Silva Carvalho (não confundir com Armando Silva Carvalho) sendo de longe o mais poderoso, conceptualmente inovador e desafiante escritor ou escrevinhador, como gosta de intitular-se, do Portugal contemporâneo, tem merecido uma atenção e recepção nulas e mesmo o desprezo por parte dos seus contemporâneos. Para o nosso meio literário, Silva Carvalho pura e simplesmente não existe. Pelo que a sua inexistência talvez seja consequência de os seus livros, tão exigentes, serem o reverso do que por cá se faz há muitas dezenas de anos. Talvez o vejam como uma espécie de ovni. Trata-se de uma escrita anti-poética ou de uma outra poética em que o documental se precipita no conceptual. Em suma, um híbrido. A porética contra a poética. A literatura contra a literatura.—entrevista por João Urbano
JOÃO URBANO – Emigras para França um ano depois do Maio de 68. Porque o fizeste?
SILVA CARVALHO – Porque não estava interessado em fazer a guerra colonial e aproveitei a oportunidade de um amigo meu que tinha desertado e em vez de ir sozinho fui com ele. Fomos a salto. Fomos até Chaves, atravessámos durante a noite a fronteira e no outro dia estávamos em Orense, que tem ligação directa por caminho de ferro para Paris. E fomos de comboio. Só tivemos problemas na fronteira francesa. Não tínhamos dormido aquela noite, e o polícia francês disse ao meu amigo para avançar e ele não ouviu ou ficou completamente de boca aberta e a reacção do polícia foi dar-lhe duas bofetadas e eu avancei imediatamente para tentar protegê-lo e então eles pegaram em nós e, diante de toda a gente (estavam a passar centenas de portugueses sem documentos) disseram: «Estes dois não têm documentos e voltam para trás». E realmente voltámos para trás e estávamos a ver que não conseguíamos entrar em França. Foi depois um polícia espanhola que nos aconselhou a tentarmos pela auto-estrada. Saímos do comboio e lá fomos a pé pela auto-estrada e conseguimos convencer as autoridades francesas que íamos trabalhar, que já tínhamos emprego no Metro de Paris, etc., e foi a única maneira de entrarmos em França. Foi um bocado problemático. Uma das coisas que nos disseram logo foi que não precisavam de intelectuais em França. Ao olharem para nós repararam que não éramos bem trabalhadores. E o facto de falarmos francês...
JU – Foste directamente para Paris?
SC – A minha intenção não era ficar em Paris. A minha intenção era continuar para a Suécia. Mas o problema que se levantava era que eu queria na altura fazer uma carreira literária e tinha que compreender que a língua sueca não era verdadeiramente uma língua literária ou de civilização, pelo que fiquei em França por causa do francês. Não foi porque eu gostasse dos franceses ou porque gostasse de Paris ou porque gostasse da França. Foi porque naquela língua eu poderia fazer qualquer coisa enquanto que em sueco seria muito mais difícil. E então fiquei em França. Tentei obter o estatuto de exilado. Não mo deram. Pelo contrário, disseram que deveria regressar a Portugal e ir fazer a guerra colonial.
JU – Qual era, com essa idade, a tua relação com Portugal?
SC – Eu tinha grandes problemas com a cultura portuguesa. Quando estava em Coimbra (fui para lá com dezoito anos), apercebi-me que em relação aos da minha geração tinha um avanço cultural extraordinário, porque comecei a ler aos catorze anos e essa leitura dos catorze anos até aos dezoito anos fez com que, quando cheguei a Coimbra e era o caloiro, aqueles doutores não me metessem medo nenhum porque eram todos uns imbecis e uns ignorantes e apercebi-me claramente que tinha que sair de Portugal, isto é, que ficar no País não levava a nada. O facto de ter vivido numa república em que entravam lá os Pides e depois saíam, mostrava que no fundo havia uma cumplicidade entre nós e os Pides. Nós íamos ao café e eles apareciam lá e metiam-se a revistar-nos, mas uma coisa inofensiva, inócua. A minha ideia era realmente que tinha que sair se quisesse aprender alguma coisa, porque aqui era o deserto.
JU – Isso era uma opção tua ou era partilhada pelos teus colegas?
SC – Não, não. Era uma coisa minha. Não fazia parte de uma tendência intergeracional. As pessoas sentiam-se mais ou menos bem. Aliás bastava-lhes saber que eram do contra ou da esquerda para se sentirem felizes. Eu, politicamente, naquela altura, era um anarquista, pelo que não podia ir mais longe do que aquilo. Do ponto de vista político não havia mais nada a fazer, só podia era regredir. Quando se é anarquista o que se pode fazer? Não posso voltar para o Partido Comunista nem para outros partidos, embora, por exemplo, quando cheguei a França, lembro-me que um dos amigos meus daqui me deu uma carta de recomendação para o Partido Comunista Francês, para ver se eles me arranjavam um emprego e eles, tiveram toda a razão em dizê-lo, comunicaram-me que não eram uma agência de emprego e deram-me um pontapé no cu.
JU – A tua experiência Francesa vai ser um pouco violenta e dura, não é?
SC – Do ponto de vista da vida quotidiana, sim. Eu estava convencido que, nos países democráticos, como a França, que a democracia por si só assegurava um certo nível de vida à sua população e foi uma grande decepção quando percebi que não assegurava absolutamente nada. E o facto de ser ainda por cima imigrante... Eu lembro-me perfeitamente, na altura, no norte de Paris, no Boulevard de Ney, numa casota de contraplacado onde arranjávamos os documentos, a maneira como tratavam os portugueses era como se fossem gado bovino. Como, no fundo, os portugueses talvez estejam agora a tratar os imigrantes que estão a chegar a Portugal, com vinte ou trinta anos de atraso. Logo, para mim foi uma decepção total. Ao principio ainda pensei, Não, vou dar uma oportunidade porque ainda não sei falar nem escrever bem francês. Mas, como passado um ano ou dois, já escrevia e falava fluentemente francês e via que as coisas realmente não mudavam, aí foi a decepção total.
JU – Então viveste em França esmagado pelo trabalho e sem disponibilidade para seres um espectador da cultura Francesa?
SC – Não, não. Eu quando cheguei fiz tudo para ler e para acabar de ler tudo aquilo que não podia ter lido em Portugal sobre o Jean-Paul Sartre e o Albert Camus e depois meti-me completamente no Marquês de Sade. Até me chamavam sadista. E depois tentei então a poesia francesa do séc. XX, que, com a excepção do Artaud, foi completamente uma decepção total e eu aí disse, Não me safo aqui com os franceses, isto é, enquanto que os poetas da segunda metade do séc. XIX, um Baudelaire, um Lautreámont, me diziam muito do ponto de vista da poesia, quando cheguei ao séc. XX o Artaud disse-me muito, mas depois tudo o resto, todos aqueles grandes nomes que eles diziam que tinham ou que têm no séc. XX, não me diziam absolutamente nada. Depois descobri mais tarde, muito mais tarde, já depois de ter estado nos Estados Unidos pela primeira vez, o Francis Ponge. Os dois grandes poetas franceses do séc. XX para mim são o Artaud e o Ponge. Quando estava em França sabia que o Ponge existia, que era um poeta materialista, mas ainda não tinha compreendido o que aquilo representava do ponto de vista teórico ou estético. Só depois, numa leitura do Jean-Marie Gleize (Poésie et Figuration) é que eu me apercebo realmente que o Francis Ponge tinha coisas do ponto de vista teórico parecidíssimas comigo. E é isso que me faz às vezes não compreender como é que a gente aqui em Portugal que se interessa pelo Francis Ponge como poeta materialista não vê isso na minha poesia. Até posso dizer um nome, o Manuel Gusmão. Como é que ele não se interessa pela minha poesia. O Ponge já não fala em poesia. O Sena chamava-lhe «testemunho» e o Ponge já fala em «documento». O Jean-Marie Gleize já se refere a esses indivíduos como não sendo verdadeiramente poetas.
JU – Como foi a tua relação com o advento de um certo pensamento filosófico francês desse tempo, de Foucault a Derrida?
SC – Na altura aquele de que me apercebi mais foi de Delleuze. Mas eu naquela altura não estava muito virado para aí.
JU – Quanto durou a tua estadia em França?
SC – Seis anos.
JU – Globalmente, como avalias a tua experiência gaulesa?
SC – Do ponto de vista humano foi péssimo, porque foi o descrédito total das democracias Ocidentais. Se eu já não tinha grande crença nas democracias Ocidentais ou burguesas, então a partir daí fiquei completamente decepcionado. Quando se deu o 25 de Abril não tinha ilusões nenhumas sobre aquilo que se ia passar. Revolução, revolução, aquilo até me fazia rir. Aquilo não era revolução nenhuma, era só uma mudança de regime. Eu quando tinha quinze ou dezasseis anos era daqueles que queria mudar o mundo e que pensava que através da literatura se poderia fazê-lo. Eu venho a Portugal em Agosto de 1974, encontro-me com a Fiama Hasse Pais Brandão, porque tínhamos uma amiga comum, a ver se ela me arranjava um editor, etc., mas não conseguiu fazer nada. Regresso novamente a Paris e ainda gravo um programa na France Culture onde eles lêem lá um poema meu do livro publicado em francês (Les Trois Ages), mas vou logo de seguida para a Inglaterra, porque nos últimos dois anos em França comecei a meter-me no inglês, porque pensava assim: Eu aqui não me safo, isto é, a poesia francesa não me leva a nenhum lugar, deixa-me ver o que consigo com a inglesa. Comecei com o Yeats e também não me safava e depois com o Philip Larkin e também não conseguia fazer nada com aquilo. Mas descobri, de repente, uma antologia de poetas americanos e aí é que eu descubro o Wallace Stevens, o William Carlos Williams e aí digo: Calma, isto aqui sim, já me diz qualquer coisa. Fui para Inglaterra aprender inglês mas o que descobri foi a poesia americana. Regresso a Portugal em Agosto de 1975 e por aqui fiquei uns dez anos. Como tinha amigos a viver nos Estados Unidos, mantive o contacto com a poesia americana. Eles enviavam-me não só livros como também em 82 vou aos EUA, a São Francisco, à procura de emprego. Não consigo emprego mas descubro mais poetas americanos que me vão interessar, como Robert Lowell (The Dolphin) e leio os Colected Poems de Wallace Stevens, mais dois ou três livros críticos sobre o mesmo autor e trago sobretudo muitos livros baratuchos, comprados em segunda mão, comigo, o que fez com que continuasse a estudar a tradição americana que começa com o Walt Witman e a Emily Dickinson.
JU – Nesses dez anos em Portugal o que fazias?
SC – Primeiro tive que fazer o curso de românicas e depois, já no último ano, comecei a dar aulas no ensino secundário.
JU – Como te relacionavas aqui com o meio literário?
SC – Não tinha grandes relações. Eu tinha tido como professor, embora ele seja mais novo do que eu, o Fernando Guerreiro. E é o Fernando que me convida para publicar alguns textos meus nas revistas que faziam nos «Quatro Elementos Editores». É nessa altura que também conheço o Ernesto Rodrigues, porque foi colega meu na Universidade e chegamos a fazer trabalhos em conjunto sobre o Antero de Quental. Através desse grupo conheço o Manuel Frias Martins, gente toda aqui do sul. Do norte cheguei a conhecer ainda em Vila do Conde o Ruy Belo, com o qual me encontrei uma vez ou duas em Vila do Conde e depois aqui assim no Cacém ou em Queluz, não sei bem. Mas entretanto ele morre. Também, logo que regressei de França fui ter com o Vergílio Ferreira e ofereci-lhe o meu livro publicado em França e ele dizia que não percebia nada de poesia, que era uma maneira dele se descartar da gente que o chateava. Mas enviou-me ao António Ramos Rosa, eram grandes amigos. Um dia, na casa do Ramos Rosa, justamente ao mostrar-lhe aquilo que andava a fazer na altura, o Ramos Rosa ainda telefonou para a Moraes Editora a ver se estaria interessada, mas reparei imediatamente que os poetas portugueses não tinham poder ou prestígio nenhum em relação às editoras, ao contrário do que sucedia em Paris.
JU – Como é que ele se confrontava com a tua poesia?
SC – Ele dizia que estava a fazer coisas muito parecidas com isto. É em 75, tem graça, quando regresso a Portugal, que eu trago um livro que me vai ser fundamental: La Révolution du Langage Poétique de Júlia Kristeva. Foi nessa altura que conheci Barthes e Kristeva. O outro livro fundamental na minha vida será o Repetitions – The Postmodern Occasion in Literature and Culture de William V. Spanos, que só conheci nos Estados Unidos aquando da minha estadia na Califórnia. Dois livros para mim fundamentais. Um para me mostrar o Romantismo e o Simbolismo franceses e o outro para me mostrar o que estava a acontecer nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, o Pós-Modernismo tem muitas facetas. A Kristeva estudava coisas muito importantes nesse seu livro seminal. Para já, falava do Lautreámont e do Artaud como nunca me fora dado ver, que eram dois indivíduos que me interessavam muito, e que me explicou teoricamente por que é que eu gostava deles. E depois também me mostrou, embora eu não gostasse do Mallarmé, que às vezes há indivíduos de que nós não gostamos mas que também são importantes. Eu não gosto de uma maneira geral do simbolismo. Não gosto do símbolo. Até fujo, para dizer a verdade, do símbolo e de tudo que tenha a ver com Simbolismo ou com as metáforas. Às vezes nós podemos não gostar de um indivíduo, mas temos que compreender a sua importância do ponto de vista da cultura poética.
JU – O que é que tu descobres nos poetas Norte-Americanos?
SC – Penso que o que encontrei nos poetas americanos foi aquilo que, de uma maneira geral, eu poderia dizer que era a temporalidade, isto é, o dia a dia. Uma poesia que não tem nada a ver com grandes fenómenos ou com grandes problemas, isto é, com a arte, mas uma poesia que tem muito mais a ver com a vida real das pessoas. Fui encontrar aquilo que eles lá chamam de «American Sublime». O sublime fez parte da cultura do séc. XVIII europeu, mas o «American Sublime» é uma coisa diferente. Tem origem também no Walt Whitman, continua no Walace Stevens. Os grandes poetas americanos do séc. XX, ao contrário do que aconteceu na Europa, e então em Portugal nem se pode falar, porque em Portugal não há nem nunca houve verdadeiramente Pós-Modernismo. Os grandes poetas como T.S. Elliot, Wallace Stevens, William Carlos Williams, são indivíduos que fazem a transição do Modernismo para o Pós-Modernismo. Eles vivem o suficiente para passarem de uma estética para outra. Não precisaram de rupturas. Eles fazem a própria transição. E aquilo que eles introduzem é aquilo que o Heidegger chama a temporalidade. A temporalidade, de uma maneira geral no Ocidente, é o inimigo fundamental da poesia. Por exemplo, para um modernista como Ezra Pound, era mesmo o mal: «Time is Evil».
JU – Como lês a temporalidade em Fernando Pessoa?
Justamente, em Fernando Pessoa não existe temporalidade. Existe espaço. Como ele dizia, «Viajava, não evoluía.» O único heterónimo que tem duas fases é o Álvaro de Campos. Um primeiro Álvaro de Campos triunfalista, jovem, cheio de força, e depois um segundo Álvaro de Campos que é o derrotado pela vida. Mas de uma maneira geral trata-se sempre daquilo que os americanos chamam de «Spacial Form» e daquilo que eu depois chamei, num artigo qualquer, uma heteronímia horizontal. Que eu faço a diferença entre uma heteronímia horizontal e uma heteronímia vertical, em que esta tem que ver com a temporalidade.
JU – Quando é que começas a publicar com regularidade?
SC – Fui sempre publicando. De vez em quando eram livros de autor e depois na Brasília Editora. Até porque o editor, o Carvalho Branco, ainda era da minha família, casado com uma prima minha, e fazíamos um arranjo: eu pagava a composição, ele entrava com o papel e foi assim que fui publicando. Até agora eu nunca tive um editor que me publicasse um livro. Tive sempre que entrar com dinheiro para publicar os meus livros.
JU – Um livro que eu acho determinante e de viragem na tua obra é Da Estupidez, em que começa a tactear um conceito futuro teu que se tornará central na tua obra: a porética.
SC – É nessa altura que eu introduzo uma «estética da estupidez» e também uma «estética da imperfeição», que não só devo ao Wallace Stevens como a um trabalho que fiz, pedido pela Mécia de Sena, sobre o Jorge de Sena, e em que falo pela primeira vez numa «estética da imperfeição». O Wallace Stevens tem um verso famoso, «The imperfect is our paradise» (O imperfeito é o nosso paraíso). Nós vivemos num mundo da imperfeição e não do idealismo ou das ideias Platónicas.
JU – O Silva Carvalho é por excelência um poeta anti--romântico?
SC – Sou. Embora certos traços daquilo que escrevo possam ser muito parecidos com o Romantismo. Traços que são paralelos entre o que é o Neo-Romantismo e o Pós-Modernismo. Há coisas que são na realidade muito parecidas, só que o Romantismo é uma coisa Kantiana enquanto o Pós-Modernismo não tem nada a ver com Kant. No meu caso foi muito mais Heideggeriana que Kantiana. Havendo entre os dois um Nietzsche.
JU – Recorres muito a Heidegger, quando este filósofo acreditava numa espécie de missão e esplendor genesíaco do poético...
SC – Os textos heideggerianos em relação à poesia são muito retrógrados. Eu considero o Heidegger o maior filósofo do séc. XX, o que não impede que eu o goze muito e brinque muito com ele. Neste último Romance (Que Estupidez!), falo do Homem Inautêntico e do romance de chacha que era justamente aquilo que ele detestava. Na leitura dele de Hölderlin, assim como dos outros poetas de língua alemã, fez aquilo que em inglês se chama «strong readings”, isto é, distorce-se o sentido ao ponto de se ler muitas vezes o contrário do que lá está. O Paul de Man explica isso muito bem e eu tenho aquele poema que não é famoso, mas que um dia sê-lo-á, em que falo justamente do Heidegger e da sua relação com o Hölderlin, num poema intitulado Que Chato!, do meu livro de poemas Setembro, e em que digo que leio o Heidegger e penso, Sim senhor, isto é que é poesia, e depois vou ler o Hölderlin e não vejo nada daquilo que o Heidegger diz que existe no Hölderlin, e penso, sou um imbecil, sou um estúpido, sou um gajo que não percebe nada disto. E só mais tarde, ao ler um artigo do Paul de Man em que diz que o Heidegger põe na boca do Hölderlin o contrário daquilo que ele está a dizer, é que eu compreendo que afinal eu não era assim tão burro, nem tão estúpido, como parecia. Mas o Paul de Man também é muito irónico e diz, «Bem, já é muito bom estar-se a falar da mesma coisa, porque a maior parte do tempo, na comunicação humana, nem sequer estamos a falar da mesma coisa». Aliás, o Heidegger tem o mesmo problema que o Paul de Man, isto é, as ligações com o Nazismo. Um intelectual inglês (Christopher Norris, se não me engano) diz que toda a obra do Paul de Man foi uma tentativa de fazer compreender aos seus leitores de que a língua é traiçoeira e que um jovem de vinte anos pode ser enganado pela própria linguagem. Ele pensou, a determinada altura, que tinha chegado a altura de os alemães tomarem conta do mundo.
JU – E a ligação entre Paul de Man e Derrida?
SC – O Paul de Man não era discípulo do Derrida. Eles eram amigos. Mas o Paul de Man era um pensador autónomo e tem tanta força quanto um Derrida. O William V. Spanos, por exemplo, é muito crítico do Derrida. Quando Jacques Derrida diz que só há texto e não sei quê, etc.
JU – Apesar do teu trabalho ter a ver com o texto...
SC – Mas é que o meu trabalho está-se sempre a referir ao fora do texto, enquanto que há indivíduos cujos textos são só auto-referenciais. A minha poesia não é auto-referencial, remete-nos sempre para o mundo, que é o que não existe justamente na poesia portuguesa de uma maneira geral, e com as devidas excepções. Os poetas portugueses não nos remetem para o mundo. Têm um horror e fogem do mundo.
JU – No teu livro de ensaios, «A Linguagem Porética», referes-te a um autor, por excelência, Modernista, Fernando Pessoa; um Pós-Modernista, Jorge de Sena e...
SC – Jorge de Sena não se apercebia que era Pós-modernista. Segundo a Mécia de Sena, o seu marido considerava-se um maneirista deslocado no século XX. Logo, era um anacronismo vivo. Mas nós descobrimos o seu Pós-Modernismo através dos prefácios-ensaios de 1960, em que coloca certos problemas como o de pôr em questão a própria arte, o que depois até vai ser normal e vulgar no final do século XX. Escrevem-se hoje livros sobre arte depois do fim da arte.
JU – E tu consideras-te para lá do Pós-Modernismo?
SC – Não, o meu poreticismo é a minha maneira individual de viver o Pós-Modernismo em língua portuguesa. Porque há Pós-Modernismo da direita, há Pós-Modernismo da esquerda, há Pós-Modernismo do consumismo, etc. O Pós-Modernismo deu para tudo e dá para tudo. Pelo que é preciso ter muito cuidado quando nos referimos ao pós-modernismo, visto não existir um só Pós-Modernismo. Aliás, um dos pontos fulcrais da definição de pós-modernismo é o pluralismo de ideias e de concepções do mundo. Há todos os tipos de Pós-Modernismo. No meu caso, estava a acabar o romance Palingenesia quando recebo um telefonema de alguém que queria fazer um livro com autores portugueses e tinham já os meus livros todos e pediram-me um texto sobre aquilo que eu andava a fazer e eu escrevi uma carta e essa carta é que foi depois dar origem ao texto do Poreticismo. Quando acabei de escrever aquela carta é que eu me apercebi que tinha feito qualquer coisa de especial. É nessa altura que aparece pela primeira vez a expressão «Escrita Porética». Não que anteriormente ela já não sobrepairasse indefinida e desconhecida ou inapreensível, sobretudo desde que eu comecei a falar de uma «estética da estupidez e da imperfeição», ou melhor, desde aquele livro, que faz parte da Pentalogia Americana, Nem Prosa Nem Poesia Outra Coisa. Essa outra coisa era a linguagem porética. Mas eu ainda não tinha o termo.
JU – Já agora como é que definirias a linguagem porética?
SC – Posso dizer que a linguagem porética, pela sua própria etimologia, que vem de poros, é aquela que abre caminho onde não há caminho. No fundo, quer dizer que cada um tem que viver a sua vida, isto é, abrir caminho onde não há caminho: todos nós temos que o fazer todos os dias.
JU – Há algo de experimental no teu poreticismo?
SC – Eu acho que há muito de experimental. A hesitação, por exemplo. A hesitação já vem de Kierkegaard. O estilo de Kierkgaard era um estilo hesitativo. Era um voltar atrás. Nunca ninguém ligou Kierkgaard ao Fernando Pessoa. Podemos dizer que os pseudónimos de Kierkgaard são exemplos de heterónimos muito antes dos de Fernando Pessoa. Que saiba nunca li nenhum texto a ligar as duas obras ou os dois homens. Há muita coisa comum entre essas duas personalidades. Quando criei a linguagem porética era porque sentia e sinto que a poesia não me interessava mais. É um abandono da Arte. Quando era jovem gostava de ser um poeta, de me afirmar como poeta, de pertencer à cidade, à comunidade, etc., etc., e quando crio a linguagem porética é um abandono da ilusão de que isso pudesse vir a acontecer e um abandono dessa ideia da poesia que já vem dos gregos. Não estou interessado nisso. Aliás, nem nisso nem no romance. Nessa altura deixei-me de interessar por histórias. Estava farto de histórias. Descobri que o mundo estava cheio de histórias e o mundo continuava essencialmente o mesmo, com excepção da tecnologia, isto é, a tecnologia tinha avançado e progredido enormemente desde os gregos, mas o homenzinho continuava na mesma. Aí deixei-me de ilusões e agora não me interessa absolutamente nada ser considerado poeta nem artista. Basta ser considerado ser-humano, em que ponho uma especial ênfase no humano. Agora, ao proceder assim, ao assumir tal atitude, não posso contudo me arrogar ao direito de falar pelos outros, não posso ser o defensor dos outros. Dizem que eles não têm a palavra e por aí fora, mas não estou vocacionado para falar sobre os outros. É como se eles precisassem de mim. Eu é que sei ou sou consciente dos problemas, que afligem esses indivíduos e eu vou falar por eles?... Isso foi o que o Neo-realismo tentou fazer, ou o Realismo Socialista, isto é, cabia ao artista falar pelos oprimidos colocando-se no lugar deles. Porém, e penso que não é uma contradição, o problema poético fundamental para mim é justamente o problema social e aí sou completamente do séc. XIX e aí não evoluí absolutamente nada. Para mim o grande problema desde o meu nascimento até à minha morte, é o problema social, não o problema estético. T.S. Eliot também dizia: «Poetry is nothing”. A poesia não é nada. Eu interesso-me muito pelos outros, mas o facto de me interessar pelo destino das populações, já não falo em povos porque não acredito em povos, mas acredito em populações e em comunidades, o facto de não falar delas é pura e simplesmente porque não me arrogo ao direito de falar em seu nome. Quem sou eu, que sabedoria tenho eu, que capacidade tenho eu para falar sobre o sofrimento dessas pessoas. Agora, o único problema estético e ético que me interessa é o problema social. Aí sou do século XVIII ou XIX, ou ainda estou na Revolução Francesa. Não me interessa mais nada. Tem muito mais importância a vida de um homem que a de uma obra de Arte.
JU – Chegamos aí a uma posição perversa. O Silva Carvalho sofre com a melhor ou pior, no teu caso nula, recepção da sua obra. Há uma espécie de vontade de reconhecimento e aí considera-se como autor ou como criador...
SC – Não, não. Nunca me considerei um autor ou um criador. O problema coloca-se de outra maneira. Com essa coisa do Umberto Eco da Obra Aberta, em que o leitor tem tanta liberdade como o autor e pode ler os livros como lhe apetece, ler para a esquerda ou para a direita, tudo isto que tem acontecido nos últimos trinta ou quarenta anos. Não estou nada de acordo com isso. Isto é, eu sou um indivíduo, justamente o outro. Não sou os outros. O outro sou eu. Naquilo que eu faço ou nos livros que faço sou de uma dificuldade e de uma severidade extremas porque não digo aos outros, vocês leiam-me como vocês quiserem. Não, eu digo assim: vocês têm que se colocar nos meus sapatos. Se vocês me quiserem acompanhar nesta linguagem porética que é feita passo a passo, vocês têm que andar comigo. Vocês dizem, Que chatice, então não temos liberdade nenhuma. Sim, nenhuma. Se neste momento queres saber o que é o outro, tu tens que passar por isto. Se quiseres conhecer o outro profundamente, tens que te anular como ser ou como «eu» e tens que seguir o «outro». É isso que faço com os autores de que gosto ou me dizem alguma coisa. Com os autores de que gosto anulo-me completamente. Aí é que acontece a experiência do outro e é por isso que eu estou convencido que os meus livros se tornam difíceis e são muito chatos e não têm interesse nenhum para a maioria das pessoas, porque são muito exigentes. São de uma violência extrema. Eu obrigo o leitor a pagar o pegar-me. Trata-se de anular-se ele próprio e dizer, «Eu tenho de viver este indivíduo”. Eu não apresento «outros» mas apresento-me como «outro» para o leitor. E não posso pôr-me na pele do outro nos meus livros. Eu não sei o que vai na alma dos outros. Eu desconfio mesmo se, ao contrário de muitos outros pensadores, existe uma natureza humana. Não sei se há leis universais do Homem, posso é fazer uma tentativa de entrar no outro. Gostando ou não gostando.
JU – Porquê a tua resistência ao conto?
SC – Tenho grandes problemas com a história, com o romance e com os contos. E o meu problema é o princípio e o fim. É o próprio Delleuze que diz: «O princípio e o fim não têm interesse nenhum. O que interessa é o que está no meio». Aquilo que tento apresentar é o meio e não o princípio ou o fim. Ao apresentarmos o fim estamos a transformar a vida de uma pessoa num destino e não quero transformar a vida das pessoas em destino ou em intencionalidades. Quando escrevi O Romance Contemporâneo, tratava-se de um romance que é contemporâneo de si próprio. Está sempre no meio de si próprio, nunca acaba. Só acaba quando nós arbitrariamente dizemos, «Acabou o livro e acabou o romance”. Mas aquilo não acabou, aquilo poderia continuar. Aquilo tem cento e tal páginas e poderia ter quinhentas, mil. Aquilo não acabou porque não há nenhum fim que diga, «Este gajo nasceu assim, viveu assim e morreu assim, eh pá, que destino fantástico...» É isso que eu acho que é a metafísica ou a visão metafísica da vida do homem, quando considero que nós não temos destino. Nós movemo-nos no acaso. Nascemos, vivemos e morremos por acaso. Não há aí nenhuma intencionalidade. Porque é que eu sou anti-romântico? Porque os românticos, e o Jorge de Sena ainda tinha muito disso, queriam dar sentido àquilo que não tinha sentido. Não estou nada interessado em dar sentido ao que não tem sentido. Apresento o não-sentido como não tendo sentido e no entanto, apesar de tudo, como se nada fosse, nós continuamos a viver. Estou mais interessado em apresentar a estranheza das coisas do que a naturalização quase inevitável que fazemos do mundo. Mesmo que seja uma doença civilizacional ou uma doença física nossa, nós vivemos. Como dizia o Derrida, do logocentrismo não conseguimos escapar. Nem mesmo da metafísica. A partir do momento em que nas nossas línguas há o verbo ser, há o sujeito e há o eu, a coisa de que se fala é metafísica. Só línguas que evitassem o verbo ser é que..., mas estamos sempre a recorrer a ele. Não tenhamos ilusões quanto a isso. Agora precisamos é de ser conscientes desse problema, o que é diferente.
JU – O Silva Carvalho como que limpa todas as excrescências da sua ficção...
SC – Não, eu acho pelo contrário que coloco justamente na minha ficção só as excrescências. É como se não houvesse um fio condutor e é como eu digo: E que tal o romance como caixote do lixo da história? E depois digo: Da história do próprio romance. No fundo sirvo-me é das excrescências. Aquilo que os outros romancistas deitam fora, porque não faz parte do plano estabelecido para o romance, é isso que vou pôr ou expôr na minha ficção-realidade. Eu não sei o que é bem ou mal escrito, mas isso é uma ignorância minha. Nunca ninguém me conseguiu ensinar o que era bem ou mal escrito.
JU – Parece-me que os teus textos são híbridos.
SC – Toda a minha estética é uma estética híbrida. Híbrido é a palavra que parece que melhor me pode definir.
JU – Os teus textos começam sempre pela paisagem, mas rapidamente se precipitam numa espécie de aventura conceptual...
SC – Não posso ser, no princípio do séc. XXI, um escritor inocente. A partir do momento em que trabalho com as palavras ou com a linguagem e tenho que estar sempre a pôr em questão a própria linguagem que utilizo, há um constante ruminar sobre a adequação ou não da linguagem em relação àquilo que tentamos dizer ou contar. E isso é constante. Tento ser o mais claro possível. Simplesmente se não sou claro é porque aquilo que estou a tratar não me permite ser mais claro. Não sou como o Herberto Helder que transforma aquilo que é simples em dificuldades porque faz uma metaforização da linguagem, uma linguagem outra, uma segunda, uma terceira, uma quarta linguagem. Nele existe justamente aquela inocência primitiva de quem brinca com a pilinha ou com o sexo e fica dentro daquela exuberância ou descoberta, encantado com tudo aquilo. Ora, eu já estou muito velho para essas coisas. Já passei possivelmente por essas coisas.
JU – O Eros entra muito pouco na tua obra?
SC – Ou quase nada. Ou entra de uma maneira subliminar. Não entra escarrapachado mas entra possivelmente numa certa sensualidade que a linguagem tem na escolha dos vocábulos, na escolha da sonoridade. Nisso às vezes preocupo-me bastante. Por exemplo, recebi uma vez uma carta do Fernando Pinto do Amaral em que ele me dizia, constrangido e pesaroso, que era possivelmente o único poeta que continuava a insistir na musicalidade dos poemas e que eu não me preocupava com esse aspecto. Tive que responder que não me podia dizer uma coisa daquelas. Para mim a música é o que há de mais fundamental nos meus textos. Agora que a minha música não é a sua música, isso é diferente. Nós estamos no séc. XXI. Que existe ali música existe, só não é um corridinho ou um fado.
JU – Que eu conheça, o Silva Carvalho é o maior descobridor de palavras da língua portuguesa das últimas décadas.
SC – Do ponto de vista lexical quem renovou mais a língua portuguesa nos últimos trinta anos fui eu. Introduzi trezentos ou quatrocentos vocábulos que não existiam. E fí-lo não como os simbolistas, que procuravam apenas os vocábulos raros e poéticos. Introduzi vocábulos perdidos no dicionário que dizem coisas extraordinárias. Por exemplo, a palavra irremeável, nunca foi utilizada em português. Irremeável quer dizer que não se pode voltar atrás. E nunca nenhum escritor português utilizou esta palavra. Fico pasmado: a maior revolução lexical nos últimos trinta ou quarenta anos foi feita por mim, não haja dúvidas.
JU – O Silva Carvalho experimenta um novo tipo de escrita. Considera-se somente um escrevinhador. Muitas vezes reitera que a própria arte acabou e de algum modo que hoje fazemos coisas sem um termo para elas...
SC – Não sou eu que o digo. Ainda esta semana estive a ler um livro de um filósofo Americano famoso (Arthur C. Danto) que tem um livro também famoso intitulado A arte depois do fim da arte. Mais dia menos dia será encontrada uma palavra para o que está a acontecer. E o que é que está a acontecer? Está a acontecer que hoje é completamente arbitrário escolhermos este ou aquele artista. Se nas artes Plásticas, depois de Warhol, pacotes de Tide dentro de um museu, eram considerados arte, fora dele não passam de pacotes. Em relação ao que faço, possivelmente aquilo que não se apresenta como poesia numa certa altura venha a ser a poesia do futuro. Temos que ver, em Portugal, que Cesário Verde demorou cem anos a ser reconhecido e, no entanto, teve logo o Fernando Pessoa a dizer que o Cesário Verde era o seu mestre. Mas para a crítica Portuguesa não valeu de nada. Só agora, nos anos oitenta e noventa do século transacto, Cesário Verde está sendo reconhecido provavelmente como o nosso maior poeta do séc. XIX.
JU – Há uma figura que se torna fundamental na tua teia conceptual que é a catacrese. Escreves num texto teu que para o Derrida a grande figura da literatura no séc. xx era a catacrese e não a metáfora.
SC – Não me lembro em que texto do Derrida li isso, mas tenho a certeza que o li em Derrida. E estou perfeitamente de acordo. Mesmo num trabalho que fiz sobre Alberto Caeiro mostro que toda a poesia dele é catacrética. Porque é um indivíduo que quer falar da natureza de uma maneira diferente daquela da tradição mas não tem palavras para o fazer e então recorre ao: «é isto, mas não é bem isto». Está sempre a dizer: «não é bem isto». Trata-se pois de uma aproximação abusiva. Não se tendo criado um neologismo para aquilo que é novo, é-se obrigado a recorrer sempre ao «mais ou menos» de que fala Rorty.
JU – Qual é a relação da tua escrita com o tempo?
SC – Tenho abordado em vários textos meus o problema do tempo e posso colocá-lo assim: se vamos ser historicamente reflexo do nosso tempo ou se nós temos a coragem de contra esse reflexo do nosso tempo impormos um tempo feito por nós. Apostei mais num tempo feito por mim do que ser reflexo do meu tempo. Poderia ser, se quisesse, um poeta bem conhecido, era só ter lidado e conhecido os poetas que estavam na moda, fazer mais ou menos ou até melhor aquilo que eles andavam a fazer. A maior parte dos nossos poetas, do ponto de vista conceptual, são muito maus. A nível de pensamento são demasiado primitivos. Estou mais interessado em fazer o próprio tempo. Isto tem o seu quê de perverso, para não dizer mesmo de doentio, porque tal procedimento pode parecer uma paranóia ou mesmo uma esquizofrenia. E não é por acaso que sofro também na minha carne aquilo que sofro. Até que ponto o meu corpo sofreu ou não sofreu com estas violências que fiz a mim próprio, é uma incógnita e há muita gente que prefere não passar por essas violências. Há aqui um certo aspecto, não direi suicidário, mas em que o que estás a fazer te vai criar mais problemas do que aqueles que tu já tinhas... E eu sou um caso paradigmático disso. O meu corpo, na realidade, tem sofrido as consequências de toda esta aventura que eu tentei a partir dos vinte anos. Não tenho vivido isto no melhor dos mundos, e temos que pensar se valerá a pena, não valerá a pena... E acho que não valia a pena. Não sou masoquista e acho que o sofrimento é uma coisa terrível. Acho que vimos ao mundo para vivermos o melhor possível, e não nos devíamos estar a preocupar com artes e com ideias de futuros e que vamos pertencer depois a uma tradição e depois os meninos da escola vão conhecer o nome do indivíduo que glorificou o nome de Portugal. Eu não precisava disso. Até já tenho o meu nome numa rua da cidade de Lisboa. Já lá está o nome Silva Carvalho. São coisas que com esta idade estou a dizer. Mas aos vinte anos eu queria realmente ser um escritor.
JU – O teu trabalho tem sido de desmitificação do grande escritor, do estado de excepção do Artista, etc., etc. ...
SC – São, no fundo, sobrevivências do herói. Acho que enquanto houver esse rastro as humanidades não se emanciparão. Enquanto não contarmos connosco enquanto seres imperfeitos mas tentando fazer o nosso melhor, estamos perdidos. Porque se estamos à espera do herói que nos vem libertar, estamos perdidos. E isso faz parte do meu aspecto quase político. Temos que ver que na poesia portuguesa dos últimos trinta anos quem tem falado mais dos problemas sociais sou eu. Mesmo intelectuais de esquerda que se poderiam interessar por isso deixaram de o fazer. A partir do 25 de Abril aconteceu qualquer coisa, ignoro o quê, em que eles até ficaram com medo e ficaram também traumatizados com o Neo-realismo. Não tenho nada contra o Neo-realismo. Eu acho que aquelas pessoas eram muito boas e que tentaram fazer qualquer coisa pela humanidade. Do ponto de vista estético levantam-se demasiados problemas. Como é que um autor Marxista ou um autor materialista como o poeta Carlos de Oliveira fazia aquilo que fazia, que era estar sempre a corrigir os seus poemas. Isso vai contra toda a ideia do materialismo. O indivíduo era completamente Platónico, um idealista. Andava à procura da perfeição, da perfeição da perfeição. Eu se quisesse ser maldoso diria que aquilo que ele fazia em literatura era aquilo que o Staline fazia quando tirava das fotografias aquelas pessoas que não lhe interessavam. Para mim é a mesma coisa. E isso acho grave, porque não é histórico. A História é o que há de bom e o que há de mau: as nossas ingenuidades, os nossos erros, etc. Nessa estética do Carlos de Oliveira consagra-se uma espécie de manipulação do real. Um real literário, que já tinha aparecido historicamente e que passados uns anos ele modificava e assim sucessivamente. Se ele ainda estivesse vivo ainda estaria a modificar os seus livros.
JU – Tendo nós pela frente o horizonte das biotecnologias que podem pôr em questão a própria espécie humana, pergunto-te se a tua escrita lida com isso ou se acha esse um horizonte longínquo?
SC – Não tenho reflectido muito sobre isso. Todo o tipo de estética que faço é uma estética do «à rasca». Não tenho tempo para colocar problemas de um futuro próximo. O meu problema reduz-se ao presente ou, digamos, ao próximo mês. Não quero dizer que seja o agora. Ninguém consegue viver no agora, pelo que esses problemas para mim são ficções, era como se tivessem a falar no Homero. Não me identifico com o mundo do Homero como não me identifico com o futuro. Em relação à tecnologia há um problema: aí eu sou muito Heideggeriano, isto é, se não colocarmos a ética à frente ou acima da tecnologia, estamos perdidos. Há-de chegar a altura em que a bomba vai ser uma bomba inteligente e se ela quiser dá cabo de nós. Nem sequer somos nós a dar cabo de nós. É a bomba que é de tal maneira inteligente que diz assim: Vou acabar com a raça humana, porque é uma raça estúpida que não merece viver, nem nunca deveria ter aparecido à superfície da terra porque só lhe tem feito mal e por conseguinte vou destruir esta gente. Vejo muito mais as possibilidades da tecnologia viradas para as necessidades da humanidade. Quando falo da «estética da estupidez», no fundo, é para mostrar até que ponto, ao termos opiniões sobre as coisas, estamos ou não estamos a ser estúpidos, isto é, se temos capacidade para ter opiniões ou se o simples facto de termos opiniões já não se trata de uma grande estupidez. Devíamos falar só quando estamos absolutamente certos daquilo que estamos a dizer e detemos todas as componentes do que estamos a falar, ou não?
JU – Sabes, Silva Carvalho, isso é um problema da linguagem. Se eu cada vez que falasse dominasse absolutamente o assunto de que vou falar, nunca chegaria à fala. Aí não precisaríamos sequer da linguagem e existiríamos num qualquer absoluto. Portanto, não haveria comunicação possível. Precisamos de ser estúpidos e falhados para poder comunicar.
SC – É dai justamente que vem a «estética da estupidez».
Neste romance (Que Estupidez!), por exemplo, e retomando a questão da tecnologia, mostro a relação entre a linguagem e o computador e mostro a relação que eu tenho de prazer com o estar a escrever ao computador. Há um momento em que me pergunto se estou a escrever porque estou a dizer qualquer coisa de interessante ou simplesmente porque estou a ter prazer em pressionar aqueles botões do teclado. Ponho em causa no fundo tudo o que havia de artístico ou de digno sobre a própria literatura e se a literatura não é uma coisa muito mais simples que é este pequeno prazer de a gente carregar no botão e depois sentir que o botão sobe outra vez. Ora, isto tem a ver com a tecnologia. E na relação que eu tenho com a tecnologia estou a servir-me de uma máquina que não domino. Hoje vivemos num mundo em que abrimos o capou de um automóvel, olhamos lá para dentro e dizemos: não percebo nada disto! Estamos completamente dependentes da tecnologia e dos seus especialistas. Mas nem sequer tenho a ilusão de que sou competente com a linguagem.
JU – Excepto Fernando Pessoa e Jorge de Sena, a literatura portuguesa deste século pouco te diz?
SC – Isso, porque a mim não me interessa estar a ler retardados. Aliás, se acho que em certos aspectos posso ser tão interessante como o Fernando Pessoa, psicologicamente sou sempre um filhote de Pessoa. Sou um menino, um efebo em relação ao Pessoa. Não tenho ilusões quanto a isso. Psicologicamente eu nem me atreveria a pôr-me ao lado do Pessoa, mesmo que racionalmente o possa fazer.
JU – Como lês criticamente a literatura portuguesa das últimas décadas?
SC – Leio como se lê hoje o pós-Camões. O pós-Camões foram três séculos sem ninguém. E para mim Camões nem é a figura do renascimento. O Montaigne é muito mais importante que Camões, mas não haja dúvidas que Camões é um grande poeta português do séc. xvi. É neo-platónico, mas isso não interessa. Escreveu versos extraordinários. Escreveu Os Lusíadas que é um poema extraordinário. Sinto-me mais próximo do Montaigne que se preocupava com os índios, etc., mas depois do Camões existiram três séculos em que não apareceu mais ninguém e a mediocridade persiste. Como diz a Clara Ferreira Alves: Em Portugal ninguém gosta do Fernando Pessoa porque se gostassem do Pessoa, e agora sou eu que o digo, a poesia portuguesa do séc. XX teria sido completamente diferente. E em arte o fundamental são as consequências e não o copiar ou o epigonismo. Para mim a poesia portuguesa contemporânea é uma mediocridade, aquilo tudo não vale nada. Por exemplo, a Sophia, que foi da geração do Jorge de Sena, e se pego num poema dela para o analisar de verdade, e tenho muita simpatia pela senhora, a visão do mundo que dele se desprende resulta ou já resultou em guerras, em racismos, etc. O problema é esse. Uma ideologia estética está relacionada com ideologias políticas, etc, etc, e as pessoas às vezes não se apercebem disso. Era como se só devêssemos servir absolutos, a Grécia, o Orpheu, Deus e não sei que mais. Este tipo de ideologias estéticas funcionam em sociedades que já não são religiosas como eram antigamente e servem de religião para estas sociedades ditas laicas. São substitutos para aqueles que pensam que não são religiosos porque não vão à missa, mas no fundo dão-lhes a mesma consolação que a religião. Não há diferença entre aquele tipo de arte e a religião. Fui eu e o Manuel Frias Martins, que eu saiba, que introduzimos no final do séc. XX a expressão «Negative Capability» de Keats, O Manuel Frias Martins já em 1986 no seu polémico livro 10 Anos de Poesia em Portugal (1974-1984) Leitura de uma Década se referia a essa problemática. Na cultura portuguesa, com tantos professores de literatura Inglesa, olha, esses Magalhães e não sei que mais, nunca introduziram esse conceito de «negative capability». Porquê? Porque não lhes convém. Porque aquele conceito destruía-lhes todo o trabalho poético que eles tinham feito. Nós temos que ver o que há de interesseiro naquilo que se faz. Tenho amigos que fizeram coisas sobre certos poetas e porque o fizeram vão defendê-los até morrer e não são capazes de reconhecer: hoje penso de maneira diferente. A temporalidade é isso mesmo, é a nossa capacidade de nos modificarmos e de não pensarmos da mesma maneira. Aqui em Portugal, do não se pensar da mesma maneira diz-se: este indivíduo não tem vértebras, é um invertebrado; este indivíduo não tem convicções. Olha o gajo, pensava assim há dez anos e agora já não pensa assim... Quando é perfeitamente normal que passados dez anos um indivíduo com a experiência e com o envelhecimento pense de outra maneira.
JU – Para acabar, é verdade que não existes nem como nota de rodapé no panorama da literatura e da crítica literária portuguesa contemporânea?
SC – Verdadíssima.
JU – Custa-te?
SC – Tenho pena. Porque para quem não acredita nem no passado nem no futuro e só acredita no presente, eu gostaria de uma maneira ou de outra de poder ser útil ou de poder pertencer à cidade, influir e agir na cidade. Depois de morto que me interessa a mim que a obra seja ou não conhecida. Pelo contrário, e nisto sou muito baudelairiano quando ele falava na memória do presente em relação à memória do passado, é que eu nem sei se será bom que os livros, que as pessoas escrevem agora sejam para o futuro, porque no fundo isso é um encargo e um peso para os homens e as mulheres do futuro. Então as pessoas do futuro vão ter que aturar um indivíduo que já viveu e que já morreu e vão ter que estar a ler aquele indivíduo? O Baudelaire, que eu saiba, foi o primeiro a pôr esse problema no Ocidente e dessa maneira. Este peso absurdo: os clássicos, os latinos, o Homero. A Origem. Nunca li o Homero e não me sinto diminuído. A minha cultura, como o sugiro no livro que vou brevemente publicar, é a cultura dos livros dos quadradinhos. Mais nada...