1 – Um aparato para destilar intuições vagas

A imagem das aulas colegiais de «Ciências» é, normalmente, aquela do primeiro contacto com um laboratório de Química, com seus equipamentos e suas «vidrarias» de nomes curiosos: béqueres, balões volumétricos, retortas, condensadores e os pomposos (e até então impronunciáveis) erlenmeyers. Esta imagem é recobrada quase que inevitavelmente, mas de forma completamente diferente, quando se pensa sobre a instalação Apparatus for the Distillation of Vague Intuitions (1994–1999), da artista estadunidense Eve Andrée Laramée.1

Tendo como inspiração visual gravuras da – e sobre a – Alquimia do século xvi (antes, portanto, do desenvolvimento da Química científica do século xvii), Laramée distribui sobre uma mesa de laboratório suspensa inúmeros frascos, recipientes em vidro-soprados (artesanais, e muitos com formatos «inexatos», inesperados e explicitamente «disfuncionais») e muitos outros aparatos científicos (ou nem tanto). Os frascos e recipientes, interligados por tubos dos mais variados formatos, contêm diferentes soluções e substâncias devidamente rotuladas. Flores envolvidas em fios de cobre assumem o papel de fonte energética para o «aparato». O resultado é, no mínimo, uma escultura complexa e exuberante.

Olhando mais atentamente os rótulos que aparentemente identificam as diferentes substâncias trabalhadas pelo «aparato» nota-se que eles evocam dimensões normalmente recalcadas (mas certamente presentes) da Ciência. Alguns frascos, por exemplo, são identificados como «Intuição», «Devoção», «Desilusão», Arrepio», «Intenção» e «Essência de uma coisa que espera tornar-se ela mesma», ressaltando a importância da subjetividade e do desejo no fazer científico. Outros, como «Falácia», «Asneira», «Aberração», «Juízo Falso» e «Erro», chamam a atenção para o papel das disfunções na produção de conhecimento científico. Traços típicos da Alquimia, como a inexactidão, a antropometria e o hermetismo, são evocados em frascos identificados como «Não-Especificado», «Acaso» e »Salto no Escuro», na indicação de medidas como o «Bocado» e o «Punhado» (no caso, tais medidas são as do corpo da própria artista) e na referência a um certo «Processo Secreto de Evaporação». Por fim, chamaríamos a atenção para o rótulo «Um Breve Episódio de Clareza», que parece querer evidenciar a natureza contingente e passageira das certezas científicas que acabam recalcando todas as incertezas e equívocos que as envolvem, e o rótulo «Princípios Explanatórios Desnecessários», que evoca a lógica retroativa dos axiomas científicos.

A instalação Apparatus assume configurações diversas e singulares em cada exibição. Neste sentido, há uma quantidade enorme de recombinações dos tubos, béqueres, plantas e demais elementos que a compõem em cada lugar onde ela é exposta. Mas, além disso, há recombinações no próprio relacionamento com a obra: laboratório de ciências do colégio, visão da Ciência criada através dos mass media ao longo dos anos, gravuras alquímicas do século xvi, convivem e relacionam-se intensamente com a tecnociência actual (mesmo sabendo que a aparência de um laboratório hoje seria bem diferente). O processo de composição da obra, portanto, não obedece a um plano transcendente pré-estipulado que supostamente reproduziria, em cada exposição, o mesmo aparato. Tudo se passa como se a intuição da própria artista na composição do aparato fosse um componente imprescindível de seu próprio funcionamento: é preciso intuição para destilar intuições.

Falando sobre o Apparatus, a artista já adianta algumas das questões que serão aqui abordadas:

«Como seres ‘racionais’ do fim do século xx, tendemos a acreditar que a ciência é o método através do qual verdades prováveis, testáveis e objetivas podem ser conhecidas. Através da observação científica, os mistérios da vida podem ser decodificados; através do conhecimento, o domínio da natureza deve ser alcançado. Neste sentido, a natureza se torna Natureza quando a assimilamos em nosso sistema de crenças: nós a descobrimos, nomeamos, medimos, classificamos, controlamos e alteramos. Assim, quando ‘possuímos’ a natureza, nomeando-a, nós atribuímos-lhe sentido e valor. No Ocidente, tendemos a relegar a experiência subjetiva para a arte e a ‘verdade’ para a ciência, mas ambas são processos de descoberta através dos quais indivíduos constroem sentido e conhecimento. Conhecer os mecanismos da Natureza não é conhecer o que ela realmente é, e sim o que nós queremos saber dela, ou melhor, o que os financiadores das pesquisas científicas desejam saber dela. O Aparato para a Destilação de Intuições Vagas coloca em primeiro plano o irracional e o incerto como uma estratégia para borrar as fronteiras entre os diferentes modos de cognição e consciência».2

Os processos de legitimação da verdade científica, a decodificação dos «mistérios da vida» com vistas ao «domínio da natureza», a re-apropriação desta Natureza em sistemas de crença através da sua resignificação, a oposição entre Arte e Ciência através da oposição entre sujeito (subjetividade) e objeto (objetividade) e a relação entre natureza, conhecimento, desejo e capital são temas explicitamente problematizados por Laramée no Apparatus. Mas exatamente como este «aparato» pode «borrar as fronteiras entre os diferentes modos de cognição e consciência» atribuídos à Arte e à Ciência»? Como consegue ele efectivamente problematizar e questionar a objetividade atribuída ao conhecimento científico, sem com isso se prender na suposta subjetividade atribuída ao conhecimento artístico?

2 – Das tendências virtuais aos factos actuais

Como vimos, o Apparatus tem como inspiração visual gravuras alquímicas do século xvi. Trata-se de um recorte histórico significativo, visto que foi justamente ao longo daquele século que a Química científica foi gestada, num processo que culminaria com a transição, na passagem para o século xvii, da tradição aristotélica do hilemorfismo dominante na Alquimia para o atomismo epicuriano revitalizado pelos primeiros químicos3. Mas seria excessivamente simplificador reduzir o efeito deste referencial à operação, pela obra, de um deslocamento espaço-temporal para a Europa de entre a Idade Média e a idade moderna, como se o Apparatus representasse uma tentativa de resgatar valores alquimistas perdidos com a passagem para a Química científica. Parece-nos, antes, que Laramée está mais interessada em revelar dimensões desconhecidas do presente do que dimensões já conhecidas do passado. O Apparatus não como imagem nostálgica de uma época pré-científica e de conhecimentos «meramente» subjetivos mas como operação capaz de revelar uma dimensão subjetiva da própria Ciência, o pré-científico que não se encontra antes da Ciência mas sim ao seu redor: seu limite imanente.

O ponto levantado pela obra de Laramée parece ser a forma como justamente aquilo que a Química desejou deixar para trás como seu «passado alquímico» (i.e., a fluidez, a inexatidão e o hermetismo de seus códigos) permanece presente na prática científica actual. Nenhum código exaure aquilo que ele codifica. Codificar é sempre selecionar, e o que fica de fora em cada caso é sempre uma reserva de liberdade e de indeterminação. Mas se por um lado o código não coincide com o codificado, por outro é apenas por seu intermédio que este pode entrar em uma relação. Codificar é criar, tornar actual algo que sem isso permaneceria virtual. A instalação de Laramée coloca em questão justamente a diferença entre as funções «criadora» e «reprodutora» dos códigos, entre explorar as virtualidades produzidas pela codificação a partir de seu inevitável descompasso com o codificado e tentar reduzir este descompasso ao mínimo.

Encontramos na obra de Laramée uma tentativa bem sucedida de transformar a indeterminação dos códigos alquímicos, de «origem [...] desonrosa e [...] comprometedora»4 da Química em limite contemporâneo e recalcado da Ciência – de passado conhecido e actual em presente desconhecido e virtual.

3 – Código e reprodução

O que é um código? Em diferentes domínios utiliza-se a noção de «código» como um termo genérico para aludir ao conjunto de relações ou conexões formais, regras, convenções que definem uma determinada composição. Assim, «código» pode remeter a formas de organização sociais, leis ou normas jurídicas que regulam relações entre «pessoas» (mais ou menos formalizadas em um «código de conduta», «código de ética», ou nos códigos civil/penal/comercial do direito ocidental moderno). A noção de código pode também se referir a regras de combinação e desenvolvimento (de obras musicais, por exemplo) ou a um repertório de símbolos. No campo da informática, fala-se em código para aludir às instruções escritas em uma linguagem de programação (código fonte) ou a comandos que podem ser «entendidos» diretamente pelo computador (código objeto), isto é, cadeias de dígitos binários que representam caracteres, elementos de imagem ou de sinal. E no sentido actualmente prevalecente na biologia, o «código genético» é entendido como o conjunto de seqüências de três nucleotídeos de adn, sendo a codificação um mecanismo de «transcrição» mediante o qual a informação genética contida no adn dos cromossomos se transcreve no ácido ribonucléico e nas proteínas.

Mas, será que essa noção, aparentemente comum em diferentes disciplinas e áreas de conhecimento, apresenta ao menos alguns traços característicos que lhe outorgariam um valor significativo especial? No rastro da teoria da comunicação e da cibernética, difundiu-se a noção de código como sistema de símbolos, destinado a representar e transmitir uma mensagem entre uma fonte e um receptor. Na informática, estas diferentes concepções têm orientado o desenvolvimento de modelos e técnicas de aprendizado-máquina, exploração de padrões, redes neuronais e algoritmos evolutivos, entre outras técnicas no campo dos «sistemas inteligentes». Cabe destacar que esses desenvolvimentos têm se tornado decisivos no campo da tecnociência, convertendo-se, em muitos casos, na condição de possibilidade da própria produção de conhecimento.5

No entanto, em nossa perspectiva, o «código» não poderia ser desvinculado dos «meios» aos quais ele se associa. Como já sublinhamos, nenhum código esgota aquilo que codifica, justamente porque todo código depende das condições de enunciação. Diferentemente das concepções instrumentais que reduzem a informação à mera transmissão de sinais ou aos seus suportes ou veículos, podemos pensar que há um processo de «in-formação», de «tomada de forma», indissociável de uma certa margem de indeterminação e contingência, em condições localizadas e singulares.6 O sinal de informação não é só uma mensagem transmitida, ele adquire sentido para alguém apenas em relações determinadas, num campo de forças dado. Os problemas de decodificação, tradução e interpretação dos diferentes códigos são, portanto, problemas de legitimação de determinadas relações e fixação de certos estados em detrimento de outros.

Ora, era justamente este o tipo de problema com o qual se deparavam os químicos pioneiros dos séculos xvi e xvii. Como fazer da codificação «caótica», «mística» e «subjetiva» herdada da Alquimia uma codificação «organizada», «racional» e «objetiva». Como, enfim, decodificar a própria matéria (encontrar seu código objetivo)ao invés de «se enganar» pelos códigos subjetivos que os homens lhe atribuíam?

A aliança entre Ciência e Técnica, iniciada no Renascimento, consolidada no Iluminismo e coroada com a Revolução Industrial, reflete justamente o deslocamento da ênfase alquimista na compreensão hermenêutica dos textos e dos códigos referentes às transformações da natureza para a ênfase moderna na reprodução técnica destas próprias transformações. Não mais se perguntava «o que» a natureza quer dizer, mas sim «como ela funciona». De manipulação explicitamente semiótico-material da natureza, passamos aqui para uma tentativa crescente de sua manipulação técnica. Essa aliança entre a Ciência e a Técnica constituiu, assim, o agenciamento capaz de tornar tecnicamente manipuláveis as forças da natureza e, portanto, de modelar um certo futuro para nova ordem social urbana e capitalista que se esboçava. Tecnociência e Capital andaram juntos desde o início, aquela fomentando o desenvolvimento dos meios de produção, este fomentando novas pesquisas e o desenvolvimento de novas técnicas.

Da exploração da margem de indeterminação dos códigos, passamos aqui para a constante re-elaboração de códigos cada vez mais deterministas, cada vez mais coincidentes com aquilo que codificam. Mas como operar esta transição? Como fazer coincidir o código e o codificado? Na medida em que cada meio tem seu código, que há multiplicidade de códigos e processos de decodificação, há necessariamente transcodificação entre os meios. Esta transcodificação tem caráter metaestável, pois interfere nos próprios códigos ao transferi-los de um meio ao outro. Quais seriam então as implicações da substituição desta dinâmica de transcodificação por um metacódigo, uma meta-linguagem, que permitisse traduzir os diferentes códigos e fomentar uma «interoperabilidade», a «comunicabilidade» nos diversos meios?

No nível da expressão, este achatamento do código equivaleria, por exemplo, a formular uma linguagem ou uma simbologia única que permitisse traduzir todos os enunciados e tipos de expressões de diferentes meios. É o que acontece com os chamados meta-dados na informática, isto é, dados sobre os dados, informação sobre a informação, colecções sobre colecções, directórios de bancos de dados.

Podemos pensar, assim, em um agenciamento concreto, caracterizado pelo apagamento das fronteiras, a reconfiguração de todos os parâmetros e descodificação geral dos fluxos materiais, semióticos e sociais. Nesse sentido, não se trata mais apenas de códigos e descodificação, mas sim de uma axiomática própria do sistema tecnocientífico, crescentemente mundializado, dos projetos de pesquisa dominados pelo imperativo da concorrência e inovação permanente, avaliados em medida crescente em função de padrões de produtividade e retorno financeiro. Diferentemente de um código, que sempre envolve outros códigos e meios variados, uma axiomática se pretende universal, bloqueia todos os fluxos, os re-fisicaliza, re-semiotiza. Com efeito, «não basta dizer que a axiomática não dá conta da invenção e da criação: há nela uma vontade deliberada de deter, de fixar, de se colocar no lugar do diagrama, instalando-se num nível de abstração cristalizada, já grande demais para o concreto, pequena demais para o real».7

4 – Código e representação

A operação de achatamento dos códigos alquímicos realizada na transição da Alquimia para a Química poderia ser comparada com a possível pretensão de codificar, num único sistema, os signos no «aparato» de Laramée vinculados à Química moderna, à Alquimia, à Arte e à Ciência. Mas isto seria forçar de volta aos bastidores justamente aquilo que o Apparatus é capaz de denunciar em cena aberta. Enquanto os discursos e práticas normalizadoras das disciplinas científicas modernas separam o «sujeito» e o «mundo», atribuem um «interior» e um «exterior» (um «objeto» e um «sujeito») e delimitam os domínios da «natureza» e da «cultura», da «ciência» e da «arte», o Apparatus parece remeter a um campo de saber/poder propriamente pós-disciplinar, situando-nos numa zona de vizinhança na qual se transformam as demarcações tradicionais entre os domínios da Arte, da Ciência e da Tecnologia.

Mediante essa operação, Laramée não faz coisa muito diversa daquilo que se está fazendo em renomados laboratórios e centros de pesquisa e desenvolvimento: ela faz conexões inusitadas entre materiais heterogêneos, opera por reprogramação e recombinação de conteúdos e de formas de expressão, produzindo uma trama inédita de corpos (de fluídos, substancias metálicas, provetas, flores) e um inusitado encadeamento de símbolos (emprestados da Alquimia, da Ciência moderna, das Artes Plásticas, da Poesia etc.). Mas como opera Laramée, mais especificamente, esta recombinação, esta modalidade de tratamento das formas?

Ao falar em formas, podemos distinguir, por um lado, conteúdos, «coisas». Componentes mais ou menos voláteis, matérias mais ou menos formadas (soluções, recipientes, provetas, condensadores, tubos, flores), uma mistura de corpos, naturais e artificiais, fluídos, sólidos, gasosos. Por outro lado, chamam a atenção as «palavras» e inscrições nos rótulos do Apparatus, isto é, formas de expressão. Tendemos a pressupor que essas expressões deveriam se referir aos conteúdos, que podemos ler nelas «palavras» que designam o que a «coisa» é. Mas, ao ler alguns destes rótulos («Intuição», «Devoção», «Tentativa», «Erro»), torna-se evidente que as inscrições não se referem diretamente ao conteúdo dos recipientes. O que parece estar em questão aqui é a relação entre «figurar» e «dizer», «olhar» e «ler», «mostrar» e «nomear». Com seus rótulos e expressões inusitadas, o Apparatus dissolve toda referência, toda designação.

Se a disposição dos materiais na instalação-laboratório parece evocar uma metáfora (a semelhança entre o fluído e as «intuições vagas» a serem «destiladas»), pode-se pensar também que essa proximidade produz uma ruptura. Com efeito, Laramée distribui inscrições sobre os corpos, mas dando «nomes» e enunciando «coisas» que não necessariamente têm corporeidade física, usando expressões que dificilmente poderiam ser adjudicadas a conteúdos tangíveis, visíveis ou audíveis. Em contraposição, no âmbito de um laboratório acadêmico ou industrial, as nomenclaturas e classificações supostamente teriam a ver com atributos ou transformações adjudicadas a corpos, com suas substâncias e formas perceptíveis (mediante os sentidos humanos, e/ou, como na maioria dos laboratórios tecnocientíficos, mediante utilização de técnicas e dispositivos artificiais).

Assim, enquanto na dimensão das «coisas» o Apparatus aplica um tratamento recombinante aos materiais e sistemas físicos análogo ao das práticas científicas contemporâneas, a articulação realizada entre estes compostos materiais e os enunciados atribuídos a eles provoca uma ruptura com tais práticas. Como em Foucault8, a obra de Laramée parece mostrar que a relação entre as «palavras» e as «coisas» não se reduz a relações de causalidade ou correspondência recíproca, já que não podemos afirmar que as expressões – termos e fórmulas científicas ou expressões artísticas – têm uma referência por si mesmas. Expressões estão sempre investidas (ou não) de uma função referencial por quem fala, por quem escreve, e «quem fala» nunca é um sujeito dado, mas sempre uma «formação social», uma «cultura», uma multiplicidade.

Mediante sua instalação-laboratório, Laramée não somente conecta conteúdos materiais (sustâncias líquidas, elementos metálicos, formas, recipientes e outros materiais), mas estabelece conexões entre signos, representações e idéias mais ou menos «voláteis», entre corpos de enunciados mais ou menos formalizados (a Alquimia e a Química moderna; a Ciência e a Arte). Os rótulos, mais próximos da oficina de Alquimia do que do laboratório de Química, nomeiam conteúdos não-físicos e expressam estados e transformações dificilmente atribuíveis a corpos visíveis, tangíveis ou audíveis. Expressam também, por vezes, enunciados referidos a outros enunciados, à sua verdade ou falsidade, conveniência ou inconveniência, à sua beleza ou feiúra, articulando assim poderes e saberes, discursos «de verdade».

Mas a questão da verdade e do erro é inconcebível fora da enunciação. Assim, não é o mesmo enunciar uma «Falácia» ou «Tentativa» em uma aula de ciências, em um laboratório de pesquisa, em uma empresa de biotecnologia ou em um centro industrial de fabricação de petróleo. A frase «Princípios Explanatórios Desnecessários» também não é nada fora das circunstâncias em que é enunciada (uma defesa de tese, um paper num jornal científico etc.). E não se trata apenas de formas verbais: há todo um regime de signos que carregam consigo a situação particular de enunciação. A expressão constitui, sobretudo, signos que entram em semióticas particulares, em agenciamentos coletivos variáveis.9 A força do Apparatus vem justamente de sua capacidade de embaralhar, transformar estes agenciamentos, colocando em primeiro plano o facto de que um enunciado ou signo não é verdadeiro nem falso, apropriado ou não, em si mesmo: ele o é unicamente no curso de uma enunciação particular, enunciação esta que, longe de remeter a um sujeito de conhecimento ou a um criador (à sua inteligência ou criatividade), tem a ver com as circunstâncias que, justamente, tornam este «sujeito» o que ele é.

A particularidade do tratamento artístico dos códigos, portanto, seria a possibilidade não já de traduzir mas de transformar, de operar transcodificações e «transduções» criativas. Com efeito, o emprego artístico dos códigos não tem como objetivo a sua descodificação. Não se trata de tentar achatar o código sobre o codificado e assim chegar cada vez mais perto do momento em que eles coincidiriam em um metacódigo e a máquina do mundo finalmente seja acessível ao Deus-maquinista.10 Os artistas (ou pelo menos aqueles que, como Laramée, buscam trabalhar com as potências e as virtualidades de nosso mundo) exploram a margem de indeterminação dos códigos, e não a suas possibilidades de determinação mecânica.

Mas o curioso é que mesmo cientistas, quando criam, se aproximam deste outro tipo de tratamento do real. Nestas práticas criadoras, a finitude material sensível do mundo serve menos para um fechamento sobre o finito, o delimitado e o coordenável, e mais como suporte para um descentramento em relação às referências estabelecidas e as coordenadas pré-formadas. Assim, a criação nunca se dá sobre o dado, sobre o actual, mas é sempre resultado de uma abertura do actual para o virtual, de uma exploração da margem de indeterminação dos códigos, símbolos, e instrumentos. Descobrir o não-dado a partir do próprio dado. Descobrir o não-científico da própria Ciência. Isto é produção de conhecimento, mas de um conhecimento não-apropriável, que não reduz o desconhecido ao conhecido mas coloca este em contato produtivo com aquele. Evidentemente, em Ciência, este processo é recalcado e toda criação é imediatamente transformada em descoberta, como se as virtualidades abertas já estivessem desde o início nos objetos actuais, como se os códigos fossem apenas uma maneira particular de falar sobre algo que existiria independentemente deles.

5 – Arte, ciência e mercado

A Ciência representaria hoje, no senso comum, o caminho confiável na busca incessante pelo conhecimento último (codificável), não-hierárquico (buscando diferenças de grau de uma quantidade homogênea) e não-propagandístico («objetivo»). E a imagem do «aparato» científico ainda tem forte poder nesse sentido. Para Laramée, porém, nem Arte nem Ciência devem servir como tiranos de alguma verdade. Em realidade, ela quer mostrar a característica de infinita recombinação contida nas experimentações e nos processos, comuns à Arte e à Ciência.

Tudo indica que a destilação operada pelo aparato de Laramée pode ser comparada à busca do filósofo Henri Bergson por fazer da intuição um método de produção de conhecimento. Para Bergson, a «intuição» se distingue da «inteligência» na medida em que enquanto aquela descobre diferenças de natureza na realidade, esta descobre nela apenas diferenças de grau.11 O Apparatus, com sua complexidade formal e sua expressividade polissêmica, opera uma destilação da intuição na medida em que nos transporta gradualmente da «inteligência» normalmente atribuída a contextos laboratoriais para a «intuição» que se encontra como que «ao redor» de cada uma de suas «descobertas». Não se trata de encarar o processo como se a intuição fosse alguma das substâncias físicas encontrada em algum dos frascos da instalação. Tampouco se trata de encarar a intuição como mera metáfora totalmente desvinculada daquelas substâncias. Como já vimos, não existe nem correspondência e nem dissociação entre as palavras e as coisas, mas sim agenciamentos coletivos de enunciação que as colocam em relações variáveis e sempre contingentes. O papel da intuição como método seria justamente encontrar o melhor contexto para o agenciamento, coisa que Laramée efetivamente faz em cada uma das montagens do Apparatus.

Os perigos de se recalcar a dimensão subjetiva da Ciência já são bastante conhecidos. Tratando a natureza como mecanismo, a Ciência foi efetivamente capaz de controlá-la tecnicamente. As últimas conseqüências deste processo podem ser vistas naquilo que Donna Haraway chamou de «informática da dominação», o modus operandi comum das ciências da comunicação e biologias modernas: «a tradução do mundo em termos de um problema de codificação»12, de forma que através de uma linguagem comum (o metacódigo) a tecnociência venceria toda resistência ao controle instrumental e submeteria a heterogeneidade à desmontagem, à remontagem, ao investimento e à troca. Porém, visto que este controle se apoiou em esforços coletivos de eliminação da margem de indeterminação dos códigos, ele necessariamente deixou fora de seu universo tudo aquilo que não era codificável.

Já vimos como a transição do código para a axiomática (o metacódigo) foi ao mesmo tempo causa e conseqüência da busca pela reprodutibilidade técnica e apropriável dos processos naturais no contexto de um capitalismo emergente. Mas, como bem mostrou Hermínio Martins13, já vivemos há algum tempo a lenta agonia do «deus dos artefatos», pelo menos desde que as catástrofes ambientais, políticas e militares evidenciaram que o homem não é mais capaz nem mesmo de controlar suas próprias invenções.

Ora, se a tecnociência aliada ao capital financeiro global transforma a vida em código, informação digital e genética, então a Arte poderia considerar esse processo, acelerar o motor ao máximo até fazer «explodir» esse código para poder construir algo novo, trazer novas recombinações que não as propostas por tal aliança. A destilação «artística» de intuições operada pelo «aparato» de Laramée não tem por objetivo torná-las menos intuitivas. Pelo contrário, trata-se de transformar a intuição, de uma mera opinião, em um verdadeiro instrumento de percepção e conhecimento capaz de nos deslocar das diferenças de grau em que nos aprisiona a tecnociência para as diferenças de natureza contidas virtualmente no real, isto é, para a «diferença que faz uma diferença», nas palavras de Bateson. Justamente, os desafios políticos, sociais e econômicos (relações de poder) no âmbito supostamente asséptico e neutro da tecnociência, parecem estar cada vez mais ligados ao acesso direto ao código computacional e genético (ainda restrito aos especialistas como os cientistas da computação, biólogos e hackers), à codificação, à compreensão de sua mensagem e à capacidade em utilizá-la de forma criadora (i.e., explorar sua margem de indeterminação).

Curiosamente, o capitalismo avançado, aliado à tecnociência, está cada vez mais preocupado em «capturar» e cooptar o elemento mais inovador do mundo da Arte contemporânea. Procura-se incessantemente mapear as virtualidades desse universo, ditando de antemão quem é ou não artista, quais são e quais não são as obras (ou projetos) relevantes, antecipando-se, fazendo uma espécie de prospecção cultural. A alta finança tem demonstrado um crescente investimento na Arte contemporânea, maiormente na que mescla Arte-Ciência-Tecnologia, mesmo que ela paradoxalmente não lhe proporcione uma obra-produto, um objeto comercializável. Não há paradoxo. Provavelmente, a alta finança percebeu há mais tempo o valor substancial contido na dimensão virtual da realidade.14

Mas se a ênfase do capitalismo financeiro no virtual responde a uma necessidade de conhecimento das tendências de um processo que já não é controlável, esta ênfase só pode ser realizada no capitalismo através de sua desvirtualização (para não dizer desvirtuação). Em outras palavras, o capitalismo só se apropria do futuro transformando-o em um «mercado de futuros».15 Assim, o capital pode suportar a arte, inclusive promovendo-a, desde que consiga estabelecer axiomas para ela. Laramée não escapa deste processo, visto que ela também sofre com as tentativas de apropriação de sua obra com fins comerciais e publicitários (o próprio Apparatus acabou se tornando a sua «marca registrada», como um código que se adere à artista limitando assim sua margem de liberdade e mutação), mesmo quando isso compromete sua própria criação. No entanto, é justamente trabalhando na margem de indeterminação deste processo de apropriação, brincando com os códigos que lhe são impostos, pesquisando, destilando intuições, que a artista consegue simultaneamente trazer o virtual à tona e mantê-lo como virtual (não actualizá-lo, não torná-lo apropriável). Em suas próprias palavras:

«Para mim, minha arte é a minha pesquisa. Se por um lado meu trabalho tem seu lugar no mundo da arte e no mercado de arte, por outro o que realmente me impulsiona é a pesquisa».16

O que move Laramée é a pesquisa, uma pesquisa-destilação, intuitiva, rizomática. Talvez aqui esteja um ponto interessante de diferenciação entre a ‘pesquisa-destilação’ tecnocientífica e a artística. Enquanto a primeira, unida ao capital global, busca decodificar tudo o que for possível, armazenar esses dados para futuras recombinações patenteáveis, a segunda parece querer «explodir» esses códigos, recombiná-los esteticamente e abandoná-los após axiomatizados, partindo para novas formulações a partir de outros códigos, num fluxo e refluxo constantes de novos devires. Principalmente, enquanto a primeira axiomatiza os fluxos decodificados pelo princípio da identidade – atribuição forçada (pois sempre incompleta) das palavras às coisas –, a segunda explora as virtualidades indeterminadas dos próprios códigos em fluxo através da abertura à alteridade – recusa a fechar o virtual dentro do campo do possível, do conhecido, e sempre atento à impossibilidade do possível, ao desconhecido do conhecimento. Aliás, a própria descrição do processo criativo pela artista ilustra bem esta abertura intuitiva à multiplicidade virtual de nossa realidade:

«Tudo começa com uma intuição vaga, ou às vezes um arrebatamento extático. Um certo momentum começa a se configurar e eu percebo que me encontro envolvida em algo que ainda não sou capaz de compreender. Então eu começo a prestar especial atenção (mais «aguda») às coisas: procurando padrões, similaridades, ressonâncias. Dedico mais tempo à leitura, à pesquisa, à audição, à conversa e às atividades em geral, ainda sem saber exatamente aonde tudo isso vai levar. Começam então a se delinear linhas de fuga, jorrando notas que fazem emergir algo parecido com uma sutil melodia (como escutar alguém assobiando no escuro sem saber a origem do som). Chega então o momento de arregimentar informação, de coletar dados, que começam a fluir de todas as direções em abundância intoxicante. É aí que entram os outros. Esta é a rede, o cérebro coletivo da Arte, quando o seu trabalho começa a construir, com o trabalho dos outros, uma arquitetura, uma estrutura que se desenvolve do indiferenciado. Então, subitamente, uma mudança de fase ocorre e todos os padrões caem em seus lugares numa configuração brilhante e cristalina. Tenho então o início de uma instalação».17

Essa densidade de conexões de elementos disparatados que se cristalizam em uma «obra-in-formação», assemelha-se muito ao que Deleuze chamava de conexões entre áreas aparentemente incomensuráveis de pensamento e vida, isto é, um «pensamento rizomático».18 O rizoma, diferente da árvore ou raiz, privilegia os princípios de conexão e heterogeneidade, nos quais «cadeias semióticas de toda natureza são [...] conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, económicas, etc., colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas».19

A cientificização da produção capitalista (e o direcionamento de investimentos para este fim) foi a busca pelo controle da virtualidade e sua actualização axiomatizada: produção de mais valia pela concorrência tecnológica. Mas a conseqüência deste uso instrumental da tecnologia vem sendo o próprio «colapso» do sistema. O crescente interesse por artistas que trabalham com alta tecnologia ou com questões relacionadas à tecnociência se deve justamente à percepção dos limites do próprio sistema: desejamos ver onde isso tudo vai dar, decifrar as tendências, enfim, «destilar» esta «vaga intuição». O interesse não reside na obra, na sua codificação específica, mas sim naquilo que ela faz passar, naquilo que ela captura, no devir que ela anuncia. Se recombinar é o mote actual, então, há que se subverter a actual recombinação entre Arte, Ciência e Mercado.

Emerson Freirefreire@ige.unicamp.br / Departamento de Política Científica e Tecnológica – ig/unicamp; Pedro P. Ferreira e Cecilia Diaz-Isenrath / Departamento de Sociologia – ifch/unicamp [Integrantes do grupo de pesquisa cteme (Conhecimento, Tecnologia e Mercado), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp.]

Agradecemos a contribuição de Lymert Garcia dos Santos ao presente texto, sua leitura, sugestões e críticas.

NOTAS

1 Figura 1 disponível em ; Figura 2 retirada de E. A. Laramée, A Permutational Unfolding (mit List Visual Arts Center, Cambridge, 1999), p.10; Figura 3 disponível em (consulta feita em 20.01.2004).

2 E. A. Laramée, «A Permutational Unfolding: Art and the Culture of Science», palestra apresentada para a Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 1999, disponível em (consulta feita em 18.12.2003).

3 Sobre este processo, ver: H. W. Salzberg, From Caveman to Chemist: Circumstances and Achievements(American Chemical Society, Washington, 1991); J.R. Partington, «The Concepts of Substance and Chemical Element», in Chymia (University of Pennsylvania Press, Philadelphia, 1948), vol.1, pp.109-21; R. Hooykaas, «The Experimental Origin of Chemical Atomic and Molecular Theory before Boyle», in Chymia (University of Pennsylvania Press, Philadelphia,1949), vol.2, pp.65-80.

4 P. Laszo, O que é a Alquimia? (Terramar, Lisboa, 1997), p.9.

5 Sobre as conseqüências sociológicas desta informatização tecnocientífica do mundo, cf. Laymert Garcia dos Santos, «A informação após a virada cibernética», in Revolução Tecnológica, Internet e Socialismo (Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2003).

6 Para as concepções de «in-formação» em relação ao processo de tomada de forma e «individuação» nos níveis físico, vital e psicosocial, cf. Gilbert Simondon, «The Genesis of the Individual», in J. Crary, S. Kwinter (eds.), Incorporations (Zone, n. 6, Nova Iorque, 1992).

7 G. Deleuze, F. Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (Ed.34, Rio de Janeiro, 1995), vol.2, p.103.

8 M. Foucault, As palavras e as coisas: Uma arqueologia das ciências humanas (Martins Fontes, São Paulo, 1981).

9 Aqui, utilizamos a distinção entre forma da expressão e forma do conteúdo de L. Hjelmslev e a definição do signo de C.S. Peirce, no sentido de Deleuze e Guattari, op.cit..

10 P. Rossi, Os Filósofos e as Máquinas: 1400-1700 (Companhia das Letras, São Paulo, 1989).

11 Seguimos aqui a leitura de Gilles Deleuze em Bergsonismo (Ed.34, São Paulo, 1999).

12 D. Haraway, «Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século xx», in T. T. da Silva (org.), Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano(Autêntica, Belo Horizonte, 2000), p. 70.

13 H. Martins, «O deus dos artefatos: sua vida, sua morte», in H. Reis de Araújo (org.), Tecnociência e Cultura: ensaios sobre o tempo presente (Estação Liberdade, São Paulo, 1998), pp.149-68.

14 Sobre o investimento da alta finança sobre a arte contemporânea, cf. Laymert Garcia dos Santos, «Lo Nuevo, el Asombro y el Arte», in Zehar, n. 51, Revista de Arteleku, Donostia, 2003, pp.16-7.

15 É curioso que, na tentativa de colonizar um futuro já desobediente às leis causais do universo-máquina, criam-se mercados futuros dos mais variados tipos, e inusitados (apesar de perfeitamente racionais), como os de «climas» (cf. Luiz Cintra, Operando o Aquecimento Global: o projeto do Banco Mundial e do Mercado Financeiro Internacional para o mercado derivativo de clima, pesquisa em andamento) e os de «terrorismo» (proposto em julho de 2003 pelo Pentágono).

16 Honigman, op cit..

17 E. A. Laramée, op. cit..

18 Observado por J. Crary, «Cyberama: Adjacency, Assemblage, & Display», in E. A. Laramée, A Permutational Unfolding (mit List Visual Arts Center, Cambridge, 1999), pp.27-35.

19 G. Deleuze, F. Guattari, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia (Ed.34, Rio de Janeiro, 1995), vol.1, p.15.


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