Alguém disse há tempos «a escola é uma empresa». Fiquei a pensar nesta frase memorável. Pela mesma lógica, podíamos dizer «a universidade é uma empresa», «a Igreja é uma empresa», «o Estado é uma empresa», e mesmo «a família é uma empresa». E de facto, todas estas instituições têm sido vistas pelo prisma dos mercados e das empresas, segundo um modo de análise que se tornou praticamente hegemónico. No entanto, o uso do verbo «ser» nestes contextos merece alguma reflexão. Disse o sábio Adam Smith, que para além da sua obra económica escreveu trabalhos importantes de filosofia do conhecimento e da moral, que o verbo «ser» (to be) podia ser caracterizado como o mais metafísico de todos os verbos. Muitos pensadores procuram evitar este verbo como particularmente conducente a reificações ou coisificações, diminuindo a nossa capacidade de pensamento crítico (na língua portuguesa, ao contrário de muitas outras, dispomos de dois verbos nestes contextos assertóricos, ser e estar). Um movimento de pensamento «anti-Aristotélico», hoje denominado de Semântica Geral, quis proibir e eliminar este verbo dos seus trabalhos, matriz lógico-gramatical de todos os essencialismos, com as suas consequências sociopolíticas e até civilizacionais perniciosas. Construíram mesmo uma linguagem sem este verbo. Mesmo sem ir tão longe, seria salutar evitar o verbo em muitas ocasiões em que se fala com autoridade política: porque não falar das funções, da missão, da vocação ou dos requisitos das escolas, em vez da estipulação dogmática referida? Num mundo saturado de mercados, em que os mercados dominam esferas cada vez mais amplas da vida, devemos pensar nos limites do mercado, especialmente nos limites éticos.

Talvez não seja inoportuno revisitar brevemente a maneira como mercados, empresas e tecnologia invadiram ou estão a invadir domínios inéditos sem justificação plena do ponto de vista da democracia liberal. Neste texto foco a tecnificação de todos os momentos cruciais das nossas trajectórias de vida, seja no nosso tempo seja num futuro próximo, começando no princípio da vida (gestação, nascimento) até seu desfecho (morte e pós-mortem). Com este desiderato destaco algumas das novidades tecno-mercantis em anos recentes. Num texto breve tivemos que omitir a discussão de áreas importantíssimas como os media, as artes, o desporto, os locais de trabalho, entre outras. Mesmo assim, alguns temas centrais foram aflorados e poderão incentivar mais reflexão crítica sobre a actual saturação da vida pelos mercados, quase sempre com o pretexto da inovação tecnológica.

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Nascemos—vamos nascer cada vez mais frequentemente—num hospital-empresa ou clínica-empresa (senão numa ambulância-empresa). Mesmo antes do nascimento, devemos muito a empresas que tratam da nossa concepção nos casos de fertilização in vitro (fiv) (em geral sob controle médico) ou da inseminação uterina, e da gestação (com a medicalização da gravidez e do parto). A reprodução sexual é fácil e absolutamente grátis, embora o sexo sem reprodução seja hoje praticamente todo o sexo nos países ocidentais. A reprodução sem sexo, pelo contrário, só funciona com as «novas tecnologias reprodutivas», e os custos em tempo e dinheiro para os pais, biológicos ou não, que decorrem do seu uso podem ser consideráveis: as técnicas são bem imperfeitas (muitos «ciclos» de tratamento podem ser precisos) e os custos multiplicados. No entanto, o número de nascimentos nesta modalidade de reprodução tem estado a crescer em todos os países ocidentais e representa uma proporção cada vez maior do total de nascimentos: os casais férteis reduzem a procriação natural para níveis cada vez mais baixos (reduzida ainda mais pelo aborto), e os casais inférteis ou homossexuais procuram avidamente a reprodução artificial.1Uma autora feminista diz que depois da luta pelos direitos ao aborto do fim do século xx ou princípios do século xxi, a grande questão equivalente no século xxi será o melhoramento do acesso à procriação medicamente assistida, ou, em geral, à «indústria de fertilidade» ou ao «mercado de fertilidade».2Ou seja, a industrialização/comercialização da reprodução humana numa escala crescente. As sociedades ocidentais poderão estar a evoluir para um modo de reprodução generalizado totalmente inédito, o «modo de reprodução biomédico».3

Consequentemente, os fluxos monetários biomédicos associados aos bebés que surgem como «produtos» (a expressão «manufactura de bebés» é corrente entre os agentes biomédicos) apontam para uma nova contabilização dos nascituros no pib (como acontece quando qualquer actividade se industrializa e se comercializa) e contam certamente para o que se poderia chamar o Produto Demográfico Bruto (pdb) como componente do pib nacional: outrora, os nascimentos eram registados somente nas estatísticas demográficas nacionais, separadamente da contabilidade económica nacional, mas com este processo de mercantilização, com os rendimentos da nova «indústria de fertilidade», a contabilidade nacional tem que acompanhar estas mudanças e registar todos os mercados (à medida que a taxa de fertilidade natural decresce, os investimentos de pais e empresas na fertilidade artificial aumentam, e mesmo as despesas públicas, quando o Estado subsidia directa ou indirectamente a procriação medicamente assistida).

O «mercado de bebés», o baby business no seu conjunto, fiv, os sub-mercados como o mercado de gametas, a transferência ou venda de embriões extra-corporais, o aluguer de mães para gestação, a selecção de embriões extra-corporais pelo diagnóstico de pré-implantação, certas formas de adopção, etc., está destinado a um grande futuro.4Como deve ser óbvio as novas tecnologias reprodutivas propiciam janelas de oportunidade para escolhas de eugenia negativa (eliminação de embriões com defeitos genéticos de toda a espécie) e mesmo, mais lentamente, de eugenia positiva (escolha dos «melhores» embriões), sem falar da selecção do sexo, um direito reclamado em nome da «liberdade procriativa», mas ainda não aceite nos países ocidentais.5

Tendo em conta a empresarialização universal, o mais simples seria registar o nascituro como um empresário, um start-up, potencial, em conjunto com a certidão de nascimento (electrónica-digital), como um equivalente funcional do baptismo na sociedade tecnomercantil onde terão que viver.

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Iremos a uma escola-empresa. Se «a escola é uma empresa» podíamos ir mais longe na visão empresialista da educação. Por exemplo, advogando uma pedagogia que consistisse na formação empresários já nas escolas: segundo doutrinários recentes, a escola devia promover as aptidões que poderão ajudar os alunos a tornarem-se empreendedores e empresários—ou pelo menos bons empregados das empresas hi-tech. Assim, o «currículo empresarial» (enterprise curriculum) devia ser obrigatório por lei, não só o currículo com disciplinas académicas (geografia, história, línguas estrangeiras, por exemplo), como a preparação para os exames nessas disciplinas.6Os mesmos doutrinários salientam também a necessidade da criação duma mentalidade empresarial (entrepreneurial mind-set) pela formação apropriada dos professores de escolas primárias e secundárias: um papel crucial dos professores será «to teach enterprise» (haverá lições também sobre aptidões comerciais nos infantários, não tenho dúvidas). A escola, para estes ideólogos, não só é uma empresa, mas uma empresa para empresas e para empresários.

Mas essencialmente o que perspectivam é a empregabilidade, não tanto o empreendedorismo, apesar do rótulo da educação que favorecem. Não se vê bem se o que mais conta: a educação para a «empregabilidade» (dando uma grande ênfase às aptidões práticas, em vez das aptidões académicas), ou a educação para o empreendedorismo. No entanto, as aptidões na língua materna e em matemática, não são «práticas» no mesmo sentido, embora, de facto, sejam eminentemente práticas para os empregadores. Há uma certa tensão entre a necessidade de bons empregados, a que não se irão necessariamente exigir grandes capacidades de iniciativa e de imaginação para as empresas, e a incentivação do empreendedorismo em geral. Mas como a «flexibilidade» ou a perspectiva de que ninguém vai ter emprego estável que possa desfrutar por muito tempo parece irreversível, também poder-se-ia esperar que as escolas formassem pessoas «flexíveis», embora este desiderato não apareça em qualquer lista publicada pelas associações de propaganda empresarial tão activas em anos recentes. Para os licenciados no Reino Unido, a estimativa mais citada há alguns anos era de que teriam de sofrer em média cinco mudanças significativas de profissão durante a sua vida, talvez como serial entrepreneurs com os seus altos e baixos(como nas suas vidas pessoais poderão mudar de localidade, de parceiros, de género, de sexualidade, de identidade, de nacionalidade, de religião, etc., mais do que uma vez, portanto a «serialidade» representa uma forma comum).7 Possivelmente com muitos altos e baixos ao longo da vida profissional, à maneira dos romances picarescos do século xviii. Possivelmente com vários empregos ou actividades económicas ao mesmo tempo, voltando ao clássico «cabide de empregos» ou «cabide de empresas».

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Depois frequentaremos, sem dúvida, uma universidade-empresa, ou alguma instituição de ensino terciário, empresarializada, no espírito ou na prática. O modelo da universidade pública clássica está a sofrer ataques sucessivos dos governos de vários países ocidentais, com o Reino Unido na vanguarda. Estamos a evoluir para a integração cada vez maior das universidades na economia de mercado. Para alguns cientistas, as universidades podiam viver de patentes, sem dinheiro do Estado, se se tornassem em fábricas de patentes, com a investigação científica dirigida principalmente para assuntos que poderão ser de interesse para essa finalidade. Por enquanto, os Estados irão subsidiar só as disciplinas do stem (sigla inglesa para «Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática»), deixando o ensino das humanidades, das artes e das ciências sociais para as forças do mercado.É triste constatar que alguns jovens professores já consideram natural definir a relação entre professores e alunos como uma relação comercial banal, entre o aluno «cliente» (customer) e o professor «fornecedor de serviços» (provider). Se esta tendência, por si só, continuar, o ethos das universidades será transformado radicalmente. Certamente a experiência universitária foi completamente diferente para as pessoas com mais de 25 anos.

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Quanto estivermos doentes, seremos tratados numa clínica-empresa ou hospital-empresa. Poderemos servir como cobaias, sem o saber (há uma longa história destes ensaios nos países ocidentais), mas ficaremos talvez mais descansados quando nos explicarem que numerosíssimos ensaios clínicos se realizam em países distantes, com gente pobre e iletrada.
A expansão dos mercados numa economia aberta e globalizada implica a expansão do outsourcing, uma macro-tendência potente, um mega-trend (antigamente dizíamos uma «lei», ou uma «lei de tendência») da economia mundial na época da globalização, de que vamos dar alguns exemplos. Se o outsourcing da produção industrial representa a modalidade mais avançada, bem saliente no caso dos eua, onde uma parte substancial da capacidade produtiva das indústrias transformadoras foi transferida para a China a partir dos anos 90, também ocorre em muitos outros tipos de mercados de bens e serviços, mercados que recentemente surgiram em escala significativa devido a avanços na tecnologia biomédica, como aqueles que concernem à reprodução, onde não se trata de força de trabalho barata, disciplinada e não-sindicalizada, mas de «forças reprodutivas» domesticadas ou sujeitos clínicos baratos e dóceis.8 No caso dos ensaios clínicos, a troco de pagamento de quantias ínfimas de dinheiro, de receitas para os hospitais onde se realizam, e perks [gratificações] para os médicos que os realizam ou escolhem os sujeitos a serem testados em países «em vias de desenvolvimento» ou mesmo em «países emergentes» como a Índia, o Brasil e a China. A Índia tem sido um campo privilegiado para estes ensaios clínicos transnacionais, a pedido não só de empresas comerciais normais que querem abreviar o hiato temporal entre o laboratório e o mercado, mas mesmo de organizações não-lucrativas que querem ver avanços biomédicos rápidos, reduzindo o intervalo entre os resultados obtidos no laboratório (wet labs) e a sua aplicação na terapia (em primeira instância, nos eua). Esses ensaios têm sido em grande parte realizados em jovens iletrados desempregados, sem que as condições mínimas do «consentimento informado e livre», máxima fundamental da ética médica em tempos recentes, tenham sido cumpridas (os agentes locais, médicos, clínicas, hospitais, etc., muitas vezes não demonstram muitas preocupações humanitárias). Os locais onde as grandes companhias farmacêuticas realizam estes ensaios clínicos nos países referidos são numerosíssimos, pelo menos uns 2.500 já há alguns anos. Trata-se de um mercado pouco regulado.9

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Se encontrarmos emprego, iremos certamente trabalhar numa empresa (ou várias ao mesmo tempo), a não ser que constituíssemos a(s) nossa(s) própria(s) empresa(s). Aliás, qualquer de nós pode registar-se como uma empresa, ou talvez várias ao mesmo tempo (pelo menos no Reino Unido), possivelmente com a inclusão de todos os membros da família. Seriamos self-employed, como se diz em inglês, empregados de nós próprios, sendo empresa, empresário e empregado ao mesmo tempo, apenas distintos conceptualmente (como numa época não muita remota as crianças podiam trabalhar a partir dos seis anos, não sei em que idade nos poderemos começar a constituir como empresários ou membros de uma empresa10). Já temos uma expressão mais adequada para esta condição, a de sermos auto-empresários, ou constituirmos auto-empresas.

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O trabalho científico será feito em empresas (institutos-empresas, universidades-empresas, laboratórios-empresas), ao serviço de outras empresas, num mercado global de «ciência à venda». Muitos cientistas dos mais «puros» como Einstein requisitaram patentes para vários inventos (neste caso, de bem pouco proveito), mas nessas actividades procediam como se fossem subsidiárias e mesmo periféricas aos seus interesses fundamentais como cientistas. Mas hoje em dia, a figura do cientista livre e independente já cedeu lugar à figura dupla do cientista-empresário ou à figura tripla do cientista-engenheiro-empresário (existem muitos exemplos em Silicon Valley e aglomerações semelhantes noutras regiões dos eua ou noutros países).

Os cientistas-empresários formaram nas últimas duas décadas pelo menos uma boa quota das start-ups em áreas como as novas tecnologias de informação e comunicação, mas brotam cada vez mais em vários domínios da biogenética, sendo talvez o exemplo máximo J. Craig Venter, um dos fundadores da biologia sintética, bem mais radical que a chamada engenharia genética, no sentido comum (mas mesmo ele está ser ultrapassado por geneticistas ainda mais ambiciosos com respeito à manufactura da vida). Numerosíssimos cientistas que fazem investigação em universidades têm ligações fortes com empresas, especialmente nas áreas da genética e da biomedicina, ou são co-fundadores de empresas desse tipo. Mesmo sem esse grau de empreendedorismo, já se encontram muitos cientistas-accionistas, pois são pagos em parte com acções das empresas para os quais fizeram algum trabalho científico, especialmente no caso de empresas biomédicas, da indústria farmacêutica, da Big Pharma (o que não deixa de ser preocupante, dado o conflito de interesses potencial). No limite, teríamos não só um «capitalismo de accionistas»,11 em que acrescentar o valor das acções se torna o critério prioritário para os gestores das empresas, mas também o que podiamos chamar uma «ciência de accionistas», de cientistas-empresários que têm de participar, como empresários, nesse capitalismo de accionistas, e de cientistas-accionistas no sentido que indicámos (até desfrutando de stock options, para os vincular fortemente às grandes empresas, especialmente farmacêuticas), sem esquecermos que os cientistas assalariados trabalham para instituições cada vez mais empresarializadas e dependentes das práticas do capitalismo de accionistas, globalmente falando, qualquer que seja o seu sentido subjectivo de independência interior em relação a este envolvimento. Seria uma modalidade de ciência totalmente imprevista.

Além de empresários, muitos cientistas são gestores nas universidades no que diz respeito às suas equipas, ou em centros de investigação, por necessidade ou por apetência. Muitos mais serão obrigados a tirar cursos de gestão e de marketing já que muito do trabalho científico é feito por equipas inseridas em grandes projectos colectivos.

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Para os libertários consequentes, as Igrejas ou as confissões religiosas em geral, deveriam concorrer no mercado livre sem restrições legais de entrada—como as impostas por alguns Estados—, de autorização e de registo, para o tratamento fiscal e de direito público comparável com o que as confissões históricas têm desfrutado. Qualquer indivíduo poderia registar-se como uma confissão-empresa ou como um sacerdote/ministro de uma qualquer religião (não necessariamente teísta ou deísta, claro), vendendo ou comprando crenças, breviários, liturgias, cerimónias, hinos, etc., registáveis ou mesmo patenteadas como Propriedade Intelectual. Podem ter uma existência puramente virtual, na rádio ou online: «igrejas de rádio» (radio churches) já existiam nos eua e no Brasil nos anos 30, e a religião online tem ainda muito espaço para crescer. Por outro lado, qualquer pessoa terá a liberdade de optar por qualquer das ofertas no «mercado» religioso, possivelmente escolhendo a mais atraente promessa de salvação (como foi descrito já há décadas por eminentes sociólogos da religião), mudar as suas escolhas, criar novas ofertas, ou não escolher nenhum dos «produtos» disponíveis nesse mercado (mas mesmo entre ateísmos, irreligiões e areligiões pode haver várias ofertas). Seria simplesmente levar o padrão norte-americano, de seitas e denominations em concorrência permanente, à sua expressão mais completa. Com certas religiões historicamente não-exclusivistas podem-se praticar várias ao mesmo tempo.12

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Os que tiverem a sorte de possuir genes/alelos de interesse comercial, poderão vendê-los, constituindo talvez uma empresa genética/genómica para o efeito mas de facto hoje as empresas do ramo estão a patentear tudo o que podem. Os ricos, certamente o 1% de que se fala tanto hoje, podem comprar os melhores genes/alelos/superalelos no «hiper-mercado genético» global para o seu próprio melhoramento genético ou da sua prole. O filósofo anarco-capitalista de Harvard, Robert Nozick, no seu livro famoso Anarchy, law and the State (1971), um tratado de filosofia política bastante influente, falou de um «supermercado genético» mundial a que todos os pais deveriam ter acesso livre, pelo menos legalmente e moralmente, sem interferência dos Estados, das Igrejas ou de qualquer outra autoridade. O mercado livre de genes, de super-alelos especificamente, tem sido defendido por vários bioeticistas numa versão do que se poderia chamar o liberalismo biomercantil, tanto no domínio humano como noutros.13Alguns aceitam as implicações mais radicais desse mercado, tal como a possível constituição pela «reprogenética» (a combinação das tecnologias genéticas com as tecnologias reprodutivas) de duas classes biológicas ou biogenéticas, os «ricos em genes (alelos desejáveis)» e os «pobres em genes». Uma sociedade dual ou pelo menos estratificada em termos genéticos claramente definidos, talvez fenotipicamente, e provavelmente legitimada pela alegada superioridade genética da casta dominante.

Mesmo hoje, é preciso ter muito cuidado, porque nas últimas três ou quatro décadas a questão sobre os direitos de propriedade sobre os «nossos» genes, os genes residentes no «nosso» corpo, que foram identificados e «trabalhados» (processed) por empresas biomédicas, tornando-se Propriedade Intelectual dessas empresas, tem sido objecto de disputas legais em vários países, chegando mesmo às últimas instâncias judiciais, com desfechos diversos. Mesmo que não se chegue à situação de perdermos qualquer direito de propriedade aos nossos genes, ao nosso adn, quando e na medida que sejam de interesse para uma qualquer empresa biomédica, e como a biotecnologia, com as suas promessas de novos medicamentos, biocombustíveis, alimentos, etc., avança rapidamente, com o apoio substancial de vários governos, a lista de genes humanos patenteados irá crescer, pelo menos nos países onde esta prática é permitida pela lei. Em 2005 já se contavam mais de 4 mil genes humanos patenteados, ou seja, mais ou menos 1/5 do nosso genoma. As patentes de genes referem-se a sequências de genes ou segmentos de genes ou a proteínas produzidas por genes, ou seja, estruturas, funções e processos dos genes. Na sua grande maioria as patentes em questão não protegem invenções propriamente ditas, mas as descobertas de como sequenciar genes ou matérias afins. Talvez pela primeira vez na história o sistema de patentes, garantias estatais, foi utilizado para proteger os lucros decorrentes de descobertas, e não de invenções.14Os críticos liberais do sistema de patentes, que supostamente favorecem os mercados livres, notam que só neste domínio é que as patentes têm incentivado a pesquisa e desenvolvimento das empresas, quer dizer na exploração de descobertas que não deviam gerar direitos de propriedade.15

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Além do nosso património de genes, possuímos órgãos que poderão ser também de interesse biomédico, e para esses efeitos recomenda-se que nos registemos como empresas individuais de venda de órgãos (ou mesmo de membros), mesmo se não o fizermos por algum tempo, à espera, por exemplo, do melhor preço no mercado (a venda de órgãos é proibida, mas existe um mercado negro nesta área). Com os avanços da biomedicina, tornou-se possível transplantar certos tipos de órgãos humanos com êxito, e com relativa segurança para os doadores. Nas próximas décadas, o leque de órgãos inter-transplantáveis entre corpos humanos nestas condições irá aumentar, tornando possível com o tempo uma gradual modularização do corpo humano (sendo a modularização um dos princípios constitutivos da industrialização, tendo avançado especialmente nos eua—um belo estudo sobre esse país entitula-se Modular America—nada de surpreendente nesta variante de modularização no mundo da biomedicina). O Homem Modular, biologicamente, ou melhor, organologicamente falando, representaria, por assim dizer, uma versão biotecnológica do corpus mysticum, como também, até certo ponto, a globalização de mercados biohumanos da reprodução, e as migrações, resultam numa espécie de panmixia, mantendo de facto a unidade e unicidade biológica da espécie humana, que certos reprogeneticistas gostariam que viesse a desaparecer.

Com as novas técnicas de transplante, e as carências de doentes com órgãos disfuncionais, surgem novos mercados, ou pelo menos mercados negros (há sempre empresários para estas actividades). Como no caso de outras tecnologias avançadas biomédicas, surgem questões de ética espinhosas, dilemas, aporias, predicamentos, sobre a legitimidade destes mercados e das alternativas nas circunstâncias contemporâneas (no futuro, a medicina regenerativa e as próteses electromecânicas mais sofisticadas, como o coração artificial que poderá ser comercializado nos próximos anos, poderão mitigar, mesmo que não dispensem completamente, a necessidade de transplantes, e nessa conjuntura estas questões seriam menos urgentes).

Os ricos podem comprar os melhores órgãos mais rapidamente no hipermercado global de órgãos humanos, no duplo mercado, o mercado legal e o mercado negro, embora de facto talvez seja apropriado falar também, neste contexto, como noutros, de mercados cinzentos. No entanto, não se trata só do mercado de órgãos Norte-Sul, ou Sul-Sul. Como as soluções de mercado são recomendadas pelos economistas—fazem parte do credo de um grande número de think tanks prolíficos através do mundo—e cobrem áreas da vida cada vez mais extensas, a entrada de órgãos humanos para transplante num mercado legal específico tem sido defendida para providenciar a maior oferta de órgãos para transplante em muitos países (a procura deve-se em parte ao envelhecimento das suas populações resultando das Revoluções de Longevidade), pois as doações, embora tenham estado a crescer significativamente, ainda ficam aquém da procura.

O mercado global de órgãos humanos foi defendido pelo filósofo americano James Stacey Taylor no livroStakes and kidneys: why markets in human body parts are morally imperative (2005). Segundo este autor, não há nada de imoral em alguém comprar órgãos quando o vendedor não tem recursos, está desesperado e recorre à venda de partes do seu corpo porque não tem alternativa para sobreviver. Além disso, o filósofo argumenta que temos o dever moral de participar nesse mercado de órgãos. Ele não quer dizer que exista uma obrigação moral de doar órgãos, para familiares ou mesmo para estranhos, como muitos argumentam, filósofos ou não filósofos, doação que os Estados querem incentivar cada vez mais, dada a procura crescente de órgãos para transplante, mas o dever de os vender, se os não quisermos doar gratuitamente e voluntariamente, se e quando a extracção de órgãos para transplante não prejudique a nossa saúde e esperança de vida. Mesmo com estas restrições, o pool de potenciais vendedores de órgãos seria enorme, e o mercado seria fabuloso, numericamente e crematisticamente. Quanto à extracção de órgãos de moribundos, como as milhares de pessoas que sofrem acidentes automobilísticos fatais todos os anos, os governos de vários países têm considerado várias medidas para a incentivar, por exemplo, exigindo, como condição necessária para se poder obter ou renovar uma carta de condução, que seja feita uma declaração para permitir o transplante, recusar o transplante ou pensar no assunto (no Reino Unido esta medida poderá ter efeito em breve). A expectativa é que nessas circunstâncias um bom número de pessoas, confrontadas com a obrigação legal de escolher, irão optar pelo consentimento prévio, e ficarão assim a pertencer à lista nacional (electrónica, claro) de doadores. Não fica claro se se poderá mudar de opinião e exprimir esta mudança de opinião de algum modo que possa ser registada e acatada pelas autoridades.

Uma proposta muito recente pode apontar para o futuro, não só da constituição de um mercado de órgãos humanos nos países ocidentais que o têm recusado até agora, mas como do seu inter-relacionamento com outros mercados, que lidam com bens e serviços completamente diferentes. A proposta foi de que os estudantes ingleses16—já que têm que pagar propinas cujo nível atinge 9.000 libras esterlinas por ano num grande número de universidades públicas ou semi-públicas como são hoje praticamente todas e não só as mais prestigiadas— pudessem vender um fígado por 28.000 libras, mais ou menos 25–28.000 euros, um preço razoável, ao que parece, tanto para os compradores como para os vendedores, sendo uma quantia equivalente ao rendimento médio anual no Reino Unido, aliviando o fardo da dívida bancária que contraem para pagar as propinas universitárias. O clima de opinião a respeito da venda de órgãos para transplantes ainda não se transformou ao ponto desta proposta ser aplaudida como uma das soluções legítimas para a crise do financiamento das universidades pelas propinas, como para o défice de órgãos para transplante, mas o próprio facto de a proposta ter sido colocada por uma investigadora sénior na sociologia da medicina numa universidade escocesa, é digno de nota. E se a proposta foi feita no caso de estudantes ou licenciados, outras propostas análogas podiam ser feitas, por paridade de raciocínio, com respeito a desempregados e indigentes, por exemplo, ou qualquer pessoa ou categoria de pessoas numa situação económica muito difícil, com a mesma justificação, mas obviamente o aumento da oferta poderia diminuir o preço e o rendimento desta operação.

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Com respeito à reprodução humana, o mercado de gametas, de óvulos e de esperma para a inseminação artificial humana já foi globalizado (embora haja países que proíbem a exportação de gametas, como a Índia, nenhum parece proibir a sua importação, e de qualquer modo o turismo reprodutivo internacional pode superar essas barreiras legais). Existem tabelas de preços que se podem consultar facilmente online, com empresas especializadas, embora este mercado não esteja ainda suficientemente diferenciado e competitivo, com um défice da oferta no caso de várias etnias nos eua, no Reino Unido, e provavelmente noutros países também. Os óvulos das alunas de licenciatura de Harvard são, de longe, os mais caros nos eua: parece haver uma correlação forte com o ranking internacional das universidades no caso norte-americano (seria mais económico determinar o ranking das universidades por este indicador do que pelos modos correntes).17 A escolha dos doadores de esperma pode ser feita por vídeos, ou online, segundo os dados biométricos (a altura, em particular), atestados médicos, o curriculum educacional e profissional ou os resultados dos sat [Scholastic Aptitude Test], dos doadores disponíveis, e fotos, sendo os preços bem menores que no caso da doação de óvulos.18O mercado de gametas, mesmo quando se trata de um mercado negro, tem sido predominantemente Norte-Norte, ou doméstico, ao contrário de outros mercados biológicos, muito mais transcontinentalizados e seguindo um gradiente económico, com gente dos países mais ricos sendo os compradores, como no caso dos mercados dos órgãos, dos genes, ou da gestação, sem falar de mercados biológicos transnacionais mais inocentes, como o dos cabelos. No entanto, se propostas como a referida acima, de iniciar a compra e venda de órgãos dentro dum país do Norte forem aceites, o mercado de órgãos humanos legal podia ser também nacional.

11

A gestação humana, ou o «trabalho reprodutivo» das mulheres, como outras formas de trabalho, pode ser outsourced, neste caso sóa outras mulheres, grátis, ou por um certo preço, familiares (irmãs, mães, avós, tias, primas), amigas, ou estranhas, com muitas implicações não convencionais para as relações parentais e de filiação. Em princípio, o assunto podia ser tratado directamente online, como nos dating sites, mas já existe um mercado para o outsourcing da gestação a mulheres em outros continentes, segundo os preços, e outros factores, com empresas a tratar deste negócio delicado, e os preços podem variar segundo os países e as preferências dos pais genéticos. Neste domínio também, as regras legais podem não estar muito bem definidas, especialmente devido a questões de jurisprudência identitária quando se trata de outsourcing transnacional e especialmente transcontinental. Na França, recentemente, bebés nascidos de embriões de pais biológicos, ou melhor, genéticos, franceses, implantados em mulheres indianas como as suas «mães de aluguer», foram negados a cidadania francesa, quando a regra geral prevalente era que o filho de cidadãos franceses, onde quer que nascesse, seria francês.19A República Francesa, dirão alguns, continua obcecada com a ideia que o ventre que dá nascimento aos filhos biológicos de cidadãos franceses (trata-se de um casal homossexual) tem que ser também de nacionalidade francesa: uma espécie de proteccionismo reprodutivo… Casos como estes demonstram o conflito entre Estado e mercado numa área onde as pré-definições de cidadania, mesmo pelo jus sanguinis,não previram este tipo de situações: especialmente quando se trata dum Estado de elevada «estatidade».20

Todas estas questões perderão a sua razão de ser quando chegarem os úteros artificiais, com todas as funcionalidades necessárias e a gestação poderá então ter lugar fora de qualquer corpo biológico natural, humano ou não humano, em condições perfeitamente controladas. A ectogénese, no sentido estrito do termo, em que todo o processo desde a concepção não-sexual, extra-corporal, até a hora em que o nascituro possa ter uma vida independente, decorre dentro do útero artificial, fora do corpo humano ou de qualquer outro corpo biológico natural. De certo modo, seria o desfecho da Revolução Reprodutiva humana das últimas décadas. Revolução anunciada com brio em 1923 por um biólogo britânico, que só verdadeiramente se iniciou em 1978 com o nascimento do primeiro bebé concebido num tubo de ensaio, embora se possa datar também com a introdução da pílula anticoncepcional feminina (digo «desfecho» se excluirmos a clonagem reprodutiva humana). Com a combinação das novas tecnologias reprodutivas e da engenharia genética, a Revolução Reprodutiva podia transformar-se numa Revolução Reprogenética.

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O sangue humano para transfusões já é comercializado há muito tempo nos eua, onde há gente com poucos recursos para quem vender sangue regularmente pode ser uma fonte de rendimento significativa por anos e anos. A introdução do mercado de sangue no Reino Unido diminuiu a oferta voluntária de sangue, considerável, que durante décadas tinha sido uma fonte de orgulho para o país. O cientista social Richard Titmuss no seu livro clássico de 1971, The gift relationship, já tinha avisado que um efeito de crowding out da oferta voluntária de bens para fins altruístas iria ocorrer pela mercadorização, com uma deterioração da qualidade, o que poderíamos chamar o «efeito Titmuss». Efeito patente com respeito a outras modalidades de dádiva, de altruísmo, com a introdução de mercados, escalas de preços, etc.21É interessante notar que a mercadorização do sangue foi uma intervenção pioneira na promoção de biomercados humanos legais em grande escala nas sociedades tecno-mercantis: depois do sangue, gametas, tecidos, células, órgãos (provavelmente legalizados em breve), etc.

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Há um processo pendente no Supremo Tribunal dos Estados Unidos que concerne à questão de os médicos deverem ser ou não obrigados por lei a vender a empresas farmacêuticas os relatos das suas receitas para os seus pacientes, arquivadas como dados digitais. Como em todos os outros casos onde se exige que os dados sejam arquivados em forma digital (exigência praticamente universal hoje), fica praticamente garantido o seu acesso, eventualmente, sem o conhecimento das pessoas cujos dados foram assim arquivados, mesmo sem o conhecimento, ou pelo menos sem o consentimento, dos profissionais que se comprometeram em boa fé em assegurar a sua privacidade e intangibilidade. O acesso a esses e-dados será por vias legais, semi-legais ou ilegais, pelo hacking ou pelo data-mining, ou o «ciber-roubo». O acesso a esses dados para efeitos comerciais, como no caso citado, é às vezes assegurado pela lei (no caso de dados protegidos pelas barreiras da segurança nacional, a ciber-espionagem e a ciber-guerra tornam-se cada vez mais sofisticadas). Seja como for, a extracção e armazenamento de dados digitais torna mais fácil a exploração comercial, não só nestes casos, mas nas nossas ciber-vidas normais, nos intervalos não preenchidos pelas actividades profissionais ou as transacções comerciais, com o correio electrónico, as sms ou os online chat, ou as visitas à Internet (não só ao Facebook): todos estes episódios de comunicação electrónica, geram cumulativamente a «pegada digital» e a «sombra digital» dos utentes, mesmo sem o hacking propriamente dito, que interfere mais brutalmente com a privacidade. Mesmo os mais entusiastas pela «Revolução dos Dados», que o registo das transacções comerciais, profissionais e outras propiciam, quando digitalizadas, reconhecem que toda informação digital é potencialmente comercializável, sendo toda a informação digital mercadoria mais cedo ou mais tarde.

13a

A comunicação electrónica, com a «revolução digital», tornou-se um grande multiplicador e acelerador da mercantilização universal, universal em extensão geográfica, e também no escopo do que pode ser incluído no processo, mensagens, imagens, sons, ideias, informações, bens físicos, sexo, objectos, propriedades, armas, etc. A globalização financeira, aliás uma alavanca crucial da globalização em geral a partir dos anos 70, embora ainda seja uma «semi-globalização», porque o mundo não é assim tão liso como foi anunciado, representa por sua vez um mecanismo de mercantilização acelerada. Os instrumentos financeiros, cada vez mais «sofisticados», são processados nas Bolsas, numa grande proporção, pelo high-frequency computer trading (também denominado «algorithmic trading,» ou «black-box trading»), quer dizer, por algoritmos sofisticados, elaborados por matemáticos e físicos formados nas melhores universidades (os quants). As proporções cada vez mais amplas das transacções negociadas por algoritmos, e não por humanos, nas Bolsas de Valores chegaram já a cerca de 75% ou mais nos eua, em 2011. Esta proporção, embora menor nas Bolsas europeias, está a aumentar cada vez mais, mas possivelmente sem chegar à automatização total, a 100 % dos negócios de acções, mas aproximando-se significativamente deste limite, certamente ultrapassando os 80% e mesmo os 90%, reduzindo os operadores humanos a uma pequena minoria, tratando de uma porção bem pequena do volume e valor dos negócios bolsistas. Tendo em conta o stress desta actividade para os agentes humanos (alguns quase morrem todos os dias, pelo menos assim o dizem aos investigadores), esta substituição será de certo modo positiva. Mas, como sabemos, não obstante as vantagens apregoadas, como maior rapidez e eficiência, os efeitos globais desta substituição de humanos por algoritmos, por programas de software, neste domínio têm sido perversos para a economia real, bem patentes especialmente desde 2008: a «eficiência» e rapidez nas transacções financeiras não é necessariamente conducente à estabilidade económica global, antes pelo contrário.

Os robôs negociadores de acções, os robôs que tomam conta cada vez mais das transacções das Bolsas, «robot traders», representam uma espécie de vanguarda dos robôs inteligentes (com programas de software sofisticados) que já se ocupam de variadas tarefas da «economia de conhecimento», substituindo a wetware dos profissionais humanos, cujos cérebros são incapazes de processar rapidamente as grandes quantidades de dados (notícias económicas e financeiras neste caso) que chegam a cada minuto de toda a parte, com a compressão máxima do ciber-tempo e do ciber-espaço. Os «robôs cientistas», já desenhados numa forma elementar há alguns anos, e avançando lentamente, mas já capazes de descobertas científicas, com resultados inéditos, e os «robôs jornalistas», que só começaram a funcionar este ano, ainda não funcionam numa escala comparável (mesmo assim o «jornalismo assistido por computador» e o «jornalismo computacional» já estão na moda nos eua). O «robô conversador», interactivo, que ensina a falar Inglês online, é uma novidade no Japão. Não se espera que possam substituir os cientistas ou jornalistas não-robóticos tão amplamente num futuro próximo.22

14

Pagaremos impostos a um Estado-empresa, ou melhor, a um Estado de empresas locais ou nacionais, ou a um Estado em vias de empresarialização permanente. Antes disso, o comportamento dos funcionários do Estado, da administração pública, dos partidos políticos e dos eleitores, já tinha sido analisado pelos politólogos em termos de mercados de votos, da concorrência de empresas, por analogia com a análise microeconómica das empresas e dos empresários, sugerida já por Schumpeter em 1942 (entre outros dos seus contemporâneos) com respeito aos partidos políticos e às eleições parlamentares ou presidenciais competitivas e livres: a própria expressão «political marketing» difundiu-se no Brasil há trinta anos. A nossa relação com o Estado, se a palavra ainda sobreviver (a palavra «Estado» é pouco favorecida nos países anglo-saxónicos), se as tendências correntes prevalecerem, será de fregueses/clientes de determinados serviços prestados por uma empresa sui generis ou consórcio de empresas, com preços transparentes naturalmente.23Os cidadãos potenciais vão comportar-se como consumidores ou investidores, procurando os maiores rendimentos políticos pelo melhor preço, sem fortes preferências pelo território onde viveram praticamente toda a vida (os bilionários já se comportam assim, emigrando para onde os impostos são mais baixos). Idealmente, todos os indivíduos adultos poderiam escolher no mercado internacional a melhor oferta estatal, tal como fazem as grandes empresas ou os maiores empresários hoje com respeito às melhores «jurisdições fiscais», fugindo assim aos impostos dos países com mais despesas sociais. Esta mobilidade podia ser facilitada se a prática de as pessoas se registarem anualmente como querendo ou não continuar a aceitar a nacionalidade de que desfrutam, possivelmente desde a nascença, por exemplo, querem ou não continuar a ser franceses ou reclamarem o direito de escolher outra nacionalidade, fosse institucionalizada.24Os nossos passaportes seriam então emitidos por empresas.25

A moeda deixará de ser monopólio do Estado, ou das uniões monetárias, como o euro na ue, e empresas privadas poderão fornecer moedas em concorrência num mesmo território (aliás, hoje mesmo, quem «produz» o dinheiro que aparece nas estatísticas nacionais e internacionais são predominantemente os bancos não estatais).26

15

Se ainda houver forças armadas vinculadas a Estados, serão bandos de mercenários: já se chamam assim, injustamente, aos voluntários que hoje constituem as forças armadas dos países que abandonaram o serviço militar obrigatório em tempo de paz. O mercado internacional de armas, tão importante na economia mundial há várias décadas, poderá ser suplementado por um mercado mundial de militares, ou de «especialistas da violência», que por enquanto só existe em números muito limitados. Alguns programas do Pentágono, além de planearem a introdução de «super-soldados», com exo-esqueletos para carregar mais equipamento sem dificuldades de maior,27 e mobilidade comparável ao dos gigantes dos contos de fadas, encaram a substituição de soldados por robôs armados, de tanques tripulados por tanques controlados por robôs, dos aviões de guerra ou helicópteros tripulados pelos drones, aviões ou helicópteros armados com mísseis, das mais variadas dimensões, assistidos por ciber-insectos diversos para a vigilância, etc., robotizando os conflitos armados (as guerras inter-estatais seriam entre robôs e robôs). Isto em conjunção com a ciber-guerra electrónica, defensiva ou ofensiva, que está a ser travada por um certo número de países há décadas, entre vírus e worms de computador (acompanhada por ciber-espionagem e ciber-terrorismo, nas suas variantes industriais, comerciais e políticas).

16

As polícias serão todas privatizadas (as melhores empresas de polícia irão sobreviver com certeza num mercado muito competitivo), segundo a proposta de economistas neo-liberais.28A não ser que cada indivíduo seja encarregue de ser polícia, ou então assume um papel policial, part-time ou full-time, nas horas vagas ou nas férias, talvez em troca de uma pequena redução nos impostos (ou, ainda melhor, descontos nos supermercados). Muita vigilância em todos os espaços públicos (e não só neles) já é feita por cctv ( os closed-circuit television proliferam no Reino Unido, com a maior densidade per capita de cctv). Os smartphones, com as suas capacidades fotográficas poderão ampliar esta vigilância, que passará a ser de todos por todos, modificando assim o ditado de Hobbes,29sem custos para o Estado, para os contribuintes. Já há quem exija câmaras de vídeo em todos os ministérios, em todas as repartições públicas, inclusive consulados e embaixadas (alguns diriam mesmo: em todos os tribunais). E também tudo o que se discute nos Parlamentos devia ficar sob a observação, por câmaras de vídeo, ou outros meios análogos, para os cidadãos ficarem sempre a par do que passa lá em cima. No entanto, se e quando o Estado se empresializar completamente, seria de esperar que as empresas sucessoras do Estado não-empresarial em questão gozem dos direitos de privacidade comercial, que normalmente protege os processos decisórios internos às empresas comerciais («privadas», precisamente), que ninguém nega normalmente. Os segredos comerciais são melhor protegidos que os «segredos de Estado».30

17

Quanto ao nosso envelhecimento e senilidade, que remédio para a grande maioria senão procurarem abrigos e asilos cada vez mais empresarializados: devido aos constrangimentos legais ainda existentes, e o peso da ideologia dos direitos humanos, haverá ainda algum respeito pela pessoa humana, mas o interesse essencial dessas empresas em nós será como fontes de rendimento, como mercadorias.31Trata-se certamente de uma área onde a carência de projectos de «empresários sociais», de invenções sociais para lidar com um fenómeno sem precedentes nas sociedades modernas, se nota ainda mais que em qualquer outra. No entanto, hoje surgem mais rapidamente soluções tecnológicas e não sociais, como, por exemplo, a introdução de robôs de companhia, de robôs-assistentes de enfermagem, de robôs domésticos (limpeza da casa, segurança, cuidar da roupa, entre outras tarefas), robôs-mordomos, etc., para facilitar a vida dos mais idosos ou vários tipos de deficientes, em conjunto com uma panóplia de monitores, chips subcutâneos, sensores (nas camas, nas cadeiras, etc.), sem falar de nanosensores nos corpos, câmaras de vídeo, assegurando um contacto permanente bilateral dos idosos, especialmente os isolados, com médicos, enfermeiros e hospitais (a «telesaúde» ou telehealth) e outras agências. Na Coreia do Sul, por exemplo, o governo espera providenciar pelo menos um robô por cada família (household) para o ano 2020 (seriam milhões!). Na União Europeia também se projecta o desenvolvimento de «robôs companheiros para os cidadãos». Note-se que, com respeito a problemas humanos e sociais desta gravidade, recorre-se acima de tudo à intensificação e extensificação tecnológica, microelectrónica, computacional, robótica, da vida. Seriam precisos muitos robôs para atender a todas as carências das pessoas que sofrem de demência, por exemplo, ou robôs extremamente versáteis.

18

Com a morte, os nossos cadáveres serão sujeitos a um processo de venda de todos os órgãos, tecidos, ossos, cérebros, etc., de interesse para algum hospital, clínica de investigação, laboratório, museu, galeria de arte, artista ou psicopata (muitos serão oferecidos grátis, incondicionalmente, mas mesmo assim, a sua extracção requer a intervenção de alguma empresa especializada, e isso tem custos, e alguém terá de pagar), a não ser que haja o interesse, o dinheiro e o apoio moral, técnico ou financeiro de parentes ou amigos de simpatias «imortalistas», ou pelo menos, se não o forem, dispostos a cumprir os «testamentos vitais» dos defuntos, para recorrer à criogenia, nos países onde esta prática é legal, na expectativa de que, dentro de duas ou três décadas, com os avanços da biomedicina, se possa realizar uma eventual ressurreição, prática que envolve o congelamento, a criopreservação dos corpos, ou só dos cérebros, que na sua segunda vida biológica estariam associados a um novo corpo (por enquanto há só umas poucas centenas de criogenizados à espera, em várias instalações, nos eua).32

Se não recorrermos à criogenia, e se ficar algum resíduo a tratar depois da extracção dos órgãos, etc., esses restos mortais serão processados por um crematório-empresa (a mais bem sucedida modalidade da industrialização do tratamento dos mortos33).

19

Depois da morte, a nossa imagem póstuma poderá ser gerida, no caso de termos deixado um certo capital para estes fins, por uma empresa (como já acontece), que se poderá encarregar, por exemplo, de dar o nosso nome a uma estrela, pelo melhor preço (o mercado para este efeito já existe, e há imensas estrelas).

A nossa morte pode ser documentada exaustivamente, se quisermos (ou mesmo se não quisermos), e os custos não serão elevados. A documentação audiovisual, digitalizada, da morte poderá ser arquivada como memento mori. Podíamos chamar «tanatoteca» a este tipo de arquivo.

A auto-documentação electrónica de tudo o que fazemos e das nossas imagens pari passu, já parcialmente realizada na vida quotidiana com os Iphones, pode ser ampliada quase ad infinitum. Podíamos chamar «e-bioteca» ao arquivo de vidas humanas, em princípio, o arquivo digital da totalidade de cada vida individual, no limite em correspondência biunívoca com tudo o que fizemos, e talvez mesmo tudo o que se passa no nosso cérebro, com as tecnologias de neuroimagens comofmri [functional magnetic resonance imaging] podem revelar electronicamente (audiovisualmente por enquanto, mas no futuro talvez também com sensores gustatórios e olfactivos). Teremos a nossa vida, a vida que vivemos em primeira mão, e a nossa e-vida, ou a nossa vida digitalizada em simultâneo, que poderá ser arquivada numa bioteca familiar ou museológica, virtual: como já vivemos online uma boa parte do nosso tempo, especialmente os hiper-conectados (com câmarasweb ainda mais directamente), a transferência da nossa vida biológica, analógica, para a vida online, electrónica, digital, na íntegra, não representará um grande salto.34

E já surgiram «grupos memoriais» via Facebook. Nestes grupos virtuais comemorando os falecidos, partilham-se fotos e vídeos do falecido, podcasts, gravações de todo o tipo, e links, além de testemunhos diversos e os arquivos pessoais, inclusive e-books, na sua totalidade: como o ciberespaço é infinito, todos cabem, humanos e não-humanos, todos os seres a que damos valor.35As nossas vidas podem ser filmadas/audio-vídeo gravadas na sua totalidade, 24/7, minuto a minuto: a tecnologia está disponível, e já há quem se disponibilizasse para o efeito. Estes testemunhos, recordações e outros actos memoriais no grupo podem prolongar-se através dos anos, sem as limitações do espaço físico, das ocasiões breves, liminais, dos rituais funerários e piaculares que ainda se observam e da memória colectiva. Uma espécie de quase-imortalidade, senão do corpo, ou da consciência, pelo menos da «alma virtual», uma versão electrónica da «imortalidade subjectiva» comteana (Auguste Comte), assegurada através de uma grande rede social digital, mas provavelmente também, mais cedo ou mais tarde. através de outras. Para os que forem objecto de algum grupo memorial—potencialmente todos os mortos (humanos) poderiam gozar deste tipo de tratamento—o mais provável será uma estratificação de status e prestígio dos defuntos, com os seus ratings e rankings, tanto depois como antes da morte, pois a reputação póstuma pode variar imenso. A imensa maioria ficará no limbo póstumo virtual. Haverá, no entanto, oportunidades de mercado com respeito a este assunto, e também para empresários inovadores.

Notas

[1] A questão é um pouco mais complicada que a distinção entre fertilidade e infertilidade, e não só por razões médicas. Já há casos no Reino Unido de mulheres jovens e férteis (entre os 18 e os 25 anos, nas melhores fatias etárias para a procriação natural) que preferem a inseminação artificial, recorrendo a sites que oferecem esperma, grátis ou não, de indivíduos ou agências (estas bem mais caras), porque, sendo economicamente e profissionalmente independentes, querem ter filhos com a máxima liberdade, quando quiserem, sem sexo, sem parceiros, sem amor, sem as complicações das relações pessoais. Portanto, a mera existência da tecnologia incentiva a escolha de outras opções que as relações pessoais e o amor sexual, opções impessoais e clínicas. A invenção da tecnologia de fiv foi defendida como uma magna resposta humanitária da biomedicina ao desespero dos casais inférteis: a infertilidade afecta 10 a 15 % da população, mas que passou na altura de uma minoria silenciosa e envergonhada a uma minoria com voz, força e peso na economia da reprodução, exercendo pressão constante sobre o desenvolvimento dos mercados e tecnologias apropriadas. Hoje a tecnologia de fiv serve tanto mulheres solteiras, como alguns casais completamente sadios e férteis. Há factores sociais, culturais, económicos e psicológicos para além dos biológicos nestas opções. A procura de fiv pode resultar de outros factores para além da infertilidade, o que não foi previsto, pelo menos em público, pelos biólogos e médicos que elaboraram a tecnologia.

[2] Liza Mundy, Everything conceivable – How assisted reproduction is changing men, women and the world, London 2007.

[3] Charis Thompson, Making parents – The ontological choreography of reproductive technologies, Cambridge Mass., 2005.

[4] Sobre o baby business como complexo tecno-mercantil com estes variados sub-mercados, ver o livro de Debora L. Spar, professora de Direito na Harvard Business School: The baby business—How money, science and politics drive the market of conception, Cambridge Mass., 2006.

[5] Sobre a persitência do eugenismo, e em especial a sua recrudescência nas últimas décadas, ver o cap. ix do meu livro Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição humana, Lisboa, 2011.

[6] Os propagandistas da «educação empreendedorista» (enterprise education) no Reino Unido destacam as atitudes e comportamentos ou aptidões como «honestidade, integridade, pontualidade, reliability, boa apresentação, teamwork», que podem assegurar a empregabilidade (James Hurley «Employers call for ‘enterprise curriculum’»,The Daily Telegraph 26 de Julho de 2011). A honestidade e integridade chamavam-se antigamente virtudes, e não «aptidões» (skills)—se o ditado inglês rezava «honesty is the best policy» ficava subentendido que a honestidade, além de ser uma virtude, tinha também valor instrumental—, e é interessante ver como os ideólogos deste tipo de educação vêem a escola como devendo ser uma escola de virtudes, denominando-as como aptidões: a educação moral, como se chamava antigamente, mas não necessariamente laica, porque as escolas religiosas estão muito em moda no Reino Unido, mesmo entre famílias irreligiosas, não se encontra no currículo, em geral. Educação moral: e a educação cívica? Se o Estado-nação, cada vez menos credível hoje, se tornar numa empresa, ou consórcio de empresas, não vamos precisar de uma formação específica para vivermos na sociedade politica, ou uma educação para a cidadania.

[7] Em média, durante a sua vida, um cidadão americano muda de emprego mais de dez vezes, muda de casa mais de seis vezes, casa-se mais do que uma vez (David Gilbert, Stumbling into happiness, London 2006, p. 214.).

[8] A China conquistou o lugar de quarta potência económica mundial em 2005.

[9] Ver Adriana Petryna, When experiments travel – clinical trials and the global search for human subjects,Princeton 2011. Mesmo assim, a necessidade de ensaios clínicos é tão grande, com a enorme expansão da biomedicina de pesquisa, que uma catedrática de bioética americana pronunciou-se recentemente no sentido de que existe um obrigação moral de todos os cidadãos
adultos do país participarem em ensaios clínicos, mesmo contra a sua vontade, dispensando portanto a máxima de consentimento livre e informado, obsoleta, segundo esta professora. Se essa obrigação moral fosse traduzida em lei, implicaria uma grande ampliação do universo de pacientes («sujeitos») destes ensaios, tornando a população nacional num universo de experimentáveis biomédicos (seríamos «cidadãos biomédicos», por assim dizer, como os que participaram, pelo menos devido à proximidade, em ensaios nucleares se denominaram «cidadãos atómicos», ou os afectados pelo desastre de Chernobyl que se auto-denominaram «cidadãos biológicos», como referido por Adriana Petryna em Life exposed – biological citizens after Chernobyl, Princeton 2003). Poderia reduzir consideravelmente a prática corrente de outsourcing destes ensaios em países com uma população de miseráveis abundante e ignorante, mas a procura de «sujeitos» é tão grande que possivelmente nem esse resultado benéfico virá a acontecer (sobre o assunto ver as referências e links no artigo de Bill Gleason «Do people have a moral obligation to participate in research?» The Chronicle of Higher Education, 14 de Outubro 2011). No entanto, mesmo as pessoas que se sujeitam voluntariamente a ensaios clínicos, em geral não recebem compensação se as coisas andam mal, nem sequer ajudas de custo. Há um ou dois anos uma instituição americana biomédica muito respeitável tinha sugerido a utilização de prisioneiros para ensaios clínicos, também dispensando a máxima do consentimento informado (sujeitar prisioneiros a experimentos biomédicos, inclusive psicocirúrgicos, é uma prática que vem de longe, e não só na eua). Sobre a questão da coacção nos experimentos biomédicos ver o cap. vi do meu livro Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição humana, Lisboa, 2011.

[10] Pelo menos a socialização das crianças para os papéis de consumidores ou participantes na economia de mercado pode começar bem cedo: já há aplicações para iPhones destinadas a crianças a partir dos dois anos de idade, jogos em particular, e a multiplicidade e ubiquidade dos ecrãs electrónicos hoje, em casa ou em lugares públicos, não poupa ninguém, nem os bebés, praticamente 24/7. Quanto à socialização para o papel de empresários, já há infantários onde se ensinam os méritos dos empresários, a importância dos empresários na vida nacional e internacional. Não deve faltar muito para concursos para os melhores empresários infantis e para o equivalente empresarial do Portugal dos Pequeninos (depois de escrever esta nota, vi uma notícia de que as Girl Scouts da eua vão organizar concursos com prémios para as escuteiras que apresentarem os melhores business models e os melhores conhecimentos de contabilidade, e não só da economia doméstica, como antigamente). Em certas culturas católicas tradicionais procurava-se estimular o máximo de vocações para sacerdotes ou para a vida religiosa em geral: neste admirável mundo novo, promove-se qualquer coisa como um equivalente funcional, estimulando o máximo de vocações para a vida empresarial ou pelo menos para o papel de bons consumidores, de bons fregueses.

[11] Denominado o «capitalismo total» por um empresário-estudioso francês, J. Peyreval.

[12] A religião já deixou de ser registada nos passaportes dos países ocidentais, embora só há poucos anos é que a religião Ortodoxa deixou de ser inscrita universalmente nos passaportes gregos, como se religião e nacionalidade coincidissem, sendo ambos atributos adscritivos dos cidadãos. O recrudescimento do nacionalismo etno-religioso poderá trazer esta prática de volta em alguns países. Recentemente, um escritor israelita conseguiu registar-se como judeu etnicamente mas sem pertencer à religião judaica: o primeiro caso bem-sucedido deste tipo no país, porque antigamente a etnicidade supostamente coincidia com a religião.

[13] O tratado mais extenso em prol da escolha livre neste mercado: Colin Gavaghan, Defending the genetic supermarket – Law and the ethics of choosing the next generation, London, 2007.

[14] Ver a discussão importante deste tipo de patente e a defesa dos «comuns genéticos» em vez do regime actual de expansão dos direitos de propriedade sobre matérias genéticas nos eua no livro do filósofo David Koepsell, Who owns you? The corporate gold rush to patent your genes, Oxford 2009. ¶ As matéria genéticas abrangem haplótipos, snp (polimorfismos), cnv. Além das patentes de genes, também nos eua se desenvolveu uma jurisprudência que aceita patentes de células, tecidos e mesmo doenças humanas. E os biomercados, as patentes de sementes, microorganismos, organismos multi-celulares, plantas, e genes e genomas de organismos não-humanos cresceram muito a partir dos anos 70.

[15] Segundo Terence Kealey. Sex, science and profits—how people evolved to make money, London, 2009, p. 379.

[16] Não é o caso dos estudantes escoceses, cujo acesso às universidades é praticamente gratuito, por enquanto.

[17] Mas a procura de óvulos pode abranger pessoas de estatuto socioeconómico relativamente baixo.
E a transacção pode ser bem curiosa, como no caso genuíno de uma dançarina americana que vendeu óvulos para poder pagar implantes mamários, mais ou menos necessários na sua profissão.

[18]Dados de Renée Almeling, cujos trabalhos anteriores citei no cap. ix do meu livro Experimentum Humanum. O seu novo livro Sex cells – the medical market for eggs and sperm, Chicago 2011, trata do assunto mais extensamente. Há vários paradoxos associados com as novas tecnologias reprodutivas. Um doador de esperma americano afirma ser virgem aos 36 anos, embora seja pai genético de umas 15 crianças, pois tem sido um doador entusiástico, com umas quarenta mulheres clientes (curiosamente, não trabalhava para uma agência, mas por conta própria, grátis). O mesmo podia acontecer com mulheres, virgens-mães, embora nenhum caso tenha sido publicitado, e o pai-virgem poderá ser único. E com o congelamento de esperma ou de embriões pode-se ser pai depois da morte, anos depois.

[19] As normas legais a este respeito na França mudaram consideravelmente várias vezes nos últimos cento e tal anos. Neste caso específico, a mãe genética, a doadora do óvulo, foi anónima. Mesmo assim, muitas mães biológicas em França ou noutros países serão desconhecidas.

[20] Um dos resultados típicos deste outsourcing já foi denominado o «bebé global», ou o «bebé mundial», pois é perfeitamente possível que o doador de esperma, o doador do óvulo, a mãe proveta, o pai jurídico, a mãe jurídica, e o local de nascimento sejam de nacionalidades diferentes, como a cidadania do bebé, que pode ser conferida pela nacionalidade dos pais adoptivos: pelo menos cinco nacionalidades em questão (a mãe proveta representa certamente uma novidade tecnológica). Uma nova indústria, coordenando pais adoptivos, doadores de gametas, mães provetas, clínicas ou hospitais, em vários países, trata destes assuntos transnacionais.

[21] Para um dos maiores intelectuais bolcheviques, Alexandr Bogdanov, a doação voluntária e gratuita de sangue para transfusão, praticada em grande escala, seria uma das marcas da sociedade socialista, altruísta e solidária (Nikolai Kermentsov, A Martian stranded on Earth – Alexandr Bogdanov, blood transfusion and proletarian science, Chicago 2011). De facto, na urss a doação de sangue para transfusão era geralmente feita em troca de compensação monetária em tempo de paz.

[22] Os telescópios automatizados que fazem observações seguindo programas de software poderiam ser chamados «robôs astrónomos», complementando os humanos, tanto profissionais como amadores («cidadãos cientistas»).

[23] Há muitos anos que o Príncipe-Consorte do Reino Unido se refere à Família Real como «The Firm» («A empresa»), aliás título de um filme sobre esta mesma família. Na ausência de uma Família Real no trono, não podemos desfrutar de uma empresa deste tipo. Mas há dinastias políticas em repúblicas democráticas que poderão ser consideradas como equivalentes funcionais desta «empresa» monárquica, embora menos faustosas.

[24] Prática que foi recomendada por um sociólogo francês famoso, Alain Touraine (não sei se ele mantém essa opinião).

[25] Há tempos, alguns cidadãos britânicos que tinham pedido passaportes receberam uma carta de desculpas da agência que trata do assunto, endereçada a «Dear customer»! É verdade que se paga por um passaporte, mesmo legal, mas mesmo assim, no passado este facto nao implicava que a troca de dinheiro por uma passaporte a que temos direito como cidadãos constituísse uma transacção comercial como qualquer outra. Trata-se de uma relação de cidadania, não de uma relação de mercado. A não ser que se identifique o Estado como uma empresa.

[26] A desestatização, desnacionalização ou privatização da moeda foi defendida por Hayek em vários estudos, além de outros economistas de menor fama.

[27] Os exo-esqueletos são, em princípio, de óbvia utilidade para civis, para os paralisados e os incapacitados ou de pouca mobilidade por outras razões, como a idade, e a sua produção já começou nos eua.

[28] A privatização das polícias foi defendida pelo economista David Friedman, filho do mais famoso e nobelizado Milton Friedman.

[29] O que já foi chamado «equiveillance», jogando com a palavra inglesa surveillance (que pode ser lida não só como vigilância, que é a tradução normal, mas também, tendo em conta o prefixo «sur» recordando a sua acepção latina, como vigilância pelos «de cima», pelas autoridades) como também na expressão «sousveillance», vigilância pelos «de baixo», pelos subordinados. Vários autores têm falado da «democratização da vigilânca», do «panopticon electrónico», ou do «superpanopticon».

[30] Com o recente sucessor do famoso Stuxnet, o worm Duqu, espiando empresas comerciais, parece haver Estados espiando as empresas comerciais dos outros países pelos meios mais sofisticados.

[31] No dia 1 de Agosto de 2011 saíu um artigo no jornal diário londrino The Times, hoje propriedade do império comercial-político de Rupert Murdoch, em que se fala assim. A linguagem da mercadorização («commodification») já há alguns anos deixou de ser o apanágio de marxistas, ex-marxistas, ou sociólogos, para entrar no vocabulário geral da cultura académica anglo-saxónica, mesmo nas Faculdades de Direito.

[32] Durante a primeira década do poder bolchevique, alguns soviéticos sonharam com uma coisa semelhante no caso de Lenine, na expectativa de que com os avanços sem precedentes da ciência propiciados pelo socialismo instalado, ele seria num futuro não muito distante o primeiro dos humanos imortais. O tema da imortalidade por vias biomédicas e tecnocientíficas em geral, de indivíduos ou de colectividades (em princípio, a sociedade socialista), já tinha sido debatido entre os intelectuais do partido antes da Revolução de Outubro de 1917, num ambiente cultural onde estas questões tinham sido colocadas por intelectuais de outros quadrantes ideológicos.

[33] Embora haja muita procura de outras opções, não-industriais, não-comerciais, mesmo lúdicas, nas sociedades europeias pós-cristãs. Curiosamente, esta tem sido uma área onde a «escolha livre» tão apregoada nas economias de mercado contemporâneas, e a invenção de novas formas simbólicas, não se tem manifestado tanto como se poderia esperar.

[34] No passado, guardavam-se objectos, mechas de cabelo, retratos dos mortos, como relíquias ou memorabilia, ou diários e memórias não publicadas, e no caso dos monarcas, algo mais; com o advento da fotografia, álbuns de fotos da família, e depois gravações e vídeos; mas só agora o que pode ter sido imaginado na ficção científica se pode aproximar da realidade. Poucos terão uma casa de família partilhada por várias gerações através do tempo, décadas ou séculos, como memória física.

[35] A quase-divinização do ciberespaço, na sequência da quase-divinização do espaço físico em pensadores como Newton, em que o espaço cósmico era definido como sensorium Dei, encontra-se em muitos autores, referidos em Margaret Wertheim The pearly gates of cyberspace – a history of space from Dante to the Internet, Londres, 1999). No entanto, nesta versão a quase-divinização do ciberespaço abrangeria a incorporação virtual de todos os mortos humanos através da documentação digital das suas vidas. Possivelmente poderia incorporar mais do que os humanos, os animais de estimação tão queridos de muita gente, embora alguns deles já tenham sido clonados—outra solução tecnológica.







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