Quero defender a relevância política da arte e da filosofia em oposição às possibilidades semânticas da «arte política» e da «filosofia política». Quero demonstrar que «arte política» e «filosofia política» implicam uma autopolitização, em vez de ser político no sentido de uma política da liberdade, do impossível e do mais necessário. Esta política não seria aquilo que se denomina normalmente como tal. Não seria uma afirmação ou defesa de interesses. Seria a resistência face à ordem da realidade sócio-política e ideocultural. Articular-se-ia como negação absoluta em relação ao universo dos factos e das opiniões que nele circulam. Seria uma política da verdade na medida em que a verdade entra em conflito com as certezas estabelecidas e que silencia a voz da verdade oficial. Quero mostrar que a arte só tem sentido como arte e a filosofia como filosofia. Não se trata de reduzir a arte e a filosofia ao campo sociopolítico no qual se articulam, nem sequer de uma definição de arte e filosofia como tarefas políticas. «Esta é a ilusão da esquerda nas últimas décadas», diz Heiner Müller, «dos intelectuais europeus ou, melhor dito, dos literatos, em que podia e deveria haver uma comunidade de interesses entre arte e política. A arte não é, de todo, controlável. Pode sempre desligar-se do controlo. É por isso que a arte é [...] quase automaticamente subversiva.»[1]
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Para ser uma afirmação de forma e verdade, arte e filosofia têm quase que negar-se[2] à ordem de «fazer política».[3] Esta é a ordem do possível, da pragmática e sua prudência prática, da inteligência situacional. É a ordem da frónesis, como disse Aristóteles. É a dimensão da razão diplomática.[4] Aristóteles chama frónesis à inteligência, em particular, na não-liberdade. É a inteligência que opera em função da situação na qual decide e actua. Este é (Gadamer realçou-o constantemente) o princípio da hermenêutica: a razão sustentada e sustentável. Com isto aproxima-se à valoração da doxa, do senso comum. Arte e filosofia pertencem à resistência absoluta no que diz respeito à doxa e à frónesis. Elas obrigam o sujeito a ir mais devagar, a refrear-se, a renunciar à força. Filosofia e arte querem conduzir o sujeito como força de afirmação capaz de resistir à difusão da doxa e da frónesis. Na realidade o sujeito apenas decide e actua negando a sua situação, ignorando-a e transgredindo-a, esburacando a textura dos factos. O sujeito não é nada mais que o nome para este esburacar e da hipérbole que necessariamente representa. Daí a desconfiança de uma tal autorização própria face ao sujeito,[5] na medida em que resiste à difusão feita pelo espírito dos factos.
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Nem na filosofia nem na arte se trata de uma prova ou de uma opinião. Trata-se de uma posição, de uma afirmação. A diferença entre uma afirmação e uma prova ou opinião consiste em que a primeira tem que contentar-se com a incerteza. A filosofia da afirmação é a filosofia do incerto. Ultrapassa e transgride as modalidades do pensamento convencional, tal como a reflexão, a argumentação, a fundamentação e a crítica. Trata-se de tocar numa verdade enquanto sujeito do incerto e de dar forma e linguagem a este contacto. «Verdade» é o nome do limite do mundo dos factos. A filosofia apenas existe como contacto com este limite, como uma afirmação liberta dos imperativos da facticidade. No tocar a verdade a filosofia tem que resistir tanto à certeza da opinião como ao obscurantismo dos factos. É tocando no intocável que advém uma forma de vida.
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A vida filosófica não é uma vida do conhecimento, uma vez que permanece ligada à verdade e não ao saber. Não se trata de saber mas sim de experimentar o limite do cognoscível. Esta experiência exige e implica saber, mas não se esgota na segurança desse conhecimento. Uma experiência da verdade rompe com a segurança dos modelos de certeza. Como sujeito da verdade, o sujeito habita a zona de contacto entre saber e verdade. Enquanto que o conhecimento pode ser descrito como passível de ser possuído, a verdade, por definição, não pode ser possuída. Possuir o não possuível é o que eu chamo de tocar a verdade enquanto forma de vida. É a experiência de uma desapropriação completa. O sujeito, nesta experiência, nem sequer se possui a si mesmo. Conduz-se como um extraterrestre e está diante de si mesmo como alguma coisa elementarmente não familiar.
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O sujeito da verdade não é nem um sujeito da certeza nem do conhecimento. É um sujeito de limite e ele próprio é um limite sempre que aflora os limites do universo dos factos. A experiência de tocar nesses limites não pode ser vista como epistemológica porque é a experiência dos limites do conhecimento teórico. A filosofia não é uma teoria do conhecimento, mas sim uma forma de vida que descreve os limites da possibilidade do conhecimento sem estar alicerçada numa espécie de conhecimento superior. A filosofia é mais do que meramente a capacidade de conhecimento. Filosofia não é anámnesis; começa com a experiência do colapso da memória. O sujeito da filosofia pode ser um sujeito que procura, mas ele não sabe o que procura. A procura não é a verdade da filosofia porque tocar a verdade significa cessar de procurar. Terminar a procura não significa enclausurar-se numa certeza mas sim compreender a ausência de sentido desta tentativa de auto-clausura. No entanto, esta compreensão não pode ser descrita como saber ou como facto, antes sim como objecto de uma afirmação que vagueia sobre as fundações dos factos. Uma filosofia da afirmação inclui este vaguear. O sujeito da afirmação vagueia entre as esferas do fundamento e do abismo, mantém contacto tanto com a naturalidade dos factos crus como com a sobrenaturalidade das meras ideias. Habita uma terceira dimensão. É a dimensão do limite, a dimensão da indiscernibilidade entre o limite e o seu além, uma zona de indeterminação, de terror, de esperança, de devir, de tristeza e de felicidade. Os céus de ideias são habitáveis como espaços de factos, mas o mundo da indeterminação é inabitável, porque nem sequer é um mundo.
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Nos limites do mundo, nessa margem do mundo, o sujeito experiencia-se a si mesmo como um limite. O limite é um nome possível para a subjectividade. É por isso que pode ser considerado um sujeito sem subjectividade, uma vez que o limite separa continuamente o conceito substancial de subjectividade do sujeito singular. Um sujeito é o que se abre a este fechamento, é o sujeito estático de uma abertura primordial, sujeito desta pobreza e nudez ontológica, não é senão sujeito do vazio, da indeterminação e da ausência da essência. Aparece no pensamento do século xx como sujeito sem abrigo (Heidegger), como sujeito doindizível e do miraculoso (Wittgenstein), como sujeito doexterior (Blanchot), como sujeito da liberdade ou do nada(Sartre), como sujeito da falta ontológica ou do real(Lacan), como sujeito do caos e do devir(Deleuze/Guattari), como sujeito da dessubjectivação e docuidado de si (Foucault), como sujeito do outro (Levinas), como sujeito da différance (Derrida) e como sujeito douniversal ou da verdade(Badiou). É um sujeito cuja subjectividade parece coincidir com a dimensão do não subjectivo: um sujeito sem subjectividade.
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Filosofia e arte movem-se como formas de afirmação radicais que não estão seguras por um qualquer princípio universal para além da ordem do que é fazível, não com a finalidade de se ausentar do mundo e da realidade como o faz a política no contexto habitual da política, mas com a finalidade de colocar a intensidade da sua afirmação noutro horizonte, num horizonte de infinitude e de impossibilidade no qual o sujeito resiste a ser absorvido por meros interesses e inclinações, como afirmou Kant. Arte e filosofia são formas de auto-aceleração de um desejo de afirmação, que trespassa o horizonte consensual da discussão, da argumentação, da comunicação, da explicação, da justificação e da protecção reflexiva do ser. A Arte e a filosofia existem apenas na forma deste trespassar, como um poder de ultrapassar e transgredir o horizonte, como poder de afirmação de um sujeito de decisão, de uma decisão que atravessa o horizonte do possível até atingir a dimensão do impossível que é a dimensão da verdade.
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A verdade é o nome do arrombar dos sistemas, das instituições e dos arquivos da verdade, que se ocupam da administração das verdades factuais, do conhecimento. Verdade é um excesso. Ultrapassa e transgride o puro saber e assinala o ponto da mais extrema intranquilidade. O aflorar da verdade, que resulta do desejo da verdade da arte e da filosofia é um tactear inquieto do intangível. A filosofia e a arte dão-se apenas na forma deste tactear. Este tactear exige ao sujeito da arte ou da filosofia que atravesse o espaço do possível que é o espaço da doxa, da mera opinião e das verdades factuais por si estabelecidas, e no momento em que o trabalho é apresentado—a obra de arte ou a afirmação filosófica — exige ao sujeito que suspenda esse espaço.
9
A arte como afirmação de verdade baseada na afirmação da forma só é possível e necessária na dimensão da não liberdade real, que é a ordem dos factos, dos imperativos simbólicos e imaginários. A arte apenas existe em relação com aquilo que a restringe, nega e ameaça de forma irredutível. A não liberdade objectiva é o elemento no qual o sujeito da arte se eleva e se mantém como sujeito de liberdade.
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Existe um mal-entendido em relação ao conceito da forma: pensa-se que a forma cria claridade. Isso é falso. A forma é claridade que produz desordem, caos! Daí o receio difundido tanto na arte como no pensamento face à forma. E daí também a decisão comum a favor do difuso, dado que o difuso coopera para oferecer uma panorâmica clara e bem ordenada, enquanto que a afirmação da forma arrisca a dar-nos uma claridade que não trai a extensão da ausência factual de uma panorâmica clara e bem ordenada.
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«Se o lugar onde quero chegar fosse apenas alcançável graças a uma escada», constata Wittgenstein, «eu renunciaria a ele, uma vez que ao lugar aonde quero chegar, na verdade eu já lá deveria estar».[6] Já estar no lugar aonde se pretende chegar—esta é a formula de um pensamento que pode descrever-se como pensamento de uma imanência, de uma imanência que é capaz de incorporar em si própria a transcendência (o seu para além). O pensamento de Wittgenstein, é tal que conduz a imanência do já ou do antes ao seu limite de modo a elaborar uma não familiaridade constitutiva no seio da evidência da familiaridade com uma forma de vida, cuja presença apenas pode aparecer como ausência. Wittgenstein referiu-se ao seu trabalho como uma obra de clarificação.[7] Significa isto que o seu objectivo é criar claridade? Não necessariamente, quando se considera que o produto da clarificação é a claridade, e que não existe claridade que não seja perturbadora.
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Ao atravessar a experiência da verdade perde-se o que é auto-evidente e familiar na forma de vida. Assim sendo é possível dizer-se que em qualquer forma de vida a dimensão do familiar se combina com uma não familiaridade fundamental. A verdade é aquilo que perturba e interrompe a pureza e o simples funcionamento de uma forma de vida. A esta experiência de interrupção chamo-lhe um contacto táctil com a verdade. Ao tocar a verdade perde-se a evidência de uma forma de vida. O sujeito perde o seu contexto. Vira-se para uma espécie de exterior sem ser capaz de reagir à perda da evidência, sem estar preparado para ela. A experiência da verdade inclui o repentino do seu aparecer. Qualquer coisa que se assemelha à verdade só existe como evento de verdade, como intrusão do impossível na dimensão da possibilidade. Esta seria uma segunda definição da forma de vida: uma forma de vida constitui o espaço vivo do possível. E o limite deste espaço de vida, a interrupção da corrente, do curso da vida, significa que ocorreu uma verdade. Significa que o sujeito está em contacto com os limites das suas possibilidades e da sua vida.
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O que acontece com o sujeito deste tocar? O que significa experimentar uma verdade? O sujeito da forma de vida leva a sua vida como uma vida de possibilidade, como uma forma de possibilidade. Desliza quase sem resistência no espaço do indubitável. Pode dizer-se queele vive significa aqui, no espaço desta forma de vida: ele funciona.
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Viver o invivível, dar lugar à morte no meio da própria vida, a isto chamo tocar a verdade. E creio que a fissura que torna a experiência da forma de vida num conflito entre a experiência do que pode ser experimentado e a experiência do não pode ser experimentado pertence à questão que diz respeito à ética em geral. Na Conferência sobre Ética de 1929, Wittgenstein insistiu sobre a incompatibilidade dos meros factos com a esfera da ética, caracterizando-a como «sobrenatural». O carácter sobrenatural da ética pode ser relacionado com a dimensão miraculosa e com o seu carácter como evento. O «milagre da existência do mundo», o «mundo como milagre»[8] manteve Wittgenstein em suspenso desde o início da sua vida até à sua morte. É bem conhecida a frase do Tractatus: «O que é místico é que o mundo exista, não como o mundo é.» (6.44).[9]
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A pergunta que me faço é até que ponto o sujeito ao deixar-se ir na corrente da vida, na sua permanência numa forma de vida, não confronta obrigatoriamente o sujeito com esta fissura, com o milagre, com o evento, com a verdade, com a dimensão ética e com a morte; então, até que ponto, na experiência da familiaridade e evidência da rotina quotidiana da forma de vida, a noite da não evidência aparece através do não familiar, do estranho de si próprio. «Evidência» ou não evidência que, como diz Wittgenstein, «tornaria insustentável até o que é mais seguro—a evidência como tal.»[10]
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A forma de vida indica, em primeiro lugar, a realidade partilhada com outros sujeitos. A forma de vida é o horizonte partilhado. O horizonte não é em primeiro lugar, o horizonte fenomenológico do ver, da percepção e da representação ou do conhecimento. É o horizonte da vida, horizonte de vida. No conceito de «forma de vida» já se encontra a referência à comunidade dos sujeitos e ao aspecto comunal do sujeito.
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O sujeito partilha um mundo com outros sujeitos. O mundo dos factos. No mundo dos factos, o sujeito não está só. O mundo dos factos é a zona da comunidade. É a zona de partilha dos sujeitos que partilham e que são os participantes comuns das suas evidências, convicções e incertezas. A zona dos factos é o lugar da linguagem, do logos partilhado, o espaço sócio-simbólico.
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Wittgenstein diz no Tractatus: «O sujeito não pertence ao mundo, mas é um limite do mundo.[11] Isso significa que o sujeito não pode fundir-se na comunidade da linguagem, na forma de vida partilhada e nos seus imperativos simbólicos. O sujeito não se funde. É limite da comunidade. Limite e resistência. Vive a sua vida em horizontes divididos, mas não desaparece no interior da comunidade. Projecta-se para fora dela. Embora o sujeito se mantenha sobre o terreno partilhado das formas de vida partilhadas, projecta-se para fora dessas formas numa resistência solitária. Ele atravessa o horizonte partilhado e marca o seu limite. É o horizonte do horizonte.
19
Qual é o sentido do tocar a verdade? O que é, ao fim ao cabo, a verdade? O que significa tocar a verdade como forma de vida? Chamo verdade ao espaço deste limite. A experiência da verdade é tocar este limite. O sujeito visto como sujeito deste tocar é o sujeito da verdade. Ao tocar a verdade, toca-se também em si mesmo de uma maneira inequívoca, um «si mesmo» que em rigor não existe. Vai entrar em contacto com um (impossível) mais além .
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Chamo sujeito, num gesto que talvez não seja mais considerado nietzscheano, àquele que assume a responsabilidade da sua inocência. Responsabilidade em relação a quem? Não em relação a si mesmo, porque este «si» e este «mesmo» assinalam características de identidade, uma vez que aqui ao sujeito corresponde o para além da identidade, e a este para além da identidade, cujo representante situacional é o sujeito, eu chamo verdade. O sujeito assume a responsabilidade por uma verdade e em contraste com a verdade da sua situação. É evidente que esta verdade não pertence à própria situação. Basta pensar na definição que Platão dá à ideia tou agathou como epekeina tes ousias: a ideia do bem, a verdade, significa o constitutivo para além de uma ligação ontológica.[12] Esta é a zona não visível em qualquer sistema constituído e estabelecido. Que se ganharia se aqui se fizesse a objecção ao «idealismo»? A verdade é o que se recusa a ser cognoscível, recusa o idealismo dos factos! E a insolência seria a predisposição de integrar essa mesma resistência—o próprio incognoscível—na sua vida.
21
O realismo da filosofia é o realismo amoroso de um sujeito que recusa escolher entre as alternativas de um realismo vulgar e de um idealismo sonhado. No entanto, a filosofia deseja a verdade, deseja o real. A filosofia não é uma fuga da realidade. Pode representar um movimento de fuga, mas não se evade da realidade. A filosofia escapa ao substituto da realidade que se elege a si mesmo como realidade. Filosofia é realismo, e, neste sentido, desejo de realidade.
22
O que é verdade nunca pode ser uma certeza. A certeza salta por cima da categoria de verdade. Inventam-se certezas para evitar verdades. O sujeito da certeza é o sujeito da realidade dos factos.
23
O sujeito entra em contacto com o inominável. Como já o demonstraram Bataille, Sartre e Lacan, a experiência do heterogéneo, do exterior, da contingência,[13] do real, é uma experiência limite que desvia o sujeito da sua segurança interior. O sujeito perde-se como sujeito de autocontrole e de controle do mundo. Precipita-se para fora da sua essência e experimenta o terror de uma alienação e desintegração absolutas.
24
O devir do sujeito descreve a confrontação do sujeito com o seu inconsciente, que é um tocar nos limites da ordem da consciência.
25
Deve-se estender a questão do tocar na verdade à questão do sujeito. O sujeito vive como sujeito que toca a verdade. Ser sujeito significa fazer um pacto com a verdade.
26
Tudo que se assemelha a um sujeito apenas existe como sujeito de verdade. Na abertura do ser, como diz Heidegger, nem o sujeito fala a verdade, nem estádentroda verdade. Sujeito é aquele que experimenta o limite da verdade exposta e a limitação da verdade das proposições.
27
Chamo tocar o intocável à experiência do limite e da limitação (da circunscrição do que é actual como verdade factual). O sujeito concretiza esse tocar no momento da sua decisão a favor de uma verdade que não pré-existe como tal. O sujeito identifica-se com esse tocar que se prefigura e constitui como objecto e alvo da sua afirmação.
28
A identificação do sujeito com uma verdade é um acto de autocompromisso, de fidelidade, como lhe chama Badiou.[14] A identificação com uma verdade é uma superação, transgressão e suspensão de um modelo de factos constituintes da identidade. Só existe identificação apenas como suspensão do princípio de identidade. O sujeito da identificação toca o impossível. Coliga-se com o inconcebível e lança-se de encontro ao indeterminado.
29
O sujeito deste lançamento-de-encontro-a é um sujeito icariano do sol. Não poderá ser absolvido de uma espécie de húbris estrutural. Gadamer fala «do voo de Ícaro da filosofia especulativa»[15] que faz do sujeito um Ícaro que acelera para além da exactidão dos factos e do logos paterno. O sujeito da verdade é um sujeito Icariano que voa sobre si mesmo e sobre os factos. No seu voo de verdade ele sobrevoa a não verdade nas suas, e nas do mundo, determinações reflexivas que constituem a identidade e são por isso externas e superficiais. Distancia-se do seu estado cósmico factual com o objectivo de definir o seu ser como uma dissociação acósmica do seu ser, como um distanciamento dos seus componentes factuais alienígenas.
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Poderá haver um contacto com a verdade apenas para um sujeito singular do monstruoso, para um sujeito do deserto? Ou existe uma promessa para alargar a experiência singular de verdade à experiência de verdade em geral que está associada ao conceito de verdade, à verdade universal como uma asserção singular? Alargá-la a uma verdade que, ainda que possa ser afirmada singularmente, tenha validade universal. Há sem dúvida sujeitos, provavelmente muitos, que excluem a verdade de si mesmos. A verdade, no entanto, é aquilo cujo acesso não está vedado a ninguém, que não esquece ninguém (cf. Kafka, ver a lei).
31
Toca-se a verdade quando o sujeito é forçado a acelerar para além do seu ser actual, quando se perde no tocar com o que não pode ser tocado no oceano do indecidível.
32
A verdade é o que é excessivo, o que sobra, o que o sujeito não pode devorar.
33
A verdade não pode ser fundamentada pela filosofia e pela arte. A verdade apenas pode ser afirmada. A verdade é infundável. A verdade acontece quando o sujeito se aliena da ordem simbólica, da sua integridade sociocultural, bem como das fantasmagorias do imaginário. A verdade existe no momento em que filosofia e arte (além de outras formas de afirmação como por exemplo as ciências) tocam o impossível—a virtualidade pura, o real ou o caos—com o risco de transgredir o horizonte.[16] Filosofia e arte têm que afirmar este tocar que é em si próprio um tocar a verdade. Elas realizam este movimento e defendem-no. São formas de realização de verdades não pré-existentes. Não se trata de encontrar, descobrir ou decifrar verdades. Trata-se de inventá-las, de produzir verdade! «‘A verdade’ não acontece ‘por si’, não está objectivamente disponível» e como tal decifrável, «mas deve sim ser conquistada», escreve Heidegger.[17] Uma tal verdade, por ser produto de um sujeito de afirmação beligerante e conquistador, não é por isso relativa, no sentido comum da palavra. A filosofia e a arte afirmam a verdade (a arte afirma a verdade através da afirmação da forma) recuando do relativismo das verdades factuais e do regime de certeza argumentativa e demonstrativa.[18] A filosofia e a arte não afirmam quaisquer factos; constituem verdades que corrompem a ordem dos factos. O lugar da verdade não pode ser encontrado no universo dos factos. Esta é a utopia da verdade, que se encontra perturbada,noutro lugar, que faz explodir o registo dos factos, que insiste num outro lugar não registado nesta topologia.
34
O ser humano é definido pela tendência para atingir e violar e transgredir o limite. Obviamente a vida humana inclui uma relação com o não vivível, assim como a fala humana se relaciona com o indizível. É a esta relação, a esta tendência e a esta investida contra os limites da linguagem, que Wittgenstein chama ética. O lugar do ético não é a vida ou o mundo. É este limite, a zona de contacto entre o mundo e o para além do mundo, entre a vida e a morte. O lugar da ética é umlugar problemático.
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O sujeito humano habita este lugar como sujeito desta expectativa ou disponibilidade[19]: como sujeito de inclinação. Neste sentido, ele é um sujeito ético, um sujeito do contacto com o intocável, um sujeito de auto-transcendência, um sujeito problemático uma vez que só é sujeito com base na sua disponibilidade para se transgredir e se superar como sujeito. A ética só existe como uma familiaridade com o não familiar, apenas tendo em conta que o sujeito atinja os limites do mundo e do sujeito. Ao atingir esta dimensão torna-se um sujeito ético, que supera e transgride o espaço do mundo. Esta transgressão é determinada pelo seu estatuto de sujeito. É primordial. Só há algo que se assemelhe a um sujeito no contacto com o não subjectivo. A dimensão não subjectiva não é o mundo objectivo uma vez que o mundo objectivo já é sempre o meu mundo subjectivo: «Eu sou o meu mundo».[20] A dimensão não subjectiva situa-se numa esfera de uma não familiaridade incomensuravelmente superior à do mundo ou da objectividade. Alcançar esta não familiaridade implica a experiência da transcendência do mundo, mas esta transcendência é incompleta. Ela não se projecta na existência. Não abre o que já está aberto. É uma abertura em relação ao fecho do mundo. Na transcendência o sujeito experimenta um limite que se abre ao nada. A transcendência é um tocar neste limite, é uma experiência de imanência absoluta.
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O contacto com o limite é uma superação e uma transgressão, uma vez que não há um para além do limite. Só há um limite que ao ser tocado pode ser transgredido. Em direcção a quê? Em direcção à dimensão de um fecho absoluto que coincide de forma insolúvel com a liberdade transcendental. O que é a filosofia senão a experiência desta liberdade e fecho? Em vez de se render à opinião de que a filosofia deve estar próxima da vida e se deve restringir ao possível, há que defender o «carácter agressivo da filosofia», que se distingue do postulado da «proximidade da filosofia à vida» através da conjugação do sujeito com o impossível, com o não visível, com a liberdade absoluta, vista como um infinito opressivo. De certa maneira, na filosofia trata-se de remover o sujeito da mera existência, de a definir como algo essencialmente distinto da existência animal. Enquanto Wittgenstein abre a vida ao fecho da vida, à morte, ao não vivível e ao milagre, também Heidegger parece definir o contacto problemático da existência humana com a dimensão do que é supra-subjectivo como a subjectividade do próprio sujeito. O sujeito é aquilo que é mais do que sujeito. Há um sujeito apenas como transgressão das suas funções de sujeito. Só o sujeito que se abre ao fecho e à morte pode ser correctamente chamado de sujeito de uma auto-transcendência fundamental.
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Caos é o nome da verdade que se mostra ao sujeito do tocar a verdade como abismo que se abre ou como fecho aberto. A ética «caosmótica» relaciona o sujeito com esta dimensão não familiar, com este limite que o mantém em contacto com o caos. Nada mais se pode pedir à ética e ao conceito de ética para além da exigência de permeabilidade do sujeito à não permeabilidade, de tal modo que o sujeito se reconheça no seu total desamparo e solidão.
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O tocar o intocável exige uma certa medida de vontade e coragem. O sujeito do tocar é o sujeito da liberdade de se alienar e transgredir. Em vez de se encerrar na sua própria imagem, deve ter a coragem de activar o seu outro si. Ele é o sujeito de uma elevação necessária de um si auto-agressivo através do qual se atribui a si mesmo toda a responsabilidade.
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O sujeito de auto-transgressão, que se desliga de si mesmo e que toca o limite é um sujeito finito da infinitude. É o sujeito de verdade enquanto que a verdadefor um nome para um «conflito ou um vazio interior e primordial».[21] É um sujeito aberto ao vazio de uma ‘origem’ pré-originária, um sujeito ontológico, cuja verdade não pertence nem à ordem ontológica do ser nem à ordem ôntica dos seres. A verdade do sujeito de verdade é uma abertura à zona de conflito entre o ser e os entes, um combate (éris) ou guerra (pólemos) entre abertura e fecho, uma abertura à... diferença ontológica. Como sujeito de verdade o sujeito que toca a verdade é um sujeito que experiencia a diferença entre léthe e alétheia, terra e mundo, obscuridade e luz. Em relação a esta diferença, face a um conflito que não se inscreve nem no registo do cognoscível nem no do não cognoscível (este conflito exprime a compossibilidade monstruosa entre saber e não saber! ), o sujeito tem que afirmar uma forma que seria ao mesmo tempo umaforma de verdade e uma forma de vida, uma forma que corresponde ao próprio informe.
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Tocar uma verdade exige do sujeito que se exponha ao abalo da desordem pré-original, atribuindo nomes aos seus estremecimentos, uma forma. E contudo, a auto-transição do sujeito de certezas no encontro com a verdade alienígena não é nada exterior ao sujeito. Neste contacto problemático, o sujeito joga e perde a sua consciência dos factos. É o «contacto com uma pura exterioridade»[22] que marca o tocar o intocável, a experiência de um limite absoluto.
41
O sujeito do amor à verdade é o sujeito de auto-transcendência até à dimensão de uma verdade que é irredutível tanto à esfera do saber como à do não saber e da fé. O «processo» escreve Badiou, do «universal ou de uma verdade» marca o corte com o saber estabelecido. «Também se poderia dizer que uma verdade não tem nenhuma relação com o conhecimento e, até, que ela é essencialmente desconhecida.»23 A verdade não é uma verdade de conhecimento, de fé ou de factos. A verdademarca o limite da luz do conhecimento, da fé e dos factos.
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O pensamento da luz tem que se afirmar como pensamento da escuridão. Tal como o sujeito da experiência do outro, do impossível, do futuro absoluto ou do acontecimento, o sujeito da afirmação da luz, afirma uma escuridão originária como o fundamento que possibilita a sua experiência. Por ser um pensar do possível está sujeito à experiência do impossível, tal como foi repetido incansavelmente por Derrida, toma decisões nas trevas da insolubilidade.[24]
43
O que distingue o amor à verdade da fé na verdade é que o sujeito do amor não pressupõe a verdade como algo dado substancialmente. A verdade apenas se constitui ao ser tocada. Este é outro nome para o nada.
43
A filosofia por representar um acontecimento europeu—o acontecimento de uma cultura do logos que dura há mais de 2500 anos—associou-se desde o início com a luz (o sol platónico, o lúmen cristão, a Aufklärung, as lumières, ou o Enlightenment, a evidência husserliana e a Lichtung heideggeriana)[25]. Ela acendeu-se na sua origem como metafísica da luz: desde o raio de Heraclito que tudo governa, passando por Platão e o neoplatonismo de Plotino, Proclos e Porfirio, por Agustín até Robert Grosseteste, Roger Bacon. Buenavaventura e Alberto Magno, para dominar, desde o fim da Idade Média até toda a Idade Moderna, as metafísicas da auto-transparência cognitiva, a busca de uma certeza apodíctica (certitudo), a auto-fundamentação ou auto-fundação na evidência da autoconsciência. Como se desde a sua aurora o sujeito ocidental tivesse estado sob o ditame de uma luz que o condena a articular-se a si memo e ao seu mundo em conceitos do manifesto, da claridade, da visibilidade e da abertura e, portanto, até certo ponto, de uma evidência lógica: «Há 2500 anos que tudo o que é e acontece aparece sob a luz do logos: através do logos e como o logos.»[26]
44
No entanto, é óbvio que ao sujeito da luz pertence o contacto com uma obscuridade que obscurece a luz da evidência. O sujeito da luz é acompanhado pela ameaça do seu escurecimento. Experimenta a eficiência desta ofuscação em todas as suas emoções e actos. Só há pensamento em função do limite indicado pela impossibilidade do pensamento. Tocado pelo não sentido, todo o pensamento tem que se elevar a afirmações de sentido. Só em função deste tocar com o não sentido é que têm sentido a liberdade, a razão, ou a responsabilidade como condições de possibilidade de auto-elevação.
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Pensar a infância da filosofia, Grécia, não significa muito mais que apontar ao Mediterrâneo e aos povos que aí triunfaram. Do filósofo pode-se dizer o que diz Hegel do povo helénico: que eles estão em sua casa sobre a água do mar, que a «natureza da sua pátria» [Deleuze e Guattari falam de uma «estrutura fractal» da Grécia: «cada ponto da península está tão perto do mar e a costa é demasiado vasta»(27)] os levou a uma «existência anfíbia» que pode estender-se «livremente em terra firme»,[28] e que este «mais além do mar em relação à estreiteza do terreno» proporcionou ao grego uma forma de êxtase mediterrâneo, dando-lhe uma «representação do indeterminado, limitado e infinito». E que quem aspira a aclimatar-se no «elemento mais perigoso e poderoso» tem que lutar com o mentiroso do engano oceânico.[29] O filósofo expõe as suas esperanças e paixões, «arriscando-se a perder a sua propriedade e a sua vida» sendo vítima da permanente incontrolabilidade do poder oceânico. Enquanto o sujeito permanecer afectado pelo inconsciente, o casual ou por qualquer tipo de escuridão, o corpo dos conceitos curva-se e distende-se no elemento talásico. Nada é mais certo que esta água, na qual não existe um para além da água, costas seguras, nem terra livre de inundações. Há que intencionalmente inventar cada orla e, ainda que estes inventos tenham êxito, o caos oceânico encerra o conceito individual como uma ilha ameaçada de subversão iminente, pela próxima maré.
NOTAS
[1]AlexanderKLUGE/ HeinerMÜLLER, «Ich schulde der Welt einen Toten», Hamburg 1996. «Eu não sou um escritor político», diz Müller num diálogo com Uwe WITTSTOCKem 1992, uma pessoa «pode relacionar-se com a política quando escreve, mas não se pode escrever politicamente. A política foi sempre para a minha escrita apenas material—o mesmo que a sexualidade por exemplo.» Cf. HeinerMÜLLER, Gesammelte Irrtümer, Frankfurt a.M. 1994, p. 150.
[2] Cf. Juliane REBENTISCH, Ästhetik der Installation, Frankfurt a.M. 2003, p. 276ss: «Aí onde a arte tenta fazer-se premiar em nome de afirmações políticas directas, descuidando o seu próprio lado da forma [...] não só reproduz em x vezes de repetição histórica a falsa alternativa entre formalismo e ‘conteudismo’. É mais certo que ao chantagear a própria importância baseando-se simplesmente nos seus conteúdos, corre-se perigo de ficar para trás com relação ao conceito de arte. Além disso, reduz também na maioria dos casos a complexidade dos problemas sociais e/ou teóricos que tenta recompor. Este tipo de arte de recomposição não transmite, no pior dos casos, nada que não tivesse sido reconhecido já independentemente disso e, na maioria das vezes, de forma mais diferenciada pela teoria. [...] A arte nunca comunica, se é que merece este conceito, directamente.»
[3] Alain BADIOU, Über Metapolitik, Zürich/Berlin 2003, p. 114.
[4] Sobre o jogo concertante entre frónesis (prudência) e sofrosyné (sensatez) Cf.ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, Libro VI, 1140 b 10 ss.
[5] «Dar-se a si mesmo o direito de actuar», diz Nietzsche: o direito à «grande decisão» e à «grande responsabilidade», que está ligado à inocência ontológica, à solidão essencial, à nudez transcendental e à pobreza substancial do sujeito. Cf. Friedrich NIETZSCHE, Nachgelassene Fragmente 1884–1885, KSA 11, p. 160.
[6] Ludwig WITTGENSTEIN, Vermischte Bemerkungen, Frankfurt a.M. 1994, p. 31.
[7] Ibid, p. 41.
[8] Ludwig WITTGENSTEIN, Vortrag über Ethik, Frankfurt a.M. 1989, p. 18.
[9] Ludwig WITTGENSTEIN, Tractatus logico-philosophicus, op.cit., 6.44.(10)
[10] Ludwig WITTGENSTEIN, Über Gewissheit, Frankfurt a.M., 1970, § 517, p. 133.
[13] Como é sabido, em SARTRE esta contingência e alteridade manifesta-se (entre outras maneiras) na náusea. Também AGAMBEN atribuiu esta função ao «sentimento ontológico», como ele o chama, (ou ao estado de ânimo) da náusea, quando afirma «que aquele que experimenta náusea de alguma maneira reconhece-se no objecto da sua abominação e teme, ao mesmo tempo, ser reconhecido por este. O homem que experimenta náusea reconhece-se a sim mesmo numa alteridade que não pode aceitar—subjectiviza-se numa desubjectivação absoluta.» Cf. Giorgio AGAMBEN, Was von Auschwitz bleibt. Das Archiv und der Zeuge, Frankfurt a.M. 2003, p. 92.
[14] Alain BADIOU, L’être et l’événement, Paris : Seuil 1988, p. 257–265.
[15] Hans-Georg GADAMER, Hermeneutik im Rückblick, GW 10, Tübingen 1995, p. 342.
[16] Sobre a «identificação da verdade com o real» cf. Alenka ZUPANCIC, The Shortest Shadow. Nietzsche’s Philosophy of the Two, Cambridge/Mass: MIT Press 2003, p. 92.
[17] Martin Heidegger, Parmenides, Gesamtausgabe Bd. 54, Frankfurt a.M. 1992, p. 25.
[18] «Ao relativismo, embora adoptasse um ar progressista, sempre se lhe juntou o momento reaccionário, já na sofística como disponibilidade dos interesses mais fortes.» (Theodor W. ADORNO, Negative Dialektik, Frankfurt a.M. 1970, p. 45ss).
[19] Wittgenstein traduz uma vez tendência por disponibilidade. Cf. LudwigWITTGENSTEIN, Zettel, Werkausgabe Bd. 8, Frankfurt a.M. 1984, p. 273.
[20] Ludwig WITTGENSTEIN, Tractatus logico-philosophicus, 5.63, op.cit., p. 67.
[21] Maurice BLANCHOT, L’entretien infini, Paris 1969, p. 120.
[22] Gilles deleuze, Die einsame Insel, op.cit., p. 372.
[23] Alain BADIOU, «Das Ereignis denken», en: Alain BADIOU / Slavoj ŽIŽEK, Philosophie und Aktualität. Ein Streitgespräch, op.cit., p. 35.
[24] Cf. Jacques DERRIDA, Marx & Sons, Frankfurt a.M. 2004, p. 63 : «O ‘insolúvel’ não foi para mim nunca o contrário à decisão, mas sim a condição de possibilidade e, claro, em todos os casos nos quais dita decisão não pode ser deduzida como o faria um computador.
[25] Por muito que HEIDEGGER negue a relação entre luz e Lichtung (o claro), o pensamento da Lichtung, da verdade do ser ou do evento permanece conotado com um vocabulário luminoso.
[26] Kostas AXELOS, Le jeu du monde, Paris 1969, p. 103.
[27] Gilles DELEUZE / Félix GUATTARI, Was ist Philosophie?, op.cit., p. 99.
[28] G.W.F. HEGEL, Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte, Werke Bd.12, Frankfurt a.M. 1989, p. 280.