Alguém disse há tempos «a escola é uma empresa».
Fiquei a pensar nesta frase memorável. Pela mesma lógica, podíamos dizer
«a universidade é uma empresa», «a Igreja é uma empresa», «o Estado é
uma empresa», e mesmo «a família é uma empresa». E de facto, todas estas
instituições têm sido vistas pelo prisma dos mercados e das empresas,
segundo um modo de análise que se tornou praticamente hegemónico. No
entanto, o uso do verbo «ser» nestes contextos merece alguma reflexão.
Disse o sábio Adam Smith, que para além da sua obra económica escreveu
trabalhos importantes de filosofia do conhecimento e da moral, que o
verbo «ser» (to be) podia ser caracterizado como o mais
metafísico de todos os verbos. Muitos pensadores procuram evitar este
verbo como particularmente conducente a reificações ou coisificações,
diminuindo a nossa capacidade de pensamento crítico (na língua
portuguesa, ao contrário de muitas outras, dispomos de dois verbos
nestes contextos assertóricos, ser e estar). Um
movimento de pensamento «anti-Aristotélico», hoje denominado de
Semântica Geral, quis proibir e eliminar este verbo dos seus trabalhos,
matriz lógico-gramatical de todos os essencialismos, com as suas
consequências sociopolíticas e até civilizacionais perniciosas.
Construíram mesmo uma linguagem sem este verbo. Mesmo sem ir tão longe,
seria salutar evitar o verbo em muitas ocasiões em que se fala com
autoridade política: porque não falar das funções, da missão, da vocação
ou dos requisitos das escolas, em vez da estipulação dogmática
referida? Num mundo saturado de mercados, em que os mercados dominam
esferas cada vez mais amplas da vida, devemos pensar nos limites do mercado, especialmente nos limites éticos.
Talvez
não seja inoportuno revisitar brevemente a maneira como mercados,
empresas e tecnologia invadiram ou estão a invadir domínios inéditos sem
justificação plena do ponto de vista da democracia liberal. Neste texto
foco a tecnificação de todos os momentos cruciais das nossas
trajectórias de vida, seja no nosso tempo seja num futuro próximo,
começando no princípio da vida (gestação, nascimento) até seu desfecho
(morte e pós-mortem). Com este desiderato destaco algumas das
novidades tecno-mercantis em anos recentes. Num texto breve tivemos que
omitir a discussão de áreas importantíssimas como os media, as artes, o
desporto, os locais de trabalho, entre outras. Mesmo assim, alguns temas
centrais foram aflorados e poderão incentivar mais reflexão crítica
sobre a actual saturação da vida pelos mercados, quase sempre com o
pretexto da inovação tecnológica.
1
Nascemos—vamos nascer
cada vez mais frequentemente—num hospital-empresa ou clínica-empresa
(senão numa ambulância-empresa). Mesmo antes do nascimento, devemos
muito a empresas que tratam da nossa concepção nos casos de fertilização
in vitro (fiv) (em geral sob controle médico) ou da inseminação
uterina, e da gestação (com a medicalização da gravidez e do parto). A
reprodução sexual é fácil e absolutamente grátis, embora o sexo sem
reprodução seja hoje praticamente todo o sexo nos países ocidentais. A
reprodução sem sexo, pelo contrário, só funciona com as «novas
tecnologias reprodutivas», e os custos em tempo e dinheiro para os pais,
biológicos ou não, que decorrem do seu uso podem ser consideráveis: as
técnicas são bem imperfeitas (muitos «ciclos» de tratamento podem ser
precisos) e os custos multiplicados. No entanto, o número de nascimentos
nesta modalidade de reprodução tem estado a crescer em todos os países
ocidentais e representa uma proporção cada vez maior do total de
nascimentos: os casais férteis reduzem a procriação natural para níveis
cada vez mais baixos (reduzida ainda mais pelo aborto), e os casais
inférteis ou homossexuais procuram avidamente a reprodução artificial.1Uma
autora feminista diz que depois da luta pelos direitos ao aborto do fim
do século xx ou princípios do século xxi, a grande questão equivalente
no século xxi será o melhoramento do acesso à procriação medicamente
assistida, ou, em geral, à «indústria de fertilidade» ou ao «mercado de
fertilidade».2Ou seja, a
industrialização/comercialização da reprodução humana numa escala
crescente. As sociedades ocidentais poderão estar a evoluir para um modo
de reprodução generalizado totalmente inédito, o «modo de reprodução
biomédico».3
Consequentemente, os fluxos
monetários biomédicos associados aos bebés que surgem como «produtos» (a
expressão «manufactura de bebés» é corrente entre os agentes
biomédicos) apontam para uma nova contabilização dos nascituros no pib
(como acontece quando qualquer actividade se industrializa e se
comercializa) e contam certamente para o que se poderia chamar o Produto
Demográfico Bruto (pdb) como componente do pib nacional: outrora, os
nascimentos eram registados somente nas estatísticas demográficas
nacionais, separadamente da contabilidade económica nacional, mas com
este processo de mercantilização, com os rendimentos da nova «indústria
de fertilidade», a contabilidade nacional tem que acompanhar estas
mudanças e registar todos os mercados (à medida que a taxa de
fertilidade natural decresce, os investimentos de pais e empresas na
fertilidade artificial aumentam, e mesmo as despesas públicas, quando o
Estado subsidia directa ou indirectamente a procriação medicamente
assistida).
O «mercado de bebés», o baby business no seu
conjunto, fiv, os sub-mercados como o mercado de gametas, a
transferência ou venda de embriões extra-corporais, o aluguer de mães
para gestação, a selecção de embriões extra-corporais pelo diagnóstico
de pré-implantação, certas formas de adopção, etc., está destinado a um
grande futuro.4Como deve ser óbvio as novas tecnologias
reprodutivas propiciam janelas de oportunidade para escolhas de eugenia
negativa (eliminação de embriões com defeitos genéticos de toda a
espécie) e mesmo, mais lentamente, de eugenia positiva (escolha dos
«melhores» embriões), sem falar da selecção do sexo, um direito
reclamado em nome da «liberdade procriativa», mas ainda não aceite nos
países ocidentais.5
Tendo em conta a empresarialização universal, o mais simples seria registar o nascituro como um empresário, um start-up,
potencial, em conjunto com a certidão de nascimento
(electrónica-digital), como um equivalente funcional do baptismo na
sociedade tecnomercantil onde terão que viver.
2
Iremos a uma escola-empresa. Se «a escola é uma
empresa» podíamos ir mais longe na visão empresialista da educação. Por
exemplo, advogando uma pedagogia que consistisse na formação
empresários já nas escolas: segundo doutrinários recentes, a escola
devia promover as aptidões que poderão ajudar os alunos a tornarem-se
empreendedores e empresários—ou pelo menos bons empregados das empresas hi-tech. Assim, o «currículo empresarial» (enterprise curriculum)
devia ser obrigatório por lei, não só o currículo com disciplinas
académicas (geografia, história, línguas estrangeiras, por exemplo),
como a preparação para os exames nessas disciplinas.6Os mesmos doutrinários salientam também a necessidade da criação duma mentalidade empresarial (entrepreneurial mind-set) pela formação apropriada dos professores de escolas primárias e secundárias: um papel crucial dos professores será «to teach enterprise»
(haverá lições também sobre aptidões comerciais nos infantários, não
tenho dúvidas). A escola, para estes ideólogos, não só é uma empresa,
mas uma empresa para empresas e para empresários.
Mas
essencialmente o que perspectivam é a empregabilidade, não tanto o
empreendedorismo, apesar do rótulo da educação que favorecem. Não se vê
bem se o que mais conta: a educação para a «empregabilidade» (dando uma
grande ênfase às aptidões práticas, em vez das aptidões académicas), ou a
educação para o empreendedorismo. No entanto, as aptidões na língua
materna e em matemática, não são «práticas» no mesmo sentido, embora, de
facto, sejam eminentemente práticas para os empregadores. Há uma certa
tensão entre a necessidade de bons empregados, a que não se irão
necessariamente exigir grandes capacidades de iniciativa e de imaginação
para as empresas, e a incentivação do empreendedorismo em geral. Mas
como a «flexibilidade» ou a perspectiva de que ninguém vai ter emprego
estável que possa desfrutar por muito tempo parece irreversível, também
poder-se-ia esperar que as escolas formassem pessoas «flexíveis», embora
este desiderato não apareça em qualquer lista publicada pelas
associações de propaganda empresarial tão activas em anos recentes. Para
os licenciados no Reino Unido, a estimativa mais citada há alguns anos
era de que teriam de sofrer em média cinco mudanças significativas de
profissão durante a sua vida, talvez como serial entrepreneurs com
os seus altos e baixos(como nas suas vidas pessoais poderão mudar de
localidade, de parceiros, de género, de sexualidade, de identidade, de
nacionalidade, de religião, etc., mais do que uma vez, portanto a
«serialidade» representa uma forma comum).7
Possivelmente com muitos altos e baixos ao longo da vida profissional, à
maneira dos romances picarescos do século xviii. Possivelmente com
vários empregos ou actividades económicas ao mesmo tempo, voltando ao
clássico «cabide de empregos» ou «cabide de empresas».
3
Depois
frequentaremos, sem dúvida, uma universidade-empresa, ou alguma
instituição de ensino terciário, empresarializada, no espírito ou na
prática. O modelo da universidade pública clássica está a sofrer ataques
sucessivos dos governos de vários países ocidentais, com o Reino Unido
na vanguarda. Estamos a evoluir para a integração cada vez maior das
universidades na economia de mercado. Para alguns cientistas, as
universidades podiam viver de patentes, sem dinheiro do Estado, se se
tornassem em fábricas de patentes, com a investigação científica
dirigida principalmente para assuntos que poderão ser de interesse para
essa finalidade. Por enquanto, os Estados irão subsidiar só as
disciplinas do stem (sigla inglesa para «Ciência, Tecnologia, Engenharia
e Matemática»), deixando o ensino das humanidades, das artes e das
ciências sociais para as forças do mercado.É triste constatar que alguns
jovens professores já consideram natural definir a relação entre
professores e alunos como uma relação comercial banal, entre o aluno
«cliente» (customer) e o professor «fornecedor de serviços» (provider). Se esta tendência, por si só, continuar, o ethos
das universidades será transformado radicalmente. Certamente a
experiência universitária foi completamente diferente para as pessoas
com mais de 25 anos.
4
Quanto estivermos doentes, seremos
tratados numa clínica-empresa ou hospital-empresa. Poderemos servir
como cobaias, sem o saber (há uma longa história destes ensaios nos
países ocidentais), mas ficaremos talvez mais descansados quando nos
explicarem que numerosíssimos ensaios clínicos se realizam em países
distantes, com gente pobre e iletrada. A expansão dos mercados numa economia aberta e globalizada implica a expansão do outsourcing, uma macro-tendência potente, um mega-trend (antigamente
dizíamos uma «lei», ou uma «lei de tendência») da economia mundial na
época da globalização, de que vamos dar alguns exemplos. Se o outsourcing da
produção industrial representa a modalidade mais avançada, bem saliente
no caso dos eua, onde uma parte substancial da capacidade produtiva das
indústrias transformadoras foi transferida para a China a partir dos
anos 90, também ocorre em muitos outros tipos de mercados de bens e
serviços, mercados que recentemente surgiram em escala significativa
devido a avanços na tecnologia biomédica, como aqueles que concernem à
reprodução, onde não se trata de força de trabalho barata, disciplinada e
não-sindicalizada, mas de «forças reprodutivas» domesticadas ou
sujeitos clínicos baratos e dóceis.8 No caso dos
ensaios clínicos, a troco de pagamento de quantias ínfimas de dinheiro,
de receitas para os hospitais onde se realizam, e perks
[gratificações] para os médicos que os realizam ou escolhem os sujeitos a
serem testados em países «em vias de desenvolvimento» ou mesmo em
«países emergentes» como a Índia, o Brasil e a China. A Índia tem sido
um campo privilegiado para estes ensaios clínicos transnacionais, a
pedido não só de empresas comerciais normais que querem abreviar o hiato
temporal entre o laboratório e o mercado, mas mesmo de organizações
não-lucrativas que querem ver avanços biomédicos rápidos, reduzindo o
intervalo entre os resultados obtidos no laboratório (wet labs)
e a sua aplicação na terapia (em primeira instância, nos eua). Esses
ensaios têm sido em grande parte realizados em jovens iletrados
desempregados, sem que as condições mínimas do «consentimento informado e
livre», máxima fundamental da ética médica em tempos recentes, tenham
sido cumpridas (os agentes locais, médicos, clínicas, hospitais, etc.,
muitas vezes não demonstram muitas preocupações humanitárias). Os locais
onde as grandes companhias farmacêuticas realizam estes ensaios
clínicos nos países referidos são numerosíssimos, pelo menos uns 2.500
já há alguns anos. Trata-se de um mercado pouco regulado.9
5
Se
encontrarmos emprego, iremos certamente trabalhar numa empresa (ou
várias ao mesmo tempo), a não ser que constituíssemos a(s) nossa(s)
própria(s) empresa(s). Aliás, qualquer de nós pode registar-se como uma
empresa, ou talvez várias ao mesmo tempo (pelo menos no Reino Unido),
possivelmente com a inclusão de todos os membros da família. Seriamos self-employed, como
se diz em inglês, empregados de nós próprios, sendo empresa, empresário
e empregado ao mesmo tempo, apenas distintos conceptualmente (como numa
época não muita remota as crianças podiam trabalhar a partir dos seis
anos, não sei em que idade nos poderemos começar a constituir como
empresários ou membros de uma empresa10). Já temos uma expressão mais adequada para esta condição, a de sermos auto-empresários, ou constituirmos auto-empresas.
6
O
trabalho científico será feito em empresas (institutos-empresas,
universidades-empresas, laboratórios-empresas), ao serviço de outras
empresas, num mercado global de «ciência à venda». Muitos cientistas dos
mais «puros» como Einstein requisitaram patentes para vários inventos
(neste caso, de bem pouco proveito), mas nessas actividades procediam
como se fossem subsidiárias e mesmo periféricas aos seus interesses
fundamentais como cientistas. Mas hoje em dia, a figura do cientista
livre e independente já cedeu lugar à figura dupla do
cientista-empresário ou à figura tripla do
cientista-engenheiro-empresário (existem muitos exemplos em Silicon
Valley e aglomerações semelhantes noutras regiões dos eua ou noutros
países).
Os cientistas-empresários formaram nas últimas duas décadas pelo menos uma boa quota das start-ups
em áreas como as novas tecnologias de informação e comunicação, mas
brotam cada vez mais em vários domínios da biogenética, sendo talvez o
exemplo máximo J. Craig Venter, um dos fundadores da biologia sintética,
bem mais radical que a chamada engenharia genética, no sentido comum
(mas mesmo ele está ser ultrapassado por geneticistas ainda mais
ambiciosos com respeito à manufactura da vida). Numerosíssimos
cientistas que fazem investigação em universidades têm ligações fortes
com empresas, especialmente nas áreas da genética e da biomedicina, ou
são co-fundadores de empresas desse tipo. Mesmo sem esse grau de
empreendedorismo, já se encontram muitos cientistas-accionistas, pois
são pagos em parte com acções das empresas para os quais fizeram algum
trabalho científico, especialmente no caso de empresas biomédicas, da
indústria farmacêutica, da Big Pharma (o que não deixa de ser
preocupante, dado o conflito de interesses potencial). No limite,
teríamos não só um «capitalismo de accionistas»,11 em
que acrescentar o valor das acções se torna o critério prioritário para
os gestores das empresas, mas também o que podiamos chamar uma «ciência
de accionistas», de cientistas-empresários que têm de participar, como
empresários, nesse capitalismo de accionistas, e de
cientistas-accionistas no sentido que indicámos (até desfrutando de stock options,
para os vincular fortemente às grandes empresas, especialmente
farmacêuticas), sem esquecermos que os cientistas assalariados trabalham
para instituições cada vez mais empresarializadas e dependentes das
práticas do capitalismo de accionistas, globalmente falando, qualquer
que seja o seu sentido subjectivo de independência interior em relação a
este envolvimento. Seria uma modalidade de ciência totalmente
imprevista.
Além de empresários, muitos cientistas são gestores
nas universidades no que diz respeito às suas equipas, ou em centros de
investigação, por necessidade ou por apetência. Muitos mais serão
obrigados a tirar cursos de gestão e de marketing já que muito do trabalho científico é feito por equipas inseridas em grandes projectos colectivos.
7
Para
os libertários consequentes, as Igrejas ou as confissões religiosas em
geral, deveriam concorrer no mercado livre sem restrições legais de
entrada—como as impostas por alguns Estados—, de autorização e de
registo, para o tratamento fiscal e de direito público comparável com o
que as confissões históricas têm desfrutado. Qualquer indivíduo poderia
registar-se como uma confissão-empresa ou como um sacerdote/ministro de
uma qualquer religião (não necessariamente teísta ou deísta, claro),
vendendo ou comprando crenças, breviários, liturgias, cerimónias, hinos,
etc., registáveis ou mesmo patenteadas como Propriedade Intelectual.
Podem ter uma existência puramente virtual, na rádio ou online: «igrejas
de rádio» (radio churches) já existiam nos eua e no Brasil nos anos 30, e a religião online tem
ainda muito espaço para crescer. Por outro lado, qualquer pessoa terá a
liberdade de optar por qualquer das ofertas no «mercado» religioso,
possivelmente escolhendo a mais atraente promessa de salvação (como foi
descrito já há décadas por eminentes sociólogos da religião), mudar as
suas escolhas, criar novas ofertas, ou não escolher nenhum dos
«produtos» disponíveis nesse mercado (mas mesmo entre ateísmos,
irreligiões e areligiões pode haver várias ofertas). Seria simplesmente
levar o padrão norte-americano, de seitas e denominations em
concorrência permanente, à sua expressão mais completa. Com certas
religiões historicamente não-exclusivistas podem-se praticar várias ao
mesmo tempo.12
8
Os que tiverem a sorte
de possuir genes/alelos de interesse comercial, poderão vendê-los,
constituindo talvez uma empresa genética/genómica para o efeito mas de
facto hoje as empresas do ramo estão a patentear tudo o que podem. Os
ricos, certamente o 1% de que se fala tanto hoje, podem comprar os
melhores genes/alelos/superalelos no «hiper-mercado genético» global
para o seu próprio melhoramento genético ou da sua prole. O filósofo
anarco-capitalista de Harvard, Robert Nozick, no seu livro famoso Anarchy, law and the State (1971),
um tratado de filosofia política bastante influente, falou de um
«supermercado genético» mundial a que todos os pais deveriam ter acesso
livre, pelo menos legalmente e moralmente, sem interferência dos
Estados, das Igrejas ou de qualquer outra autoridade. O mercado livre de
genes, de super-alelos especificamente, tem sido defendido por vários
bioeticistas numa versão do que se poderia chamar o liberalismo biomercantil, tanto no domínio humano como noutros.13Alguns
aceitam as implicações mais radicais desse mercado, tal como a possível
constituição pela «reprogenética» (a combinação das tecnologias
genéticas com as tecnologias reprodutivas) de duas classes biológicas ou
biogenéticas, os «ricos em genes (alelos desejáveis)» e os «pobres em
genes». Uma sociedade dual ou pelo menos estratificada em termos
genéticos claramente definidos, talvez fenotipicamente, e provavelmente
legitimada pela alegada superioridade genética da casta dominante.
Mesmo
hoje, é preciso ter muito cuidado, porque nas últimas três ou quatro
décadas a questão sobre os direitos de propriedade sobre os «nossos»
genes, os genes residentes no «nosso» corpo, que foram identificados e
«trabalhados» (processed) por empresas biomédicas, tornando-se
Propriedade Intelectual dessas empresas, tem sido objecto de disputas
legais em vários países, chegando mesmo às últimas instâncias judiciais,
com desfechos diversos. Mesmo que não se chegue à situação de perdermos
qualquer direito de propriedade aos nossos genes, ao nosso adn, quando e
na medida que sejam de interesse para uma qualquer empresa biomédica, e
como a biotecnologia, com as suas promessas de novos medicamentos,
biocombustíveis, alimentos, etc., avança rapidamente, com o apoio
substancial de vários governos, a lista de genes humanos patenteados irá
crescer, pelo menos nos países onde esta prática é permitida pela lei.
Em 2005 já se contavam mais de 4 mil genes humanos patenteados, ou seja,
mais ou menos 1/5 do nosso genoma. As patentes de genes referem-se a
sequências de genes ou segmentos de genes ou a proteínas produzidas por
genes, ou seja, estruturas, funções e processos dos genes. Na sua grande
maioria as patentes em questão não protegem invenções propriamente
ditas, mas as descobertas de como sequenciar genes ou matérias afins.
Talvez pela primeira vez na história o sistema de patentes, garantias
estatais, foi utilizado para proteger os lucros decorrentes de
descobertas, e não de invenções.14Os críticos liberais
do sistema de patentes, que supostamente favorecem os mercados livres,
notam que só neste domínio é que as patentes têm incentivado a pesquisa e
desenvolvimento das empresas, quer dizer na exploração de descobertas
que não deviam gerar direitos de propriedade.15
9
Além
do nosso património de genes, possuímos órgãos que poderão ser também
de interesse biomédico, e para esses efeitos recomenda-se que nos
registemos como empresas individuais de venda de órgãos (ou mesmo de
membros), mesmo se não o fizermos por algum tempo, à espera, por
exemplo, do melhor preço no mercado (a venda de órgãos é proibida, mas
existe um mercado negro nesta área). Com os avanços da biomedicina,
tornou-se possível transplantar certos tipos de órgãos humanos com
êxito, e com relativa segurança para os doadores. Nas próximas décadas, o
leque de órgãos inter-transplantáveis entre corpos humanos nestas
condições irá aumentar, tornando possível com o tempo uma gradual
modularização do corpo humano (sendo a modularização um dos princípios
constitutivos da industrialização, tendo avançado especialmente nos
eua—um belo estudo sobre esse país entitula-se Modular America—nada
de surpreendente nesta variante de modularização no mundo da
biomedicina). O Homem Modular, biologicamente, ou melhor,
organologicamente falando, representaria, por assim dizer, uma versão
biotecnológica do corpus mysticum, como também, até certo ponto, a globalização de mercados biohumanos da reprodução, e as migrações, resultam numa espécie de panmixia,
mantendo de facto a unidade e unicidade biológica da espécie humana,
que certos reprogeneticistas gostariam que viesse a desaparecer.
Com
as novas técnicas de transplante, e as carências de doentes com órgãos
disfuncionais, surgem novos mercados, ou pelo menos mercados negros (há
sempre empresários para estas actividades). Como no caso de outras
tecnologias avançadas biomédicas, surgem questões de ética espinhosas,
dilemas, aporias, predicamentos, sobre a legitimidade destes mercados e
das alternativas nas circunstâncias contemporâneas (no futuro, a
medicina regenerativa e as próteses electromecânicas mais sofisticadas,
como o coração artificial que poderá ser comercializado nos próximos
anos, poderão mitigar, mesmo que não dispensem completamente, a
necessidade de transplantes, e nessa conjuntura estas questões seriam
menos urgentes).
Os ricos podem comprar os melhores órgãos mais
rapidamente no hipermercado global de órgãos humanos, no duplo mercado, o
mercado legal e o mercado negro, embora de facto talvez seja apropriado
falar também, neste contexto, como noutros, de mercados cinzentos. No
entanto, não se trata só do mercado de órgãos Norte-Sul, ou Sul-Sul.
Como as soluções de mercado são recomendadas pelos economistas—fazem
parte do credo de um grande número de think tanks prolíficos
através do mundo—e cobrem áreas da vida cada vez mais extensas, a
entrada de órgãos humanos para transplante num mercado legal específico
tem sido defendida para providenciar a maior oferta de órgãos para
transplante em muitos países (a procura deve-se em parte ao
envelhecimento das suas populações resultando das Revoluções de
Longevidade), pois as doações, embora tenham estado a crescer
significativamente, ainda ficam aquém da procura.
O mercado global de órgãos humanos foi defendido pelo filósofo americano James Stacey Taylor no livroStakes and kidneys: why markets in human body parts are morally imperative (2005).
Segundo este autor, não há nada de imoral em alguém comprar órgãos
quando o vendedor não tem recursos, está desesperado e recorre à venda
de partes do seu corpo porque não tem alternativa para sobreviver. Além
disso, o filósofo argumenta que temos o dever moral de participar nesse
mercado de órgãos. Ele não quer dizer que exista uma obrigação moral de doar órgãos,
para familiares ou mesmo para estranhos, como muitos argumentam,
filósofos ou não filósofos, doação que os Estados querem incentivar cada
vez mais, dada a procura crescente de órgãos para transplante, mas o dever de os vender, se
os não quisermos doar gratuitamente e voluntariamente, se e quando a
extracção de órgãos para transplante não prejudique a nossa saúde e
esperança de vida. Mesmo com estas restrições, o pool de
potenciais vendedores de órgãos seria enorme, e o mercado seria
fabuloso, numericamente e crematisticamente. Quanto à extracção de
órgãos de moribundos, como as milhares de pessoas que sofrem acidentes
automobilísticos fatais todos os anos, os governos de vários países têm
considerado várias medidas para a incentivar, por exemplo, exigindo,
como condição necessária para se poder obter ou renovar uma carta de
condução, que seja feita uma declaração para permitir o transplante,
recusar o transplante ou pensar no assunto (no Reino Unido esta medida
poderá ter efeito em breve). A expectativa é que nessas circunstâncias
um bom número de pessoas, confrontadas com a obrigação legal de
escolher, irão optar pelo consentimento prévio, e ficarão assim a
pertencer à lista nacional (electrónica, claro) de doadores. Não fica
claro se se poderá mudar de opinião e exprimir esta mudança de opinião
de algum modo que possa ser registada e acatada pelas autoridades.
Uma
proposta muito recente pode apontar para o futuro, não só da
constituição de um mercado de órgãos humanos nos países ocidentais que o
têm recusado até agora, mas como do seu inter-relacionamento com outros
mercados, que lidam com bens e serviços completamente diferentes. A
proposta foi de que os estudantes ingleses16—já que têm
que pagar propinas cujo nível atinge 9.000 libras esterlinas por ano
num grande número de universidades públicas ou semi-públicas como são
hoje praticamente todas e não só as mais prestigiadas— pudessem vender
um fígado por 28.000 libras, mais ou menos 25–28.000 euros, um preço
razoável, ao que parece, tanto para os compradores como para os
vendedores, sendo uma quantia equivalente ao rendimento médio anual no
Reino Unido, aliviando o fardo da dívida bancária que contraem para
pagar as propinas universitárias. O clima de opinião a respeito da venda
de órgãos para transplantes ainda não se transformou ao ponto desta
proposta ser aplaudida como uma das soluções legítimas para a crise do
financiamento das universidades pelas propinas, como para o défice de
órgãos para transplante, mas o próprio facto de a proposta ter sido
colocada por uma investigadora sénior na sociologia da medicina numa
universidade escocesa, é digno de nota. E se a proposta foi feita no
caso de estudantes ou licenciados, outras propostas análogas podiam ser
feitas, por paridade de raciocínio, com respeito a desempregados e
indigentes, por exemplo, ou qualquer pessoa ou categoria de pessoas numa
situação económica muito difícil, com a mesma justificação, mas
obviamente o aumento da oferta poderia diminuir o preço e o rendimento
desta operação.
10
Com respeito à reprodução humana, o
mercado de gametas, de óvulos e de esperma para a inseminação artificial
humana já foi globalizado (embora haja países que proíbem a exportação
de gametas, como a Índia, nenhum parece proibir a sua importação, e de
qualquer modo o turismo reprodutivo internacional pode superar essas
barreiras legais). Existem tabelas de preços que se podem consultar
facilmente online, com empresas especializadas, embora este mercado não
esteja ainda suficientemente diferenciado e competitivo, com um défice
da oferta no caso de várias etnias nos eua, no Reino Unido, e
provavelmente noutros países também. Os óvulos das alunas de
licenciatura de Harvard são, de longe, os mais caros nos eua: parece
haver uma correlação forte com o ranking internacional das universidades no caso norte-americano (seria mais económico determinar o ranking das universidades por este indicador do que pelos modos correntes).17
A escolha dos doadores de esperma pode ser feita por vídeos, ou online,
segundo os dados biométricos (a altura, em particular), atestados
médicos, o curriculum educacional e profissional ou os resultados dos
sat [Scholastic Aptitude Test], dos doadores disponíveis, e fotos, sendo os preços bem menores que no caso da doação de óvulos.18O
mercado de gametas, mesmo quando se trata de um mercado negro, tem sido
predominantemente Norte-Norte, ou doméstico, ao contrário de outros
mercados biológicos, muito mais transcontinentalizados e seguindo um
gradiente económico, com gente dos países mais ricos sendo os
compradores, como no caso dos mercados dos órgãos, dos genes, ou da
gestação, sem falar de mercados biológicos transnacionais mais
inocentes, como o dos cabelos. No entanto, se propostas como a referida
acima, de iniciar a compra e venda de órgãos dentro dum país do Norte
forem aceites, o mercado de órgãos humanos legal podia ser também
nacional.
11
A gestação humana, ou o «trabalho reprodutivo» das mulheres, como outras formas de trabalho, pode ser outsourced,
neste caso sóa outras mulheres, grátis, ou por um certo preço,
familiares (irmãs, mães, avós, tias, primas), amigas, ou estranhas, com
muitas implicações não convencionais para as relações parentais e de
filiação. Em princípio, o assunto podia ser tratado directamente online, como nos dating sites, mas já existe um mercado para o outsourcing da
gestação a mulheres em outros continentes, segundo os preços, e outros
factores, com empresas a tratar deste negócio delicado, e os preços
podem variar segundo os países e as preferências dos pais genéticos.
Neste domínio também, as regras legais podem não estar muito bem
definidas, especialmente devido a questões de jurisprudência identitária
quando se trata de outsourcing transnacional e especialmente
transcontinental. Na França, recentemente, bebés nascidos de embriões de
pais biológicos, ou melhor, genéticos, franceses, implantados em
mulheres indianas como as suas «mães de aluguer», foram negados a
cidadania francesa, quando a regra geral prevalente era que o filho de
cidadãos franceses, onde quer que nascesse, seria francês.19A
República Francesa, dirão alguns, continua obcecada com a ideia que o
ventre que dá nascimento aos filhos biológicos de cidadãos franceses
(trata-se de um casal homossexual) tem que ser também de nacionalidade
francesa: uma espécie de proteccionismo reprodutivo… Casos como estes
demonstram o conflito entre Estado e mercado numa área onde as
pré-definições de cidadania, mesmo pelo jus sanguinis,não previram este tipo de situações: especialmente quando se trata dum Estado de elevada «estatidade».20
Todas
estas questões perderão a sua razão de ser quando chegarem os úteros
artificiais, com todas as funcionalidades necessárias e a gestação
poderá então ter lugar fora de qualquer corpo biológico natural, humano
ou não humano, em condições perfeitamente controladas. A ectogénese, no
sentido estrito do termo, em que todo o processo desde a concepção
não-sexual, extra-corporal, até a hora em que o nascituro possa ter uma
vida independente, decorre dentro do útero artificial, fora do corpo
humano ou de qualquer outro corpo biológico natural. De certo modo,
seria o desfecho da Revolução Reprodutiva humana das últimas décadas.
Revolução anunciada com brio em 1923 por um biólogo britânico, que só
verdadeiramente se iniciou em 1978 com o nascimento do primeiro bebé
concebido num tubo de ensaio, embora se possa datar também com a
introdução da pílula anticoncepcional feminina (digo «desfecho» se
excluirmos a clonagem reprodutiva humana). Com a combinação das novas
tecnologias reprodutivas e da engenharia genética, a Revolução
Reprodutiva podia transformar-se numa Revolução Reprogenética.
12
O
sangue humano para transfusões já é comercializado há muito tempo nos
eua, onde há gente com poucos recursos para quem vender sangue
regularmente pode ser uma fonte de rendimento significativa por anos e
anos. A introdução do mercado de sangue no Reino Unido diminuiu a oferta
voluntária de sangue, considerável, que durante décadas tinha sido uma
fonte de orgulho para o país. O cientista social Richard Titmuss no seu
livro clássico de 1971, The gift relationship, já tinha avisado que um efeito de crowding out da
oferta voluntária de bens para fins altruístas iria ocorrer pela
mercadorização, com uma deterioração da qualidade, o que poderíamos
chamar o «efeito Titmuss». Efeito patente com respeito a outras
modalidades de dádiva, de altruísmo, com a introdução de mercados,
escalas de preços, etc.21É interessante notar que a
mercadorização do sangue foi uma intervenção pioneira na promoção de
biomercados humanos legais em grande escala nas sociedades
tecno-mercantis: depois do sangue, gametas, tecidos, células, órgãos
(provavelmente legalizados em breve), etc.
13
Há um processo pendente no Supremo Tribunal dos Estados Unidos que concerne à questão de os médicos deverem ser ou não obrigados por lei a vender a
empresas farmacêuticas os relatos das suas receitas para os seus
pacientes, arquivadas como dados digitais. Como em todos os outros casos
onde se exige que os dados sejam arquivados em forma digital (exigência
praticamente universal hoje), fica praticamente garantido o seu acesso,
eventualmente, sem o conhecimento das pessoas cujos dados foram assim
arquivados, mesmo sem o conhecimento, ou pelo menos sem o consentimento,
dos profissionais que se comprometeram em boa fé em assegurar a sua
privacidade e intangibilidade. O acesso a esses e-dados será por vias
legais, semi-legais ou ilegais, pelo hacking ou pelo data-mining,
ou o «ciber-roubo». O acesso a esses dados para efeitos comerciais,
como no caso citado, é às vezes assegurado pela lei (no caso de dados
protegidos pelas barreiras da segurança nacional, a ciber-espionagem e a
ciber-guerra tornam-se cada vez mais sofisticadas). Seja como for, a
extracção e armazenamento de dados digitais torna mais fácil a
exploração comercial, não só nestes casos, mas nas nossas ciber-vidas
normais, nos intervalos não preenchidos pelas actividades profissionais
ou as transacções comerciais, com o correio electrónico, as sms ou os online chat, ou as visitas à Internet (não só ao Facebook):
todos estes episódios de comunicação electrónica, geram cumulativamente
a «pegada digital» e a «sombra digital» dos utentes, mesmo sem o hacking propriamente
dito, que interfere mais brutalmente com a privacidade. Mesmo os mais
entusiastas pela «Revolução dos Dados», que o registo das transacções
comerciais, profissionais e outras propiciam, quando digitalizadas,
reconhecem que toda informação digital é potencialmente comercializável,
sendo toda a informação digital mercadoria mais cedo ou mais tarde.
13a
A
comunicação electrónica, com a «revolução digital», tornou-se um grande
multiplicador e acelerador da mercantilização universal, universal em
extensão geográfica, e também no escopo do que pode ser incluído no
processo, mensagens, imagens, sons, ideias, informações, bens físicos,
sexo, objectos, propriedades, armas, etc. A globalização financeira,
aliás uma alavanca crucial da globalização em geral a partir dos anos
70, embora ainda seja uma «semi-globalização», porque o mundo não é
assim tão liso como foi anunciado, representa por sua vez um mecanismo
de mercantilização acelerada. Os instrumentos financeiros, cada vez mais
«sofisticados», são processados nas Bolsas, numa grande proporção, pelo
high-frequency computer trading (também denominado «algorithmic trading,» ou «black-box trading»), quer dizer, por algoritmos sofisticados, elaborados por matemáticos e físicos formados nas melhores universidades (os quants).
As proporções cada vez mais amplas das transacções negociadas por
algoritmos, e não por humanos, nas Bolsas de Valores chegaram já a cerca
de 75% ou mais nos eua, em 2011. Esta proporção, embora menor nas
Bolsas europeias, está a aumentar cada vez mais, mas possivelmente sem
chegar à automatização total, a 100 % dos negócios de acções, mas
aproximando-se significativamente deste limite, certamente ultrapassando
os 80% e mesmo os 90%, reduzindo os operadores humanos a uma pequena
minoria, tratando de uma porção bem pequena do volume e valor dos
negócios bolsistas. Tendo em conta o stress desta actividade
para os agentes humanos (alguns quase morrem todos os dias, pelo menos
assim o dizem aos investigadores), esta substituição será de certo modo
positiva. Mas, como sabemos, não obstante as vantagens apregoadas, como
maior rapidez e eficiência, os efeitos globais desta substituição de
humanos por algoritmos, por programas de software, neste domínio têm
sido perversos para a economia real, bem patentes especialmente desde
2008: a «eficiência» e rapidez nas transacções financeiras não é
necessariamente conducente à estabilidade económica global, antes pelo
contrário.
Os robôs negociadores de acções, os robôs que tomam conta cada vez mais das transacções das Bolsas, «robot traders», representam uma espécie de vanguarda dos robôs inteligentes (com programas de software sofisticados) que já se ocupam de variadas tarefas da «economia de conhecimento», substituindo a wetware dos
profissionais humanos, cujos cérebros são incapazes de processar
rapidamente as grandes quantidades de dados (notícias económicas e
financeiras neste caso) que chegam a cada minuto de toda a parte, com a
compressão máxima do ciber-tempo e do ciber-espaço. Os «robôs
cientistas», já desenhados numa forma elementar há alguns anos, e
avançando lentamente, mas já capazes de descobertas científicas, com
resultados inéditos, e os «robôs jornalistas», que só começaram a
funcionar este ano, ainda não funcionam numa escala comparável (mesmo
assim o «jornalismo assistido por computador» e o «jornalismo
computacional» já estão na moda nos eua). O «robô conversador»,
interactivo, que ensina a falar Inglês online, é uma novidade
no Japão. Não se espera que possam substituir os cientistas ou
jornalistas não-robóticos tão amplamente num futuro próximo.22
14
Pagaremos
impostos a um Estado-empresa, ou melhor, a um Estado de empresas locais
ou nacionais, ou a um Estado em vias de empresarialização permanente.
Antes disso, o comportamento dos funcionários do Estado, da
administração pública, dos partidos políticos e dos eleitores, já tinha
sido analisado pelos politólogos em termos de mercados de votos, da
concorrência de empresas, por analogia com a análise microeconómica das
empresas e dos empresários, sugerida já por Schumpeter em 1942 (entre
outros dos seus contemporâneos) com respeito aos partidos políticos e às
eleições parlamentares ou presidenciais competitivas e livres: a
própria expressão «political marketing» difundiu-se no Brasil
há trinta anos. A nossa relação com o Estado, se a palavra ainda
sobreviver (a palavra «Estado» é pouco favorecida nos países
anglo-saxónicos), se as tendências correntes prevalecerem, será de
fregueses/clientes de determinados serviços prestados por uma empresa sui generis ou consórcio de empresas, com preços transparentes naturalmente.23Os
cidadãos potenciais vão comportar-se como consumidores ou investidores,
procurando os maiores rendimentos políticos pelo melhor preço, sem
fortes preferências pelo território onde viveram praticamente toda a
vida (os bilionários já se comportam assim, emigrando para onde os
impostos são mais baixos). Idealmente, todos os indivíduos adultos
poderiam escolher no mercado internacional a melhor oferta estatal, tal
como fazem as grandes empresas ou os maiores empresários hoje com
respeito às melhores «jurisdições fiscais», fugindo assim aos impostos
dos países com mais despesas sociais. Esta mobilidade podia ser
facilitada se a prática de as pessoas se registarem anualmente como
querendo ou não continuar a aceitar a nacionalidade de que desfrutam,
possivelmente desde a nascença, por exemplo, querem ou não continuar a
ser franceses ou reclamarem o direito de escolher outra nacionalidade,
fosse institucionalizada.24Os nossos passaportes seriam então emitidos por empresas.25
A
moeda deixará de ser monopólio do Estado, ou das uniões monetárias,
como o euro na ue, e empresas privadas poderão fornecer moedas em
concorrência num mesmo território (aliás, hoje mesmo, quem «produz» o
dinheiro que aparece nas estatísticas nacionais e internacionais são
predominantemente os bancos não estatais).26
15
Se
ainda houver forças armadas vinculadas a Estados, serão bandos de
mercenários: já se chamam assim, injustamente, aos voluntários que hoje
constituem as forças armadas dos países que abandonaram o serviço
militar obrigatório em tempo de paz. O mercado internacional de armas,
tão importante na economia mundial há várias décadas, poderá ser
suplementado por um mercado mundial de militares, ou de «especialistas
da violência», que por enquanto só existe em números muito limitados.
Alguns programas do Pentágono, além de planearem a introdução de
«super-soldados», com exo-esqueletos para carregar mais equipamento sem
dificuldades de maior,27 e mobilidade comparável ao dos
gigantes dos contos de fadas, encaram a substituição de soldados por
robôs armados, de tanques tripulados por tanques controlados por robôs,
dos aviões de guerra ou helicópteros tripulados pelos drones,
aviões ou helicópteros armados com mísseis, das mais variadas dimensões,
assistidos por ciber-insectos diversos para a vigilância, etc.,
robotizando os conflitos armados (as guerras inter-estatais seriam entre
robôs e robôs). Isto em conjunção com a ciber-guerra electrónica,
defensiva ou ofensiva, que está a ser travada por um certo número de
países há décadas, entre vírus e worms de computador (acompanhada por ciber-espionagem e ciber-terrorismo, nas suas variantes industriais, comerciais e políticas).
16
As
polícias serão todas privatizadas (as melhores empresas de polícia irão
sobreviver com certeza num mercado muito competitivo), segundo a
proposta de economistas neo-liberais.28A não ser que cada indivíduo seja encarregue de ser polícia, ou então assume um papel policial, part-time ou full-time,
nas horas vagas ou nas férias, talvez em troca de uma pequena redução
nos impostos (ou, ainda melhor, descontos nos supermercados). Muita
vigilância em todos os espaços públicos (e não só neles) já é feita por
cctv ( os closed-circuit television proliferam no Reino Unido, com a maior densidade per capita de cctv). Os smartphones,
com as suas capacidades fotográficas poderão ampliar esta vigilância,
que passará a ser de todos por todos, modificando assim o ditado de
Hobbes,29sem custos para o Estado, para os
contribuintes. Já há quem exija câmaras de vídeo em todos os
ministérios, em todas as repartições públicas, inclusive consulados e
embaixadas (alguns diriam mesmo: em todos os tribunais). E também tudo o
que se discute nos Parlamentos devia ficar sob a observação, por
câmaras de vídeo, ou outros meios análogos, para os cidadãos ficarem
sempre a par do que passa lá em cima. No entanto, se e quando o Estado
se empresializar completamente, seria de esperar que as empresas
sucessoras do Estado não-empresarial em questão gozem dos direitos de
privacidade comercial, que normalmente protege os processos decisórios
internos às empresas comerciais («privadas», precisamente), que ninguém
nega normalmente. Os segredos comerciais são melhor protegidos que os
«segredos de Estado».30
17
Quanto ao
nosso envelhecimento e senilidade, que remédio para a grande maioria
senão procurarem abrigos e asilos cada vez mais empresarializados:
devido aos constrangimentos legais ainda existentes, e o peso da
ideologia dos direitos humanos, haverá ainda algum respeito pela pessoa
humana, mas o interesse essencial dessas empresas em nós será como
fontes de rendimento, como mercadorias.31Trata-se
certamente de uma área onde a carência de projectos de «empresários
sociais», de invenções sociais para lidar com um fenómeno sem
precedentes nas sociedades modernas, se nota ainda mais que em qualquer
outra. No entanto, hoje surgem mais rapidamente soluções tecnológicas e
não sociais, como, por exemplo, a introdução de robôs de companhia, de
robôs-assistentes de enfermagem, de robôs domésticos (limpeza da casa,
segurança, cuidar da roupa, entre outras tarefas), robôs-mordomos, etc.,
para facilitar a vida dos mais idosos ou vários tipos de deficientes,
em conjunto com uma panóplia de monitores, chips subcutâneos, sensores
(nas camas, nas cadeiras, etc.), sem falar de nanosensores nos corpos,
câmaras de vídeo, assegurando um contacto permanente bilateral dos
idosos, especialmente os isolados, com médicos, enfermeiros e hospitais
(a «telesaúde» ou telehealth) e outras agências. Na Coreia do Sul, por exemplo, o governo espera providenciar pelo menos um robô por cada família (household)
para o ano 2020 (seriam milhões!). Na União Europeia também se projecta
o desenvolvimento de «robôs companheiros para os cidadãos». Note-se
que, com respeito a problemas humanos e sociais desta gravidade,
recorre-se acima de tudo à intensificação e extensificação tecnológica,
microelectrónica, computacional, robótica, da vida. Seriam precisos
muitos robôs para atender a todas as carências das pessoas que sofrem de
demência, por exemplo, ou robôs extremamente versáteis.
18
Com
a morte, os nossos cadáveres serão sujeitos a um processo de venda de
todos os órgãos, tecidos, ossos, cérebros, etc., de interesse para algum
hospital, clínica de investigação, laboratório, museu, galeria de arte,
artista ou psicopata (muitos serão oferecidos grátis,
incondicionalmente, mas mesmo assim, a sua extracção requer a
intervenção de alguma empresa especializada, e isso tem custos, e alguém
terá de pagar), a não ser que haja o interesse, o dinheiro e o apoio
moral, técnico ou financeiro de parentes ou amigos de simpatias
«imortalistas», ou pelo menos, se não o forem, dispostos a cumprir os
«testamentos vitais» dos defuntos, para recorrer à criogenia, nos países
onde esta prática é legal, na expectativa de que, dentro de duas ou
três décadas, com os avanços da biomedicina, se possa realizar uma
eventual ressurreição, prática que envolve o congelamento, a
criopreservação dos corpos, ou só dos cérebros, que na sua segunda vida
biológica estariam associados a um novo corpo (por enquanto há só umas
poucas centenas de criogenizados à espera, em várias instalações, nos
eua).32
Se não recorrermos à criogenia, e se
ficar algum resíduo a tratar depois da extracção dos órgãos, etc., esses
restos mortais serão processados por um crematório-empresa (a mais bem
sucedida modalidade da industrialização do tratamento dos mortos33).
19
Depois
da morte, a nossa imagem póstuma poderá ser gerida, no caso de termos
deixado um certo capital para estes fins, por uma empresa (como já
acontece), que se poderá encarregar, por exemplo, de dar o nosso nome a
uma estrela, pelo melhor preço (o mercado para este efeito já existe, e
há imensas estrelas).
A nossa morte pode ser documentada
exaustivamente, se quisermos (ou mesmo se não quisermos), e os custos
não serão elevados. A documentação audiovisual, digitalizada, da morte
poderá ser arquivada como memento mori. Podíamos chamar «tanatoteca» a este tipo de arquivo.
A auto-documentação electrónica de tudo o que fazemos e das nossas imagens pari passu, já parcialmente realizada na vida quotidiana com os Iphones, pode ser ampliada quase ad infinitum. Podíamos
chamar «e-bioteca» ao arquivo de vidas humanas, em princípio, o arquivo
digital da totalidade de cada vida individual, no limite em
correspondência biunívoca com tudo o que fizemos, e talvez mesmo tudo o
que se passa no nosso cérebro, com as tecnologias de neuroimagens
comofmri [functional magnetic resonance imaging] podem revelar
electronicamente (audiovisualmente por enquanto, mas no futuro talvez
também com sensores gustatórios e olfactivos). Teremos a nossa vida, a
vida que vivemos em primeira mão, e a nossa e-vida, ou a nossa vida
digitalizada em simultâneo, que poderá ser arquivada numa bioteca
familiar ou museológica, virtual: como já vivemos online uma boa parte do nosso tempo, especialmente os hiper-conectados (com câmarasweb ainda
mais directamente), a transferência da nossa vida biológica, analógica,
para a vida online, electrónica, digital, na íntegra, não representará
um grande salto.34
E já surgiram «grupos
memoriais» via Facebook. Nestes grupos virtuais comemorando os
falecidos, partilham-se fotos e vídeos do falecido, podcasts, gravações de todo o tipo, e links,
além de testemunhos diversos e os arquivos pessoais, inclusive e-books,
na sua totalidade: como o ciberespaço é infinito, todos cabem, humanos e
não-humanos, todos os seres a que damos valor.35As
nossas vidas podem ser filmadas/audio-vídeo gravadas na sua totalidade,
24/7, minuto a minuto: a tecnologia está disponível, e já há quem se
disponibilizasse para o efeito. Estes testemunhos, recordações e outros
actos memoriais no grupo podem prolongar-se através dos anos, sem as
limitações do espaço físico, das ocasiões breves, liminais, dos rituais
funerários e piaculares que ainda se observam e da memória colectiva.
Uma espécie de quase-imortalidade, senão do corpo, ou da consciência,
pelo menos da «alma virtual», uma versão electrónica da «imortalidade
subjectiva» comteana (Auguste Comte), assegurada através de uma grande
rede social digital, mas provavelmente também, mais cedo ou mais tarde.
através de outras. Para os que forem objecto de algum grupo
memorial—potencialmente todos os mortos (humanos) poderiam gozar deste
tipo de tratamento—o mais provável será uma estratificação de status e prestígio dos defuntos, com os seus ratings e rankings,
tanto depois como antes da morte, pois a reputação póstuma pode variar
imenso. A imensa maioria ficará no limbo póstumo virtual. Haverá, no
entanto, oportunidades de mercado com respeito a este assunto, e também
para empresários inovadores.
Notas
[1]
A questão é um pouco mais complicada que a distinção entre fertilidade e
infertilidade, e não só por razões médicas. Já há casos no Reino Unido
de mulheres jovens e férteis (entre os 18 e os 25 anos, nas melhores
fatias etárias para a procriação natural) que preferem a inseminação
artificial, recorrendo a sites que oferecem esperma, grátis ou não, de
indivíduos ou agências (estas bem mais caras), porque, sendo
economicamente e profissionalmente independentes, querem ter filhos com a
máxima liberdade, quando quiserem, sem sexo, sem parceiros, sem amor,
sem as complicações das relações pessoais. Portanto, a mera existência
da tecnologia incentiva a escolha de outras opções que as relações
pessoais e o amor sexual, opções impessoais e clínicas. A invenção da
tecnologia de fiv foi defendida como uma magna resposta humanitária da
biomedicina ao desespero dos casais inférteis: a infertilidade afecta 10
a 15 % da população, mas que passou na altura de uma minoria silenciosa
e envergonhada a uma minoria com voz, força e peso na economia da
reprodução, exercendo pressão constante sobre o desenvolvimento dos
mercados e tecnologias apropriadas. Hoje a tecnologia de fiv serve tanto
mulheres solteiras, como alguns casais completamente sadios e férteis.
Há factores sociais, culturais, económicos e psicológicos para além dos
biológicos nestas opções. A procura de fiv pode resultar de outros
factores para além da infertilidade, o que não foi previsto, pelo menos
em público, pelos biólogos e médicos que elaboraram a tecnologia.
[2] Liza Mundy, Everything conceivable – How assisted reproduction is changing men, women and the world, London 2007.
[3] Charis Thompson, Making parents – The ontological choreography of reproductive technologies, Cambridge Mass., 2005.
[4] Sobre o baby business como
complexo tecno-mercantil com estes variados sub-mercados, ver o livro
de Debora L. Spar, professora de Direito na Harvard Business School: The baby business—How money, science and politics drive the market of conception, Cambridge Mass., 2006.
[5] Sobre a persitência do eugenismo, e em especial a sua recrudescência nas últimas décadas, ver o cap. ix do meu livro Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição humana, Lisboa, 2011.
[6] Os propagandistas da «educação empreendedorista» (enterprise education) no Reino Unido destacam as atitudes e comportamentos ou aptidões como «honestidade, integridade, pontualidade, reliability, boa apresentação, teamwork», que podem assegurar a empregabilidade (James Hurley «Employers call for ‘enterprise curriculum’»,The Daily Telegraph 26 de Julho de 2011). A honestidade e integridade chamavam-se antigamente virtudes, e não «aptidões» (skills)—se o ditado inglês rezava «honesty is the best policy» ficava subentendido que a honestidade, além de ser uma virtude, tinha também valor
instrumental—, e é interessante ver como os ideólogos deste tipo de
educação vêem a escola como devendo ser uma escola de virtudes,
denominando-as como aptidões: a educação moral, como se chamava
antigamente, mas não necessariamente laica, porque as escolas religiosas
estão muito em moda no Reino Unido, mesmo entre famílias irreligiosas,
não se encontra no currículo, em geral. Educação moral: e a educação
cívica? Se o Estado-nação, cada vez menos credível hoje, se tornar numa
empresa, ou consórcio de empresas, não vamos precisar de uma formação
específica para vivermos na sociedade politica, ou uma educação para a
cidadania.
[7] Em média, durante a sua vida, um cidadão americano
muda de emprego mais de dez vezes, muda de casa mais de seis vezes,
casa-se mais do que uma vez (David Gilbert, Stumbling into happiness, London 2006, p. 214.).
[8] A China conquistou o lugar de quarta potência económica mundial em 2005.
[9] Ver Adriana Petryna, When experiments travel – clinical trials and the global search for human subjects,Princeton
2011. Mesmo assim, a necessidade de ensaios clínicos é tão grande, com a
enorme expansão da biomedicina de pesquisa, que uma catedrática de
bioética americana pronunciou-se recentemente no sentido de que existe
um obrigação moral de todos os cidadãos adultos do país participarem
em ensaios clínicos, mesmo contra a sua vontade, dispensando portanto a
máxima de consentimento livre e informado, obsoleta, segundo esta
professora. Se essa obrigação moral fosse traduzida em lei, implicaria
uma grande ampliação do universo de pacientes («sujeitos») destes
ensaios, tornando a população nacional num universo de experimentáveis
biomédicos (seríamos «cidadãos biomédicos», por assim dizer, como os que
participaram, pelo menos devido à proximidade, em ensaios nucleares se
denominaram «cidadãos atómicos», ou os afectados pelo desastre de
Chernobyl que se auto-denominaram «cidadãos biológicos», como referido
por Adriana Petryna em Life exposed – biological citizens after Chernobyl, Princeton 2003). Poderia reduzir consideravelmente a prática corrente de outsourcing destes
ensaios em países com uma população de miseráveis abundante e
ignorante, mas a procura de «sujeitos» é tão grande que possivelmente
nem esse resultado benéfico virá a acontecer (sobre o assunto ver as
referências e links no artigo de Bill Gleason «Do people have a moral
obligation to participate in research?» The Chronicle of Higher Education, 14
de Outubro 2011). No entanto, mesmo as pessoas que se sujeitam
voluntariamente a ensaios clínicos, em geral não recebem compensação se
as coisas andam mal, nem sequer ajudas de custo. Há um ou dois anos uma
instituição americana biomédica muito respeitável tinha sugerido a
utilização de prisioneiros para ensaios clínicos, também dispensando a
máxima do consentimento informado (sujeitar prisioneiros a experimentos
biomédicos, inclusive psicocirúrgicos, é uma prática que vem de longe, e
não só na eua). Sobre a questão da coacção nos experimentos biomédicos
ver o cap. vi do meu livro Experimentum Humanum: civilização tecnológica e condição humana, Lisboa, 2011.
[10]
Pelo menos a socialização das crianças para os papéis de consumidores
ou participantes na economia de mercado pode começar bem cedo: já há
aplicações para iPhones destinadas a crianças a partir dos dois anos de
idade, jogos em particular, e a multiplicidade e ubiquidade dos ecrãs
electrónicos hoje, em casa ou em lugares públicos, não poupa ninguém,
nem os bebés, praticamente 24/7. Quanto à socialização para o papel de
empresários, já há infantários onde se ensinam os méritos dos
empresários, a importância dos empresários na vida nacional e
internacional. Não deve faltar muito para concursos para os melhores
empresários infantis e para o equivalente empresarial do Portugal dos
Pequeninos (depois de escrever esta nota, vi uma notícia de que as Girl Scouts da eua vão organizar concursos com prémios para as escuteiras que apresentarem os melhores business models e
os melhores conhecimentos de contabilidade, e não só da economia
doméstica, como antigamente). Em certas culturas católicas tradicionais
procurava-se estimular o máximo de vocações para sacerdotes ou para a
vida religiosa em geral: neste admirável mundo novo, promove-se qualquer
coisa como um equivalente funcional, estimulando o máximo de vocações
para a vida empresarial ou pelo menos para o papel de bons consumidores,
de bons fregueses.
[11] Denominado o «capitalismo total» por um empresário-estudioso francês, J. Peyreval.
[12]
A religião já deixou de ser registada nos passaportes dos países
ocidentais, embora só há poucos anos é que a religião Ortodoxa deixou de
ser inscrita universalmente nos passaportes gregos, como se religião e
nacionalidade coincidissem, sendo ambos atributos adscritivos dos
cidadãos. O recrudescimento do nacionalismo etno-religioso poderá trazer
esta prática de volta em alguns países. Recentemente, um escritor
israelita conseguiu registar-se como judeu etnicamente mas sem pertencer
à religião judaica: o primeiro caso bem-sucedido deste tipo no país,
porque antigamente a etnicidade supostamente coincidia com a religião.
[13] O tratado mais extenso em prol da escolha livre neste mercado: Colin Gavaghan, Defending the genetic supermarket – Law and the ethics of choosing the next generation, London, 2007.
[14]
Ver a discussão importante deste tipo de patente e a defesa dos «comuns
genéticos» em vez do regime actual de expansão dos direitos de
propriedade sobre matérias genéticas nos eua no livro do filósofo David
Koepsell, Who owns you? The corporate gold rush to patent your genes,
Oxford 2009. ¶ As matéria genéticas abrangem haplótipos, snp
(polimorfismos), cnv. Além das patentes de genes, também nos eua se
desenvolveu uma jurisprudência que aceita patentes de células, tecidos e
mesmo doenças humanas. E os biomercados, as patentes de sementes,
microorganismos, organismos multi-celulares, plantas, e genes e genomas
de organismos não-humanos cresceram muito a partir dos anos 70.
[15] Segundo Terence Kealey. Sex, science and profits—how people evolved to make money, London, 2009, p. 379.
[16] Não é o caso dos estudantes escoceses, cujo acesso às universidades é praticamente gratuito, por enquanto.
[17] Mas a procura de óvulos pode abranger pessoas de estatuto socioeconómico relativamente baixo.
E a transacção pode ser bem curiosa, como no caso genuíno de uma
dançarina americana que vendeu óvulos para poder pagar implantes
mamários, mais ou menos necessários na sua profissão.
[18]Dados de Renée Almeling, cujos trabalhos anteriores citei no cap. ix do meu livro Experimentum Humanum. O seu novo livro Sex cells – the medical market for eggs and sperm,
Chicago 2011, trata do assunto mais extensamente. Há vários paradoxos
associados com as novas tecnologias reprodutivas. Um doador de esperma
americano afirma ser virgem aos 36 anos, embora seja pai genético de
umas 15 crianças, pois tem sido um doador entusiástico, com umas
quarenta mulheres clientes (curiosamente, não trabalhava para uma
agência, mas por conta própria, grátis). O mesmo podia acontecer com
mulheres, virgens-mães, embora nenhum caso tenha sido publicitado, e o
pai-virgem poderá ser único. E com o congelamento de esperma ou de
embriões pode-se ser pai depois da morte, anos depois.
[19] As
normas legais a este respeito na França mudaram consideravelmente várias
vezes nos últimos cento e tal anos. Neste caso específico, a mãe
genética, a doadora do óvulo, foi anónima. Mesmo assim, muitas mães
biológicas em França ou noutros países serão desconhecidas.
[20] Um dos resultados típicos deste outsourcing já
foi denominado o «bebé global», ou o «bebé mundial», pois é
perfeitamente possível que o doador de esperma, o doador do óvulo, a mãe
proveta, o pai jurídico, a mãe jurídica, e o local de nascimento sejam
de nacionalidades diferentes, como a cidadania do bebé, que pode ser
conferida pela nacionalidade dos pais adoptivos: pelo menos cinco
nacionalidades em questão (a mãe proveta representa certamente uma
novidade tecnológica). Uma nova indústria, coordenando pais adoptivos,
doadores de gametas, mães provetas, clínicas ou hospitais, em vários
países, trata destes assuntos transnacionais.
[21] Para um dos
maiores intelectuais bolcheviques, Alexandr Bogdanov, a doação
voluntária e gratuita de sangue para transfusão, praticada em grande
escala, seria uma das marcas da sociedade socialista, altruísta e
solidária (Nikolai Kermentsov, A Martian stranded on Earth – Alexandr Bogdanov, blood transfusion and proletarian science, Chicago
2011). De facto, na urss a doação de sangue para transfusão era
geralmente feita em troca de compensação monetária em tempo de paz.
[22] Os telescópios automatizados que fazem observações seguindo programas de software poderiam ser chamados «robôs astrónomos», complementando os humanos, tanto profissionais como amadores («cidadãos cientistas»).
[23]
Há muitos anos que o Príncipe-Consorte do Reino Unido se refere à
Família Real como «The Firm» («A empresa»), aliás título de um filme
sobre esta mesma família. Na ausência de uma Família Real no trono, não
podemos desfrutar de uma empresa deste tipo. Mas há dinastias políticas
em repúblicas democráticas que poderão ser consideradas como
equivalentes funcionais desta «empresa» monárquica, embora menos
faustosas.
[24] Prática que foi recomendada por um sociólogo francês famoso, Alain Touraine (não sei se ele mantém essa opinião).
[25]
Há tempos, alguns cidadãos britânicos que tinham pedido passaportes
receberam uma carta de desculpas da agência que trata do assunto,
endereçada a «Dear customer»! É verdade que se paga por um
passaporte, mesmo legal, mas mesmo assim, no passado este facto nao
implicava que a troca de dinheiro por uma passaporte a que temos direito
como cidadãos constituísse uma transacção comercial como qualquer
outra. Trata-se de uma relação de cidadania, não de uma relação de
mercado. A não ser que se identifique o Estado como uma empresa.
[26]
A desestatização, desnacionalização ou privatização da moeda foi
defendida por Hayek em vários estudos, além de outros economistas de
menor fama.
[27] Os exo-esqueletos são, em princípio, de óbvia
utilidade para civis, para os paralisados e os incapacitados ou de pouca
mobilidade por outras razões, como a idade, e a sua produção já começou
nos eua.
[28] A privatização das polícias foi defendida pelo
economista David Friedman, filho do mais famoso e nobelizado Milton
Friedman.
[29] O que já foi chamado «equiveillance», jogando com a palavra inglesa surveillance (que pode ser lida não só como vigilância, que é a tradução normal, mas também, tendo em conta o prefixo «sur» recordando a sua acepção latina, como vigilância pelos «de cima», pelas autoridades) como também na expressão «sousveillance»,
vigilância pelos «de baixo», pelos subordinados. Vários autores têm
falado da «democratização da vigilânca», do «panopticon electrónico», ou
do «superpanopticon».
[30] Com o recente sucessor do famoso
Stuxnet, o worm Duqu, espiando empresas comerciais, parece haver Estados
espiando as empresas comerciais dos outros países pelos meios mais
sofisticados.
[31] No dia 1 de Agosto de 2011 saíu um artigo no jornal diário londrino The Times,
hoje propriedade do império comercial-político de Rupert Murdoch, em
que se fala assim. A linguagem da mercadorização («commodification») já
há alguns anos deixou de ser o apanágio de marxistas, ex-marxistas, ou
sociólogos, para entrar no vocabulário geral da cultura académica
anglo-saxónica, mesmo nas Faculdades de Direito.
[32] Durante a
primeira década do poder bolchevique, alguns soviéticos sonharam com uma
coisa semelhante no caso de Lenine, na expectativa de que com os
avanços sem precedentes da ciência propiciados pelo socialismo
instalado, ele seria num futuro não muito distante o primeiro dos
humanos imortais. O tema da imortalidade por vias biomédicas e
tecnocientíficas em geral, de indivíduos ou de colectividades (em
princípio, a sociedade socialista), já tinha sido debatido entre os
intelectuais do partido antes da Revolução de Outubro de 1917, num
ambiente cultural onde estas questões tinham sido colocadas por
intelectuais de outros quadrantes ideológicos.
[33] Embora haja
muita procura de outras opções, não-industriais, não-comerciais, mesmo
lúdicas, nas sociedades europeias pós-cristãs. Curiosamente, esta tem
sido uma área onde a «escolha livre» tão apregoada nas economias de
mercado contemporâneas, e a invenção de novas formas simbólicas, não se
tem manifestado tanto como se poderia esperar.
[34] No passado, guardavam-se objectos, mechas de cabelo, retratos dos mortos, como relíquias ou memorabilia,
ou diários e memórias não publicadas, e no caso dos monarcas, algo
mais; com o advento da fotografia, álbuns de fotos da família, e depois
gravações e vídeos; mas só agora o que pode ter sido imaginado na ficção
científica se pode aproximar da realidade. Poucos terão uma casa de
família partilhada por várias gerações através do tempo, décadas ou
séculos, como memória física.
[35] A quase-divinização do
ciberespaço, na sequência da quase-divinização do espaço físico em
pensadores como Newton, em que o espaço cósmico era definido como sensorium Dei, encontra-se em muitos autores, referidos em Margaret Wertheim The pearly gates of cyberspace – a history of space from Dante to the Internet,
Londres, 1999). No entanto, nesta versão a quase-divinização do
ciberespaço abrangeria a incorporação virtual de todos os mortos humanos
através da documentação digital das suas vidas. Possivelmente poderia
incorporar mais do que os humanos, os animais de estimação tão queridos
de muita gente, embora alguns deles já tenham sido clonados—outra
solução tecnológica.