens explorado, mesmo com essa linguagem reduzida, no teu trabalho interdisciplinar mais recente com o Paulo?

HT – Para mim a percepção do meu mundo, do meu entorno, é a questão central. Às vezes tenho a sensação de que estou a manipular a minha percepção. Tenho uma coisa muito subjectiva que altera as coisas que estão a acontecer diante de mim. Ponho-me a contar a outras pessoas o que estive a observar mas foi outra coisa que aconteceu. E nesse encontro entendes que tu mesmo fizeste isso. Como se a tua realidade fosse completamente desligada da realidade dos outros. A ciência tem a tendência para tentar encontrar uma ideia geral (realidade objectiva), uma ideia que podes aplicar em qualquer lado, uma coisa universal. A arte contemporânea está muito preocupada com a subjectividade, com o território individual, com o tempo em que as coisas estão a acontecer, e por isso não precisas de uma explicação geral ou universal. Não estou muito satisfeito com essa posição da arte. Eu, mesmo sendo este indivíduo, quero fazer uma coisa que vá um pouco mais longe. Com duas cabeças, no mínimo, temos de nos entender e temos de desenvolver uma linguagem universal para nós. E isso é um potencial que não tinha quando trabalhava sozinho.

N – Para ti, Paulo, como é que passaste, de algum modo, a tua linguagem científica para a da arte e como é que tu te libertaste daqueles constrangimentos que o trabalho científico implica e de que modo é que isso acrescenta alguma coisa à arte? Finalmente como é que depois dessa experiência tu voltas a olhar para a ciência? A ciência não sofre com esse deslocamento?

PP – Essa é uma pergunta relevante, que as pessoas tendem a fazer e à qual não costumava ser muito fácil responder mas vai sendo cada vez mais claro à medida que tenho tempo para ir percebendo as implicações que isso tem para mim e também para as pessoas que me rodeiam no laboratório. O Herwig está com frequência connosco no laboratório a fazer as coisas mais variadas: a conversar, a pedir para ver os cadernos de laboratório, a tirar fotografias aos objectos ou a fazer retratos dos cientistas. É um processo que não me envolve só a mim e acaba por envolver um grupo mais alargado de pessoas que «vivem» no laboratório e que têm de abrir e mostrar a sua casa. Eu tenho constatado, inicialmente com alguma surpresa, que isto, de alguma maneira, altera a forma como os cientistas olham para os seus próprios procedimentos. Da mesma forma que quando sabes que estás a ser observado adquires uma espécie de hiper-consciência dos teus actos. E o facto de o observador ali ser um artista, não é despiciente. As pessoas percebem que há ali um território que se sobrepõe entre a ciência e a arte. Um território que talvez nem soubessem que existia mas onde percebem que é possível fazer coisas—ainda que frequentemente de difícil apropriação. Por exemplo, os meus alunos de doutoramento e as pessoas que trabalham comigo no laboratório—são ao todo talvez umas quinze pessoas—estão habituados a ver um artista partilhar com eles o espaço, nos laboratórios, nos corredores, estão habituados a que apareçam pessoas a instalar câmaras e luzes e gostam de participar. Sentem que talvez saibam mais e que «A» ciência talvez seja mais do que a ciência que eles fazem. E mais do que isso, trata-se também de alguma coisa que está para lá das paredes do laboratório. O facto de teres alguém como o Herwig, de teres um artista que documenta a produção de ciência, esta ideia de retrato da vida do laboratório, interpretado e de alguma maneira também exposto, altera a maneira como tu olhas e percebes as múltiplas dimensões daquilo que fazes. Isto não significa que o cientista vá descobrir alguma coisa nova como consequência desta abordagem ou que o faça mais depressa. Mas se perguntares se vamos com isso ser melhores cientistas, se vamos criar uma cultura de gente que por ter esta interacção, esta interferência, esta fertilização, vai pensar a ciência de uma maneira diferente, a minha resposta só pode ser sim, absolutamente. Começas inevitavelmente a pensar o que fazes numa perspectiva muito mais global. Um exemplo concreto tem a ver com esta peça aqui, com este modelo de uma conexina, uma proteína membranar que faz a comunicação entre as células. Eu lembro-me do Herwig pedir às pessoas para ver os seus cadernos de laboratório e as suas notas, não sendo muito certo que tipo informação útil podia retirar daí. Os investigadores desenham frequentemente esquemas, diagramas e modelos nos seus cadernos, para melhor interpretarem os resultados das suas experiências. O Herwig encontrou, num dos cadernos, uma coisa parecida com esta (a peça é a transposição de um diagrama de uma conexina para uma escultura em grande escala). Na verdade isto não são mais que construções que tu fazes, moldadas pela pessoa que tu és e que incluiu todas as tuas limitações, expectativas, aspirações de que não te consegues despir. É aquilo a que o Herwig por vezes se refere como a poluição humana no processo científico. Um lado emocional onde perdes alguma objectividade. Enquanto cientista precisas de ferramentas que te ajudem a pensar numa proteína, talvez possas pensar numa proteína como uma abstracção, mas não é útil. Precisas de fazer esquemas, precisas de modelos que possam ir evoluindo à medida que fazes o teu trabalho e sabes mais. Mas é também verdade que os teus modelos—sempre que os fazes—têm de fazer sentido na tua cabeça. São uma ferramenta de conforto que te ajuda a perceber o mundo. Também por isso estes modelos implicam um grande investimento e com frequência são sobre-investidos. É por isso inevitável que esses modelos alterem a maneira como tu percepcionas e pensas as coisas. Se calhar, o facto desta representação /  escultura estar fora de escala e ser vermelha—que corresponde, aliás, ao que estava desenhado no caderno do Steve—pode levar-te a pensar que uma proteína tem aquela forma e aquela cor. Por outro lado, esta representação obriga-te a pensar numa coisa muito importante: de que maneira é que tu usas os modelos para dar expressão e corpo a uma ideia e, reciprocamente, de que maneira é que o corpo, a forma, a cor que tu atribuíste a essa representação determina a maneira como tu constróis e interpretas a tua experiência. Porque os modelos são sempre visualizações úteis da realidade. Mas, necessariamente, visualizações reduzidas, que correspondem a uma parte da realidade. Podes perceber de que maneira a construção de modelos determina aquilo que tu vais fazer a seguir. De que maneira é que aquilo que eu vou fazer pode ser moldado e determinado pela antecipação e pelo investimento emocional que resulta do meu apego ao modelo que eu fiz? E esta é uma questão importante e que acontece na ciência, porque sendo feita por pessoas ninguém tem um distanciamento tal que permita uma objectividade total em relação ao que se faz no laboratório. Deixas que uma certa forma de pensar um mundo, que te parece carecer de ordem e sentido, interfira com a neutralidade e isenção que devias ter para melhor compreenderes um mundo que é mais complexo e mais aleatório do que muitos de nós gostaríamos de pensar. Entre o que acontece e aquilo que és capaz de perceber tens os teus próprios modelos a segredarem-te qual o pensamento mais conveniente, aquele que melhor cumpre com as tuas antecipações—aquilo que é um resultado válido e aquilo que não é um resultado válido. Numa certa perspectiva—talvez excessivamente didática—é também importante perceber o entorno social do trabalho dos cientistas e perceber que muito do que fazem não se confina ao espaço limitado do laboratório, não se esgota aí, tudo isso tem ramificações complexas. Ainda assim a ciência tem-se, de alguma forma, mantido em territórios fechados e inacessíveis. Parece-me mesmo que parte do fascínio mais recente pela ciência, nomeadamente por parte da arte, tem, de alguma forma, que ver com esta transgressão. Há um apelo quase irresistível na ideia de explorar territórios inatingíveis, vedados, selados. A maior parte das pessoas não tem oportunidade de entrar num laboratório, pelo que não pode perceber o que se passa lá dentro. Não podes falar com os cientistas e perceber facilmente os seus objectos de estudo ou as razões que os levam a investigar as coisas que investigam. Não percebes porque é que aquilo é importante. Não se trata sequer dos cientistas cultivarem ou promoverem esse distanciamento. Não sabem é fazer de outra maneira. Não consegues encontrar uma forma de traduzir adequadamente aquilo para fora dos laboratórios. O facto de termos feito a exposição, O Laboratório Invisível, no Museu da Ciência em Coimbra, parece-me que foi, neste sentido, bastante útil e relevante, não só no contexto do nosso projecto como também na forma como percebes o papel que pode ter um Museu da Ciência contemporâneo. Se tu olhares para a grande maioria dos Museus da Ciência, o que é que lá vês? Vês coisas, geralmente objectos, que acompanham a história da Ciência, vês instrumentos, porventura documentação histórica, vês microscópios desde o séc. xvii, e eventualmente nos museus mais modernos até tens uns gadgets, umas coisas mais ou menos interactivas, muito na linha dos jogos pedagógicos para crianças do Ciência Viva. Tudo isso pode ser muito útil para um público juvenil. No entanto, se quiseres explicar a um público mais erudito as coisas que acontecem dentro de um laboratório, porque é que a ciência é importante, como é que tem melhorado ou piorado as nossas vidas, não tens ferramentas ou mecanismos adequados para o fazeres. Bem sei que há um conjunto de gente de áreas disciplinares diversas a preocupar-se, e bem, com estas coisas, e há muitas teses que se podem escrever e efectivamente se têm escrito sobre isso, mas é verdade também que têm uma divulgação muito limitada. Portanto, se tiveres uma exposição, como esta, num museu que obrigue as pessoas, de uma maneira um bocadinho indirecta a pensarem (não precisam de encontrar uma resposta) e a questionarem-se sobre o que se passa dentro dos laboratórios, porque é que isso é importante, onde é que acaba o cientista e começa o equipamento, quem é que decide o que é que se faz, tudo isso, de alguma maneira, serve um propósito e corresponde a uma maneira enriquecedora de pensar—talvez criticamente—sobre a ciência. E actualmente não é fácil tu documentares isso. Como é que explicas o que é hoje a ciência? Tu entras num laboratório e o que é que vês? Máquinas, caixas pretas ou brancas ou das cores mais variadas. Mas o que é que isso te diz sobre os procedimentos? O que é que isso te diz sobre o que lá se passa? Vamos fazer uma exposição de caixas que são completamente genéricas? Como é que representas, por exemplo, o adn? Não só a molécula e a estrutura mas tudo o que significa actualmente a referência ao adn. Por exemplo, nós mostrámos no Laboratório Invisível uma peça sobre o adn. O que fizemos foi traduzir uma sequência de adn em som. Porque é que não podes traduzir o adn em som? O adn o que é? É aquela escultura inspirada no modelo do Watson e Crick com a dupla hélice que podes ver em Cold Spring Harbor? É assim que é o adn? Não sei. Parece-me que é uma das muitas maneiras de o representar. Mas a verdade é que também pode ser som, pode ser uma escultura de luz, pode ser uma outra coisa. O que nós procuramos, com estas peças, é produzir iniciadores, coisas que iniciam alguma reflexão e te dão pontos de apoio para questionar a natureza das coisas. Foi importante decifrar o genoma humano, porquê? E porque é que isso aconteceu? E quanto dinheiro é que se gastou? E o que é que se aprendeu com isso? E quanto melhor é que o mundo está agora? Nunca ninguém viu dentro de uma célula o adn com a forma daquela escultura da dupla hélice. Aí há todo um nível de entendimento em que é importante confrontares-te com os próprios limites e as contingências dos teus modelos. De que maneira é que isso depois interfere com a tua maneira de pensar sobre o teu trabalho? Para mim este projecto foi muito importante e criou esta e outras interferências que acabaram por ser produtivas. Porque a ciência é bastante mais do que o conhecer ou aplicar o método experimental. As perguntas muitas vezes ingénuas, naives, do Herwig, acabaram por me obrigar a pensar sobre coisas com as quais provavelmente não teria que me confrontar.

N – Existe então uma espécie de cegueira no trabalho dos cientistas?

PP – Absolutamente. Por excelência. Se há área onde essa cegueira é dominante é na ciência. Tu tens uma autoridade bem definida e isso basta-te e não tens que sair dali. Era também por isso que te falava há bocado da arrogância da ciência. Os cientistas, quer individualmente quer ao nível dos decisores políticos, não sentem necessidade de explicar nada a ninguém. É, entre outras coisas, uma questão de autoridade e de legitimidade. Mas na arte também é um bocado assim. Só que há sempre quem pense que se calhar a arte não é tão importante, porque não é vital. Mas é vital. De uma maneira mais directa ou indirecta é vital. É uma pulsão, é uma coisa que é fundamental e faz parte da tua vida. Só que esta autoridade e estas verdades, tanto da ciência como da arte, podem e devem ser questionadas. Da mesma maneira que a arte não deve ser autofágica, a ciência não pode ser arrogante, tem de saber partilhar e essa partilha não se pode limitar a formas didáticas com o objectivo de motivar e ensinar os miúdos da escola, que é outra vez a apologia da ciência pela ciência e pelos seus próprios procedimentos. Tem que ser um questionar mais amadurecido, mais crítico e mais criativo. E podemos pensar nisso de várias maneiras.

N – Podes esclarecer melhor isso da arte autofágica?

PP – Era uma coisa que eu sentia e ainda sinto de vez em quando. Trata-se de uma angústia grande por querer perceber melhor e não perceber bem algumas das coisas que os artistas andam a fazer. Muitas vezes parecem-me discursos que se consomem a si mesmos e em si mesmos. Eles falam e não percebes nada do que estão a dizer ou do que se está a passar. É como assistir a uma conversa entre dois cientistas. Se ouvires uma conversa entre dois cientista podes passar muito tempo sem perceber nada. São letras e números, números e letras, sem uma gramática reconhecível, frases inacabadas, etc. Muitas vezes parece-me uma não linguagem funcional. Eu, durante muito tempo, senti essa espécie de exclusão em relação à arte. Obviamente que é também uma coisa de preguiça. Há naturalmente formas de arte que carecem de um discurso e que carecem de uma iniciação. São de acesso difícil para os não especialistas e tu podes sentir-te excluído. Neste sentido a ciência partilha com a arte a obrigação de se empenhar neste esforço, para chegar aos outros de uma maneira que não seja meramente pedagógica ou paternalista. É evidente que o acesso à arte dá trabalho e que carece de iniciação. Nalguns casos, como no romance ou no cinema, tens talvez referências mais reconhecíveis que facilitam o acesso. Podes não perceber tudo, percebes que há coisas que não percebes, mas entras lá para dentro. Em algumas formas de arte ou na música erudita contemporânea (electroacústica e afins) os territórios estão como que vedados aos não iniciados. Se se entende que é legítimo que a ciência esteja vedada e isolada do resto da sociedade, já não se entende o mesmo na arte. Eu acho que seria muito desejável que houvesse um acesso, uma permutação e uma permeabilidade entre estas diferentes áreas disciplinares. Faz tudo parte da mesma coisa. É evidente que é mais fácil leres um romance e teres uma opinião sobre ele do que leres um artigo cientifico e teres uma opinião sobre ele. Os públicos alvo são distintos e aceita-se que não tenhas os conhecimentos para formular uma opinião sobre uma matéria científica. Mas o acesso não te deve ser vedado e devem existir formas alternativas de o fazer. Voltando ao projecto com o Herwig, à relação da ciência com a arte e em particular à nossa colaboração, podemos conhecer parte da linguagem um do outro, mas, se calhar, isso não é suficiente, se calhar precisamos de encontrar, como disse o Herwig, uma outra linguagem para poder dar expressão a esta projecto que estamos a construir.

HT – Uma coisa fundamental entre arte e ciência é que na arte a falibilidade também existe nos resultados. Tu tens alguns projectos dentro de uma série que não resultam tão bem. E provavelmente não tens uma explicação para isso. Na ciência tens de ter certezas quando publicas, cada passo tem que ser justificado e cada acontecimento é autónomo, está bem circunscrito e tem de ser válido. Para mim, para a minha ideia da arte, provavelmente só daqui a dez anos e em retrospectiva será possível compreendermos completamente as dimensões diferentes do projecto que eu e o Paulo estamos a levar a cabo e a sua validade. Isso vai fazer muito mais sentido do que os subprojectos, pois só então o projecto no seu todo, em todas as suas fases, revela a riqueza das suas articulações e da sua linguagem. Esta é uma linguagem que brinca com a poluição, como nós costumamos dizer, que é transmitir em vários canais uma informação. A corporalidade e este tacit knowledge, este «conhecimento tácito» que tu não podes muito bem traduzir em palavras ou teorias, existe. E penso também que o mesmo ocorre dentro dos laboratórios. Os cientistas são pessoas comuns, que têm muitas afeições em relação aos objectos, têm uma percepção produtiva como nós. Eles já têm uma imagem dentro da cabeça quando estão a olhar para as coisas e de algum modo tentam limpar essas imagens prévias, mas têm sempre uma agenda, têm sempre um objectivo. Para além disso, têm que fazer isto ou aquilo para obter financiamento, etc. Existe um campo de negociação muito interessante, em termos sociais, políticos, económicos, filosóficos.

PP – Há uma coisa importante em relação a isso que talvez se possa questionar. Actualmente, como estava a dizer o Herwig, uma das coisas à qual temos procurado dar corpo é esta espécie de excessiva institucionalização e formatação do próprio procedimento científico. Não fazes ciência sem dinheiro e portanto tens de submeter os projectos a concursos, tens de concorrer a fundos da União Europeia, da fct, das mais diversas agências financiadoras, e para o fazeres tens de ter um projecto, e nele tens de dizer o que vais fazer, tens de antecipar os resultados, tens de antecipar as implicações, tens de fazer um orçamento, tens de antecipar a gestão do tempo e dos investigadores envolvidos, os meios necessários, tens de saber o que vais alcançar ao fim de três, quatro anos, como é que o projecto vai contribuir para fazer avançar uma determinada área do conhecimento, como é que vai contribuir para a internacionalização, para o bem estar da sociedade, etc., etc. E há uma corrente que acha que esta é uma péssima maneira de fazer ciência. É a maneira anglo-saxónica, dominante, de fazer ciência. E algumas pessoas defendem, como a Blue Sky Research, o financiamento de gente e projectos criativos fora do «sistema». Porque se olhares para a História, se pensares no Einstein ou no Fleming, não teriam grandes oportunidades de sucesso no actual modelo de gestão científica, em que existe uma hiper-formatação de todos os procedimentos. A liberdade de exploração científica de uma forma mais criativa é uma coisa que tem sido completamente coarctada por estas regras e espartilhos, por esta formatação, pela ideia de que tens de ter uma hipótese e demonstrá-la por antecipação, de antecipar mesmo o que pode correr mal. Não existe uma aposta na criatividade. Suponho que na arte acontece uma coisa semelhante. Temos participado, por exemplo, com projectos em concursos públicos da Direcção Geral das Artes ou outros financiadores de arte, e existem aproximações ao que se passa na ciência. A ideia é reduzir o risco. Mas reduzindo-se o risco reduz-se também aquela probabilidade de sucesso inesperado e aqueles laivos de génio que acontecem de forma não ponderada, não previsível, tanto na ciência como na arte. Portanto, esta hiper-formatação acabou com uma certa ideia romântica do cientista, que, por seu lado, não passava também de um cliché. O actual sistema é uma maneira de fazer as coisas que é pouco falível, resulta, é funcional, e que objectiva o mais possível os indicadores e os processos. A ciência na sua própria avaliação é hiper-objectiva, hiper-rigorosa. Tu para fazeres a avaliação de um projecto científico sabes que eu tenho um valor científico, que tenho um número, que tenho um número de artigos e que cada artigo tem um número que corresponde ao seu factor de impacto e que somados dão um outro número; que os meus trabalhos foram citados por um determinado número de pessoas. O meu valor pode ser medido por um outro número—o factor H—que relaciona a quantidade com a qualidade do meu trabalho científico. É tudo hiper-objectivo, é quase que a aplicação de um modelo macroeconómico à gestão da ciência. Portanto, corres poucos riscos, o que no global talvez seja uma maneira de funcionar e de garantir alguma objectividade, mas eventualmente aquela genialidade mais ou menos espontânea e não conforme a estes cânones acaba por desaparecer.

N – De qualquer maneira suspeito que os cientistas usam de artimanhas, como o velho Ulisses, para darem a volta a tais constrangimentos?

PP – Sim, o maior e melhor conhecido dos nossos segredos é que normalmente fazemos projectos para investigar coisas que já sabemos. Dizemos que vamos «descobrir» coisas que já «descobrimos» para depois termos oportunidade de fazer outra coisa um bocado mais arriscada. O sistema já compreende de algum modo a sua própria falibilidade.

HT – Para mim foi uma surpresa ao perceber que a ciência funciona num nível industrial muito regulamentado e, de alguma maneira, de uma forma anónima. Trata-se mesmo de tirar a pessoa e a pulsão da pessoa do sistema. Existe um plano geral, existe um interesse em investigar um determinado problema. Julgo que muitos problemas vêem da área militar, outros da área económica. E não é claro que exista uma entidade neutra—ou facilmente identificável—que dite as linhas de investigação da ciência. Para mim isto é fascinante. Tens uma máquina enorme e altamente complexa em movimento sem um centro condutor reconhecível.

PP – Um exemplo extraordinário do que o Herwig está a dizer é o mega projecto da descodificação do genoma humano. O inventário de todas as bases do genoma humano é um exemplo claro de um projecto sem hipótese. Não havia nenhuma hipótese na origem. É um inventário de informação. É verdade que houve durante muito tempo uma máquina de propaganda a alimentar a ideia de que com a sequenciação de todo o genoma humano se ia não só descobrir a origem da maioria das doenças, genéticas ou não, como se ia poder curar algumas. Criaram-se expectativas que obviamente não foram cumpridas

N – Mudando de faixa. No caso da bioarte, em que não observas de fora, como um antropólogo, o laboratório mas em que o artista se converte num cientista, desempenha o papel do cientista dentro do laboratório e leva a cabo experiências com bactérias, células ou o que seja, de certa maneira o artista aí submete-se aos constrangimentos ligados aos procedimentos e metodologias da área cientifica em que trabalha, assim como a regulamentos éticos do que se pode ou não fazer, diria até que está mais constrangido que o próprio cientista. No caso do vosso trabalho nada disso se passa e têm liberdade total de movimentos. Não estão, por assim dizer, a trabalhar sobre a própria matéria oftalmológica, existe uma mistura entre o trabalho artístico e o trabalho antropológico de um Latour ou de um cientista social a trabalhar dentro daquele ambiente. De que forma o vosso trabalho, Herwig, se distingue da bioarte?

HT – A coisa mais interessante para mim é usar uma metodologia indirecta. Um reflexo. Encontrar reflexos de determinadas situações. Quanto a mim, trabalhar dentro do laboratório como um bioartista era a via errada. Eu não acredito que tens um conhecimento equivalente ao do cientista, nem que tenhas um conhecimento muito directo dos processos e dos materiais de investigação cientifica. Obviamente entras em várias transacções com os cientistas e com os objectos, aprendes coisas técnicas, mas se desempenhas o duplo papel de artista e cientista, ficas muito ocupado com as entidades físicas e com as técnicas e perdes a distância do observador, deixas de poder fazer a mediação e a transdução para algo mais geral, para um mundo exterior ao laboratório. Para mim é mais adequada a posição que tenho. Eu não acredito, como artista que sou, que vou aprender as técnicas de um cientista em dois ou três anos. E caso eu conseguisse colocar-me no lugar do cientista, ou chegar a sê-lo, perdia a minha capacidade artística e ia fazer coisas muito pedagógicas. Lá ia explicar mais uma vez os processos do trabalho em laboratório que a escola ou a Ciência Viva faz. E acho essa uma posição perigosa. Neste sentido, a colaboração com o Paulo resulta. Ele tem o conhecimento científico e eu o conhecimento da arte. E parece-me que esta constelação é muito favorável e muito rara.

N – Já agora, gostava que desenvolvesses um pouco mais a tua perspectiva sobre a bioarte?

HT – Eu não deixo de achar importante isso de se tentarem fazer coisas físicas dentro do laboratório e mesmo fazer o caos dentro do laboratório. Acho até que tem graça. Para mim são diferentes maneiras de aproximação a este tópico da ciência pela arte e pelos artistas. Obviamente, em termos estratégicos, é muito favorável ir para o laboratório e fazer arte com materiais vivos. A ciência precisa, até por uma questão de marketing, de artistas que estão a trabalhar dentro do laboratório. E hoje já existe uma máquina que precisa de artistas que vão para os laboratórios fazer experiências, até porque tens esse segmento de bioarte e tens várias entidades do campo científico que financiam esse trabalho. É muito parecido com o que aconteceu entre a arte e as novas tecnologias. Tinhas os festivais, tinhas os lançamentos, tinhas uma expectativa política e industrial de que ia acontecer um evento artístico dentro dessa área, e isso são limitações. Porque és usado, instrumentalizado, para uma coisa de marketing. Por exemplo, na área da ciência, ou de uma ciência industrializada, e em especial a indústria farmacêutica, no caso da bioarte, participa com muito dinheiro porque quer lavar um bocado a sua imagem. Os artistas têm no mínimo alguma credibilidade. Não têm dinheiro, não têm poder, mas têm credibilidade e a indústria farmacêutica por um custo baixo tenta transferir a credibilidade dos artistas para a sua imagem pública. Os bioartistas mais críticos não têm nenhum impacto e, no fundo, não questionam o jogo da indústria farmacêutica. Estas podem dar aos artistas uma pequena porção de campo de jogo e assim parecem empresas mais credíveis, mais abertas, mais responsáveis, mas, no fim de contas, ninguém está a prestar atenção ao que esses artistas dizem. Os SimbióticA, que trabalham com cultura de tecidos, fazem esculturas em tecidos vivos, estão a discutir e a levantar questões éticas a um nível alto, intenso, mas têm a ilusão que o trabalho deles está a criticar os interesses, objectivos e o comportamento da indústria farmacêutica, só que na verdade não é assim. Os Critic Arte Ensemble, que têm estado a trabalhar de um modo muito diferente, muito mais com a reflexão, fazem, quanto a mim, algo muito mais crítico e contundente do que os SimbióticA. Os SimbióticA em todos os festivais, em todas as grandes exposições, fazem a aclamação do trabalho com a matéria biológica, viva, e passam a ideia que podes brincar com isso, que não é complicado fazê-lo. Essa pode ser a mensagem que na verdade está a ser passada cá para fora e não a mensagem crítica que vem dentro dos painéis e dentro dos textos. É muito complicado. As coisas têm muitas faces. No princípio dos anos noventa a biologia genética tinha uma imagem muito má na Áustria e na Alemanha. Todos os discursos eram super negativos, até por causa da eugenia nazi, e parecia um verdadeiro apocalipse que estava a acontecer no mundo. Foi muito interessante como a bioarte ajudou a mudar a imagem da genética nos países de língua alemã. Numa perspectiva histórica os festivais como o Artes Electrónica ajudaram a remover o fantasma da eugenia e a alterar, na Áustria pelo menos, a ideia que a opinião pública tinha sobre a manipulação genética. Não sei qual foi a influência exacta deles nessa alteração mas a arte foi usada para tornar a manipulação genética mais popular e aceitável. Como se esses assuntos se tornassem menos diabólicos por os artistas já trabalharem com eles. É muito interessante reparar como podes ser altamente crítico quando simultaneamente estás dentro do próprio meio que criticas, estás a usá-lo para lavar o dinheiro, de alguma maneira. Mas acho que este é um problema da arte em geral.

PP – Quanto à bioarte em «Wet Lab», eu, pessoalmente, não tenho nenhum deslumbramento especial por essa forma de fazer arte. Não acho que haja nenhum valor acrescentado nisso. Um exemplo clássico é talvez o coelho verde (Alba) do Eduardo Kac. Para mim o acto em si de fazer coelhos verdes ou sapos vermelhos não tem o mais pequeno interesse. O facto de ser feito por um artista ajudou a quebrar um tabu e deu origem a uma série de questões políticas, sociais e éticas importantes. Há gente que pode entrar num laboratório sem ser o cientista. Os artistas podem utilizar a biologia e os materiais biológicos até agora reservados aos cientistas como uma nova forma de fazer coisas. Ok. Agora, essa espécie de fascínio de fazer coisas utilizando os procedimentos técnicos da ciência, eu, honestamente, acho isso uma coisa um bocado pobre e enquanto cientista não me impressiona minimamente, porque é uma ferramenta quotidiana. A manipulação genética, produzir proteínas verdes ou vermelhas ou ter um artista a trabalhar na bancada impressiona-me muitíssimo pouco e acho que não acrescenta nada de significativo, a não ser esse romper das fronteiras disciplinares e do espaço selado do laboratório. Recorrendo a Latour, esta antropologia da vida do laboratório e o seu retrato, com algum distanciamento do artista, pode ser muito mais importante e significativo no aporte, na sua tradução e nas suas implicações quer na arte, quer no entorno social, quer na ciência, do que utilizares os meios e os procedimentos dos cientistas. Nesta área da bioarte e da ciência e arte—como em tudo o resto na vida—importa distinguir o que é importante daquilo que é impressionante. Na cabeça das pessoas, do público, das audiências, é muito importante distinguir estas duas coisas. Compreendo a tentação de alguns artistas em utilizar meios e procedimentos pela sua espectacularidade mediática ou pelos seus resultados, mas que, no fundo, não acrescenta um valor próprio. Temos, numa exposição, uma peça sobre a falibilidade dos procedimentos científicos. Trata-se de um vídeo que apenas mostra experiências que correram mal, resultados de culturas que correram mal. É lixo científico. Para quem não sabe, não consegue distinguir este erro do resultado válido. Mas esta espécie de paralelo com a arte em que o desperdício e o que não vale também vale, em que existe um campo de incerteza em que as coisas correm de uma maneira ou de outra e que não há uma maneira certa ou uma maneira errada de as coisas funcionarem, tem esta tradução na ciência. É uma tradução que me parece bastante relevante e que só foi mostrada porque o Herwig estava no laboratório a ver. Alguém disse, «isto não presta», «esta foi uma experiência que correu mal», «isto não resultou por esta razão». Talvez seja mais importante documentar isto e perceber-se que efectivamente há coisas que correm mal, que há uma falibilidade inerente aos próprios procedimentos do que andar a utilizar os meios técnicos para fazer uma coisa com muito «brilho».

N – Porque é que a biologia contemporânea, a partir da biologia molecular e da genética, atraiu os artistas? E trata-se de um contágio relativamente recente. Tem pouco mais de década e meia.

PP – Por duas razões. Primeiro tem a ver com uma coisa que as pessoas valorizam, que é uma coisa fundamental, o último de todos os segredos: a vida. E depois porque é espectacular. Podes fazer coisas que impressionam. Porque um implante de uma orelha num rato ou no braço de uma pessoa impressiona. São coisas que impressionam e que podem ser feitas. Da mesma maneira que o Herwig disse que precisas de tempo para as coisas amadurecerem e para criares algum distanciamento e perceber a sua importância, na ciência, às vezes, acontece a mesma coisa. Na maioria das vezes as coisas mais espectaculares não são as mais importantes. Podes dizer que se fizeres quadros com o adn e as pessoas puderem levá-los para a sua sala de estar talvez fiquem a saber mais sobre a ciência ou se sintam mais próximas. Mas eu tenho dúvidas que assim seja e tenho também dúvidas que seja esse o objectivo desta arte que se pretende associar às ciências da vida.

HT – O Eduardo Kac é um artista na fronteira. Ele é muito consciente quanto à mediação e iconografia desta linguagem. Em cima do trabalho faz uma coisa muito sofisticada com a linguagem, com as constelações que cria e com as discussões, mesmo mediáticas, que gera. O coelho fluorescente pode ser uma montagem de fotoshop, ninguém sabe. E usa estes pré-conceitos para gerar controvérsia.

PP – Sim, parece-me que o coelho em si não interessa nada. O mais importante foram os discursos e as questões mais ou menos laterais e secundárias que se geraram à volta da própria produção do coelho. Questões políticas, sociais, legais até, como a questão da propriedade do coelho. De quem é o coelho? É do artista ou é do laboratório? É uma obra? Posso vendê-la ou produzi-la em série? Tudo isso é muito mais interessante do que o coelho em si. O coelho esvaziado desses discursos e dessas reflexões não serve nenhum propósito. É esta integração e este entorno mais ou menos fértil que falta a alguma da bioarte que se faz actualmente.

N – Como é que estão a pensar o vosso trabalho daqui para a frente?

HT – Até agora desenvolvemos um processo com entidades não humanas, fazendo um registo dos objectos. A partir daqui vamos mais numa direcção interpessoal. Queremos trabalhar mais com os investigadores. Colocar mais questões de poder e de hierarquia. Como é que os cientistas funcionam num ambiente um pouco estranho ou um nada fora do ambiente do laboratório a que estão habituados? Os próprios investigadores vão tornar-se numa ferramenta, eles recebem ordens de uma outra entidade e vamos também fazer mais coisas performativas.

PP – Sim, passarem para o lado das cobaias. A ideia do investigador passar a ser uma cobaia. Aquilo que temos feito, os tais retratos da vida no laboratório, são paisagens desumanizadas, de alguma maneira, onde não tens elementos humanos, ou quando os tens é pela sua ausência. Só são visíveis porque não estão. Tens objectos com um protagonismo quase inusitado, quase despropositado. É o que sobra depois dos cientistas, é o que está à volta deles. São as tais coisas, de que falava o Herwig, periféricas, menos visíveis. Por exemplo, aquelas sequências de retratos de objectos semelhantes aos cadastrados: vista de perfil, vista de frente [projecto agents]. Porque é que se retrata o cientista e não um objecto? Qual é o protagonismo de um e do outro? E agora temos esta ideia, não sei bem como é que a vamos concretizar, que remete para a relação das pessoas (os cientistas) umas com as outras e das pessoas com o próprio sistema científico, com o próprio entorno. Temos conseguido tirar os objectos do seu contexto, podes levar os objectos para outro sítio, podes dar-lhes protagonismo, podes tratá-los de maneira diferente e aquilo causa-te alguma surpresa, seja pela escala, seja pelo contexto, seja por outra razão qualquer que consegues manipular. Mas como é que se faz isso com as pessoas? Como é que podemos manipular o contexto? Como é que podemos encontrar as tais características peculiares, as tais deformações ou vícios dos cientistas? Como é que os podemos expor noutro lugar? Como é que consegues destacar isso do resto da pessoa? Parece-me um desafio importante. Vamos, no fundo, manipular, dentro do laboratório, o entorno de maneira a criar pistas diferentes, de maneira a criar uma situação de algum desconforto e que denuncie um gesto, um traço do cientista, aquele resíduo que fica depois da pessoa, aquilo que faz de ti um cientista, se é que isso existe. Os cientistas, ou os médicos, por exemplo, estão muito habituados a controlar o seu ambiente. Vamos então baralhar as coisas e tratar aquela questão das hierarquias e das teias e malhas sociais de que falava o Herwig, não só a hierarquia entre as pessoas mas a hierarquia com as coisas, com os discursos, com os símbolos, com o mundo, e como é que eles se reposicionam se retirares algumas dessas âncoras e referências que lhes dão algum conforto e que tornam o meio reconhecível. O que é que sobra? Ainda tens alguns gestos?, os tais preconceitos? Como é que usas isso? No fundo, estamos outra vez a falar de retratos da vida no laboratório, mas agora dos objectos que não são visíveis. Estamos sempre a falar do mesmo nos nossos projectos, ou pelo menos é o que eu gosto de pensar. Temos uma linha condutora que remete sempre para as coisas que estão na periferia do teu olhar, que quase escapam ao teu campo de visão. Coisas que não são visíveis e que determinam de uma maneira mais subtil, inesperada, imprevisível, a resposta em relação aos procedimentos da ciência, que é, no fundo, o que pretendemos questionar.

HT – E também as coisas muito comuns, a que não ligas ou que não tens uma noção delas, do dia a dia, que te são muito familiares. Nós pretendemos alterar uma linguagem muito reduzida que temos usado até agora e pretendemos mostrar que os cientistas quando recebem uma ordem vinda de fora, de uma entidade que eles não conhecem, também não entendem a 100% essa linguagem. Ao alterares o seu ambiente habitual vais obrigá-los a repensar a sua posição, as metodologias, etc., e verificar se eles têm alguma liberdade para mudar as coisas ou de acatar as ordens, se podem fugir. A ideia geral era também trabalhar com as pessoas que dão ordens, elas podem ser incluídas com os cientistas dentro de uma experiência. Pode ser uma coisa muito social, psicológica. Podem-se usar eles mesmos como ferramentas dentro de um experimento de ciência natural.

N – O que é que este projecto, e dirijo-me a ti Herwig, sobre a ciência, acrescenta e de que forma amplia o vocabulário das artes plásticas?

HT – O nosso tipo de trabalho já existe em outros campos, como na arte política, performativa, etc. Nós temos um ponto de partida diferente e também temos ferramentas diferentes. A coisa começa a estar bem definida e eu espero que esta constelação particular resulte e forme um corpo de trabalho que tenha alguma autonomia. Não existem muitos projectos dentro das artes plásticas sobre ciência contemporânea. Tens muitas coisas históricas e tens algumas coisas polémicas, políticas, que são às vezes superficiais ou têm deficits nalgumas partes e este equilíbrio que conseguimos tem de produzir uma coisa nova, relevante em si. Não sei se já atingimos isso, mas o projecto, em si, faz todo o sentido neste momento e provavelmente ainda mais quando tu olhares, daqui a muitos anos, para trás. Isso para mim já chegava. Mas eu tenho sempre muitas dúvidas. Ainda agora, quando puseste esta questão, eu senti-me como um artista muito mau, porque não fiquei lá muito satisfeito com a última exposição. Só que isto, dentro do processo, faz sentido. Não posso garantir que a obra que temos desenvolvido será relevante no mundo da arte. Mas em comparação com muitos projectos que tenho visto, o que fazemos é muito diferente, é, de alguma maneira, algo estranho, e parece-me muito complicado de enfiar numa gaveta, o que é em si uma coisa boa, uma coisa que conseguimos fazer. Mas serão outras pessoas, as que fazem a história e a contextualização, que dirão o que ando a fazer e não eu.

N – Como tens financiado a tua obra?

HT – [risos] Uma luta que continua. As obras anteriores foram financiadas, principalmente por entidades austríacas. Mas as coisas têm sido difíceis e não estão melhorar muito. A situação é quase sempre muito complicada, mesmo apresentando orçamentos baixos.

N – Estás com dificuldades em lidar com as galerias e com o mercado da arte. Porque achas que isso acontece?

HT – Obviamente o que fazemos parece não interessar ao mercado da arte. Não há um público, não há coleccionadores que queiram adquirir o tipo de trabalho que fazemos e também as instituições científicas nunca têm dinheiro para financiar projectos artísticos. No caso do mercado da arte quando o contexto era mais histórico e mais definido era mais fácil. Mas, em geral, todos os projectos na área em que trabalhamos têm grandes problemas para entrarem no mercado. Eu também não entendo muito bem porque é que as instituições científicas não podem comprar os nossos projectos. Acho que para eles, em termos estratégicos, podia ser bom, e faz todo o sentido adquirirem projectos de arte / ciência contemporâneos. Só que não existe uma consciência da sua relevância, nem em Portugal, nem na Áustria, nem quase em país nenhum. Muitas vezes pessoas que têm recursos financeiros para fazerem estes projectos de arte / ciência têm um extremo mau gosto e apenas querem coisas decorativas, ilustrativas, que obviamente nós não fazemos.

PP – Existem algumas excepções. Estou a pensar no Wellcome Trust em Inglaterra, que compram peças destas e as expõem nas suas instalações.

HT – A nossa visibilidade é muito baixa porque estamos mesmo entre os campos da bioarte, das artes plásticas e da arte e tecnologia. Nós não usamos alta tecnologia, nós não usamos organismos...

N – Sinto que o vosso trabalho está muito mais perto das artes plásticas «mainstream» que da bioarte ou das artes tecnológicas. Que até seria relativamente fácil serem aceites.

HT – Pensei também que assim era, mas acontece que quando estou a falar com os curadores e outras pessoas que trabalham nessa área, provavelmente o trabalho não é suficientemente apelativo para eles. Eu tenho a impressão que eles não querem fazer um esforço para entender ou explorar estes tópicos que desenvolvemos. Mas existem entidades minúsculas que estão muito interessadas no trabalho que levamos a cabo. Chegar a esta publicação [aponta o livro Art in the Age of Technoscience. Genetic Engineering, Robotics, and Artificial Life in Contemporary Art] com a participação de vários autores e artistas, significa que nós fazemos uma coisa própria, interessante e existe uma pequena comunidade que conhece o nosso trabalho, o reconhece e valoriza. Mas não temos impacto no mercado da arte, nem no da bioarte. Em termos estratégicos é sempre muito arriscado trabalhar entre as áreas, mudar os campos, os media: uma vez fotografia e vídeo, outra vez um bocadinho de escultura, performance. Isso baralha e confunde. Não cria uma relação mediata. Não é fácil alguém sentir-se, num primeiro olhar, fascinado por isto, nem na área da arte, nem na área da ciência.

PP – É verdade tudo isso mas não devemos dramatizar e as coisas não são assim tão más. Tivemos exposições na Alemanha, na Áustria, em Seul, estamos na Dinamarca num evento sobre bioestética e por aí fora. Há é um grupo reduzido de interlocutores. O nosso projecto tendo muito pouco a ver com a bioarte, parece-me, no entanto, ser uma espécie de corolário mais ou menos óbvio desta proliferação de bioarte. O que é que lhes fica a faltar? Talvez um discurso que permita enquadrar e dar uma espécie de moldura social e cultural a tudo isso que se faz e que eu acho que está um bocadinho aqui.

PP – [O Paulo resolve fazer uma pergunta ao Herwig] A ciência é a nova arte?

HT – A ciência tal como a tecnologia são muito diferentes da arte. Quando eu estive a falar com um cientista sobre a recombinação do adn, para ele aquilo é mesmo real. Ele acredita nisso e tem maneiras de o realizar. A arte tenta introduzir um discurso social e uma crítica muito superficial e não tem muito a ver com os desenvolvimentos actuais. A grande mudança cultural vem das áreas da tecnologia e da ciência, não da arte. Alguma vez a arte influenciou a cultura em sentido lato? Se sim, a ciência não é a nova arte porque definitivamente as transições na nossa cultura vêm da tecnologia e da ciência. A arte é completamente secundária.


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