Decon faz alicerçar as suas práticas e os seus registos num contínuo: convoca explicitamente as figuras de Mondrian e de Derrida, associando-as às biotecnologias. Trata-se de um gesto que me parece duplamente esclarecedor. Em primeiro lugar, esclarece (sinto-me tentado a escrever, «ilumina») uma espécie de relação profunda que podemos detectar entre o «novo plasticismo» de Mondrian, a «desconstrução» de Derrida, e as biotecnologias naquilo que estas têm certamente de mais desassossegante: as suas potencialidades de recomposição integral da natureza. Em segundo lugar, «Decon» revisita a fronteira arte/ciência, apelando à sua desmontagem (à sua «descontrução», dir-se-ia) através de uma explicitação «encantada» das biotecnologias, uma explicitação que não é apenas representacional, mas que está inscrita material e processualmente na instalação, afigurando-se-nos dotada de características que poderíamos designar de não-representacionais.

Mondrian promove em De Stijl uma forma de redução. A visão plástica «pura» de que se reclamava Mondrian não pretendia apenas investigar e decompor a natureza—numa abstracção de toda a forma e de toda a cor —, mas reivindicava, tal como em outro quadrante a contemporânea Bauhaus, uma nova sociedade fundada e regulada pela pureza perceptual das rectilíneas e das cores primárias claramente definidas (isto é, tecnicamente definidas). Isto transporta-nos para as estratégias reducionistas que preencheram o imaginário tecno-científico moderno, em que se destaca uma certa concepção de «informação» tomada como um processo em que o complexo se faz simples e manuseável, ideia essa que revela a transitividade entre a informática e a biologia molecular (ver, v.g., Gomart, 2007). Isto transporta-nos também para o modo como uma parte muito considerável desse imaginário assume a translação entre aquilo que sabemos e aquilo que podemos fazer, saber e poder, corpo e cidade.

Decon, por seu turno, mostra-nos como o sonho de Mondrian (o homem do atelier-laboratório) epitomiza o sonho moderno: decompor a natureza até ao osso, reconstituí-la integralmente, recompor a cidade, a polis, de acordo com os resultados da aventura. E mostra-o através de uma recontextualização do trabalho de Mondrian—a «arte da destruição» (Blotkamp, 2001)—que se faz através do concurso da «desconstrução» de Derrida que é, em grande medida, uma elaboração do conceito heideggeriano de Destruktion (ver, v.g., Cumming, 2001).
Apesar da força do conceito de «descontrução» de Derrida estar na impossibilidade em o definir, uma das acepções mais fortes de desconstrução está nesse movimento que torna visíveis as condições de artifício, de construção, de toda a imóvel evidência, de todo o fundamento, de tudo o que há de natural (como se a ordem do fundamento fosse a ordem do natural). Aliás, Derrida procede numa célebre formulação de desconstrução por um duplo processo de redução e reinscrição (1971: 41–42; 1972: 4–6). Se a leitura de um texto deve proceder por redução e reinscrição, tal movimento, como o caracterizei, tal experiência, a sermos mais precisos, ecoa de modo insuspeito os protocolos de leitura que podemos descobrir nas biotecnologias ou na impossibilidade (expressão de contornos assumidamente derridianos) que se lhes inscreve. É essa impossibilidade, em que o fundamento natural se instabiliza radicalmente, que nos surge como o território colonizado pelas biotecnologias. Elas procedem dentro daquilo a que Gilles Deleuze (1998 [1986]: 167–179) no seu comentário a Michel Foucault, designa como uma das forças-forma, a episteme do presente: o finito-ilimitado, onde os seres não possuem uma forma perfeita ou uma opacidade essencial, e onde uma infinidade de seres pode emergir das quatro bases de que se constitui uma molécula, o adn. Ou seja, e a apelarmos para uma das acepções de desconstrução, um mundo onde a redução ao finito do genoma cartografado nos lança no ilimitado das reinscrições do vivo. E de modo acutilante surgem à memória as palavras do vidente Rimbaud que Deleuze (1998: 179) sagazmente cita: L'homme de l avenir est chargé des animaux.

Reduzir e recompor ou reinscrever a natureza e com ela a polis: eis a utopia (eventualmente distópica) para onde se encaminharia Mondrian. Reduzir e reinscrever a natureza e com ela a pólis: eis a utopia (eventualmente distópica) para onde se encaminham porventura as biotecnologias. Estamos, no que diz respeito a estas, em pleno contexto de «biosocialidade», a usar uma expressão de Paul Rabinow (1996). Uma natureza conhecida e refeita pela técnica, tornar-se-á artificial, sendo a cultura eminentemente natural dadas as suas implicações evolutivas em sugeridos processos de tecno-selecção. E concomitantemente a descontrução da aporia natureza-cultura será perceptível através do concurso de tais processos tecno-selectivos. A pólis poderá ser assim também recomposta de acordo com um modelo novo a que Rabinow designa de «pós-disciplinar»: o risco já não poderá ser aí apreciado individualmente ou (melhor ainda) antropologicamente, mas antes avaliado e monitorizado epidemiologicamente. A avaliação ou monitorização será realizada através da «composição de ‘factores' impessoais que tornam o risco provável» (Rabinow, 1996: 100). A expressão de Rabinow é, a este título, muito sintomática: estaremos perante o uso sistemático de «epidemiological social-tracking methods» (id.: 101). Uma avaliação epidemiológica sustentada em formas de genetic screening que se tornou imediatamente elegível e apetecível após o mapeamento do genoma humano.
O trabalho de Marta de Menezes faz proliferar os seus significados neste contínuo que desdobra o modernismo estético e social de Mondrian, a desconstrução, enquanto processo de redução e reinscrição, e as biotecnologias que fazem ecoar inquietantemente o trabalho de redução e reinscrição do «livro» da natureza, essa figuração do irredutível e do inscrevível por excelência.
A operatividade da desconstrução pode ainda ser entendida num outro plano. «Decon» promove explícita e implicitamente um exercício desconstrutivo da aporia arte/ciência. Como é isto conseguido? Não apenas pelas continuidades que se desenham entre o projecto estético e social de Mondrian e as formas de recomposição do vivo que as biotecnologias promovem através do mediador fornecido pela desconstrução, mas também por uma reinscrição da aporia arte/ciência que a experiência da descontrução permite. A tópica laboratorial redefine-se. A oposição e hierarquia arte/ciência é tornada instável através da presença do artista em laboratório e sua reapropriação das técnicas laboratoriais. A «incisão» —a «différance» derridiana—entre arte e ciência é então reconhecível. Tal reapropriação é feita através de um movimento que transporta a dimensão não-representacional das técnicas laboratoriais para o interior do trabalho da artista. Se «Decon» é algo que está para algo, something that stands for something else, uma das suas dimensões mais reconhecidamente derridianas instala-se porém no modo como o não-representacional da tecno-ciência contemporânea é reinscrito na instalação e se sobrepõe à própria noção de representação: uma arte que vive e morre in situ: uma arte que só pode ser definida processualmente e que abdica, no limite, de toda a representação: um exercício de iconoclastia diferido no tempo.

Esta reapropriação da tecno-ciência e das suas qualidades não-representacionais é expressão também daquilo a que Alfred Gell (1999) consagra através da noção de «encantamento». A arte é re-encantada através de uma reinscrição laboratorial. Após esse processo histórico em que a arte dispensou a aura e se aproximou da técnica, um processo que, irónica e paradoxalmente, corresponderia a um novo encantamento, após o esgotamento da aventura moderna, a arte vem radicalizando essa aproximação à técnica, e aventura-se agora nos territórios do mirífico em que se instalam contemporaneamente as biotecnologias. Se quisermos, estamos perante um processo de deslocamento de fronteiras, de instabilização dos sentidos que tem raízes históricas significativas mas que, por aproximação às biotecnologias, adquire um insuspeitado fôlego: coopta o «poder» instrumental e simbólico do encantamento biotecnológico. A eficácia e o perigo deste deslocamento reside nas atribuições encantadas que se inscrevem nas biotecnologias: no confronto com um mundo apenas entrevisto em que a fluidificação dos «tipos naturais» se tornou a impossibilidade do presente e a sua transgressão.    

Coimbra, Janeiro de 2008





Bibliografia

blotkamp, Carel, 2001, Mondrian. The art of destruction, Londres, Reaktion Books.
cumming, Robert Denoon, 2001, Phenomenology and deconstruction. Breakdown in communication v. 3. Chicago, Chicago University Press.
deleuze, Gilles, 1998 [1986], Foucault, Lisboa, Vega (tr. José Carlos Rodrigues).
derrida, Jacques, 1981a (1971), Positions, Chicago, University of Chicago Press (tr. Alan Bass).
derrida, Jacques, 1981b (1972), Dissimination, Chicago, University of Chicago Press (tr. Barbara Johnson).
gell, Alfred, 1999 (1992), «The technology of enchantment and the enchantment of technology», in The art of anthropology. Essays and diagrams. Londres, Athlone Press, pp. 159–86.
gomart, Emilie, 2007, «Life at the end of the information age: parallels of science and art», in Gomart, Emilie (ed.), Genesis. Life at the end of the information age, Utrecht, Centraal Museum, pp. 8–21.
rabinow, Paul, 1996, «Artificiality and Enlightenment: from sociobiology to biosociality», in Essays on the anthropology of reason, Princeton, Princeton University Press, pp. 91–111.


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Professor no Departamento de Antropologia da Universidade de Coimbra e investigador do CRIA-CEAS. Desenvolve investigação sobre as relações entre arte e tecnociência, com especial referência para a bioarte.



 

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