HERMÍNIO MARTINS é o pensador português mais decisivo e desconcertante dos últimos trinta anos. É certo que viveu longe de Portugal, é certo que nada faz para a sua auto-promoção, e que a maioria dos seus textos está dispersa por revistas e outras publicações colectivas. O que é bom. Tem o seu lado bom. Hermínio é um sociólogo atípico. Diremos de uma forma breve que é um sociólogo da ciência e da tecnologia e também um arqueólogo das ideias. —entrevista por Paulo Urbano e João Urbano.
NADA – Porque é que o Hermínio seguiu sociologia? O que é que o atraiu?
HERMÍNIO MARTINS– Eu podia ter ido para a filosofia. Mas a filosofia, nessa altura, estava em baixo, era a filosofia linguística pura e simples. Vi alguns dos exames que eles tinham que fazer. O que é que significa a palavra nice? Comente a palavra nice. Comente esta palavra ou comente aquela palavra. Era a filosofia linguística mais temível.
N – Aí estamos em?
HM – Nos anos 50. E portanto a sociologia pareceu--me mais interessante, no sentido em que era mais aberta, menos estruturada, com várias direcções, várias perspectivas. Aliás, nessa altura estava em grande ascendência, grande ascendência intelectual, havia grandes correntes de pensamento.
N – Pergunto isto porque o Hermínio não aborda a sociologia do mesmo modo que os outros sociólogos o fazem: classes sociais, todo o aparato...
HM – Normalmente ou patologicamente. [risos]
N – Pronto, pronto, patologicamente. No seu pensamento dá-se uma espécie de cruzamento entre a filosofia e a sociologia.
HM – Pode-se fazer filosofia através de qualquer disciplina, não é verdade? Eu sempre digo que os sociólogos normais pensam que excluindo a filosofia podem fazer ciência normal. Não é o caso, se fizessem ciência normal não teriam de ligar à filosofia, mas eles não estão a fazer ciência normal, não é verdade? Eles não estão a fazer ciência normal. Eles estão a excluir a filosofia. É ridículo, para além de ser patológico. Depois pensam que imitando as facetas mais superficiais da ciência normal, das ciências duras, podem conseguir uma ciência dura. Não é assim! Não é assim que se pode conseguir uma ciência dura.
N – Mas acha que ainda hoje essa é uma tentação da parte das ciências humanas e da sociologia?
HM – Ah, claro que é. Podemos pôr de fora o caso da ciência económica, porque está altamente axiomatizada, formalizada, matematizada.
N – Mas mesmo assim o Hermínio faz às vezes críticas à ciência económica e ao seu não empirismo, como se fosse uma ciência não experimental.
HM – Sim, agora estão a fazer economia experimental. Aí há uns dez anos que começaram a fazer a chamada economia experimental. Ao princípio começaram com ratos, o comportamento dos ratos, ciência behavorista. Agora já fazem com pessoas. Isso da economia experimental já aparece muito conotado com a psicologia experimental. De facto, um dos últimos prémios Nobel de Economia foi dado ao Tversky e ao Vernon Smith; O Vernon Smith que faz psicologia experimental, psicologia microeconómica microexperimental, digamos assim. Experimentos macroeconómicos?... Ninguém fala disso. É com jogos, com a teoria dos jogos de estratégia. Cada pessoa pode inventar os seus jogos de estratégia.
N – Já há sociologia feita a partir de simulações de computador.
HM – Há, mas estou a falar de experimentos reais, situações de laboratório onde se colocam as pessoas em face de certas situações de escolha, tipo jogos de estratégia. Por exemplo, um jogo, o Ultimatum Game, o jogo do Ultimato, consiste muito simplesmente numa prova em que há duas pessoas. O experimentador dá à pessoa a dez dólares. As regras do jogo são as seguintes: a pessoa a tem que fazer uma oferta à pessoa b, como dividir ou não dividir os dez dólares. Se a pessoa b aceita está tudo bem. Se a pessoa b não aceita o jogo acaba e o senhor a perde os dez dólares. Numa situação dessas, intuitivamente, para mim, a solução focal, digamos assim, a solução dominante seria a seguinte: 50%/50%, dividimos os dez dólares. Isto na América não é o caso. É dos dois casos. Às vezes, o jogador b não aceita o 50/50. Se a pessoa que tivesse dez dólares me oferecesse 50/50 eu aceitava. Tudo bem. Se eu recusasse nem um nem outro receberia qualquer dinheiro, portanto ... Mas há muitas pessoas nos Estados Unidos da América fazem 60/40, seis dólares, quatro dólares. Há muita gente que não oferece nada, oferece um dólar. Isso é que é curioso. Bem, eu não sei se em Portugal, os portugueses já fizeram experimentos desses.
N – É cultural.
HM – Penso que deve ser, de facto. Mas não é verdade vocês não concordarem imediatamente que 50/50 seria...
N – Apesar do 60-40 também ter a sua lógica.
HM: Ah, também! Então está a ver.
N – Não quer dizer que eu optasse pelo 60-40, mas compreendo que, como tem uma ligeira vantagem, porque tem o dinheiro, acha que pode ter uma percentagem ligeiramente superior.
HM – Sim mas essa oferta só é válida se o outro jogador aceitar. Há um factor aqui muito importante. Dez dólares é pouco. Se eu tivesse um milhão de dólares e estivesse forçado a dividir, obviamente que muitas pessoas diriam 10%. 10% de um milhão de dólares ainda é muito dinheiro. A outra pessoa poderia ainda aceitar. Mas, há muitos jogos.
N – E a sociobiologia? Já agora, posso fumar?
HM – Preferia que não fumasse. Afecta-me um pouco. Desculpe. O Popper quando entrava na sala de aula dizia «Ninguém pode fumar!» Às vezes perguntava «Alguém esteve no estrangeiro? Ah é que os germes estrangeiros afectam-me a mim muito. Portanto quem esteve no estrangeiro pode retirar-se...» [risos]. Voltando à sociobiologia. A grande sensação da sociobiologia ou psicologia evolutiva é tirar conclusões universais de factores ou determinantes biológicos, sejam genéticos ou não genéticos. Isso parece-me arriscado para não dizer mais. Há coisas muito sérias, por exemplo, um estudo procurava legitimar a violação das mulheres pelos homens, afirmando que estava fundamentada geneticamente. Pode ser um exemplo extremo, o mesmo tipo de argumentação, o mesmo modelo explicativo, o mesmo tipo de análise. E há muitos outros.
N – Mas incorremos nesse perigo. Com o avanço da ciência em todos os aspectos, da tecnologia etc., chegaremos a um ponto em que seremos inimputáveis. Porque é que somos inimputáveis? Porque são células, são mecanismos internos, quer dizer, chegaremos a um ponto em que são os próprios mecanismos biológicos os responsáveis pelo nosso comportamento e não nós próprios.
HM – Sim, isso é uma questão que se coloca certamente. Já se colocava teologicamente, agora coloca-se do ponto de vista das implicações filosóficas, das implicações éticas e jurídicas desse tipo de estudos. Mas há quem procure obter modelos causais e ao mesmo tempo a responsabilidade moral. Há sofismas e estratagemas para fazer isso embora sejam pouco satisfatórios. Há uma corrente importante na filosofia analítica que procura conciliar o determinismo causal e a imputabilidade. Mas há quem diga também que a imputabilidade é uma ilusão, a imputabilidade moral é uma ilusão. Mas então começamos noutro círculo.
N – O Hermínio passa de uma sociologia mais ligada à filosofia da ciência, o Thomas Kuhn, mesmo o Imre Lakatos que foi seu amigo, para a técnica. O que é que o levou a essa viragem? Simultaneamente o Hermínio tem uma espécie de fascínio pela técnica que se nota nos seus livros, nos seus termos, nos seus conceitos, e por outro lado temos a suspeita, mesmo a ironia a todo um fatalismo tecno-científico ou de escatologia tecnológica, etc. Há uma espécie de paradoxo. De certa maneira, umas coisas vão dar às outras, há um caminho certamente. Mas não é propriamente uma coisa que lhe surge nos anos 50 ou 60, já lhe surge no fim dos anos 80, se não me engano...
HM – A resposta é complexa. Primeiro, não é tudo. Há textos, como por exemplo, aquele texto no livro do Boaventura de Sousa Santos «Verdade realismo e virtude», não sei se conhece. É um texto da filosofia da ciência. A questão da verdade na ciência, o estatuto epistemológico da ciência. A ciência em busca da verdade, qual é a busca da ciência? Se não é a verdade, o que é? No sentido do sistema filosófico o estatuto da verdade é problemático, extremamente problemático. Portanto tratei disso há pouco tempo, o livro saiu em fins de 2003. O artigo chama-se «Verdade e Origem e Virtude». Portanto é um tema da filosofia da ciência. Não falo muito da tecnologia mas sim quais são os valores epistémicos da ciência contemporânea. Há muitos sociólogos que não percebem porque é que um sociólogo se interessa pelas calamidades, grandes desastres colectivos, como se houvesse um objecto. Estou a simplificar um pouco porque as questões que tratei antes continuam. A resposta é mais complexa penso eu. De certo modo tem a ver com os impasses, nos anos 70 e 80, os impasses do avanço normal no mundo ocidental ou do avanço técnico na União Soviética. Ambas as modalidades de avanço científico-industrial estavam a tornar-se cada vez mais tecnicizadas, mas tecnicizadas não num sentido que convergisse para o bem estar, para o avanço material das populações. Isso foi parte da questão, da situação que me preocupou. Aquela identificação entre ciência e progresso começara a quebrar. Já tinha havido a revolução informática muito antes mas é o colapso, com o governo Tatcher, do modelo sócio-democrático, da social-democracia. Havia a questão da crise energética, o grande choque petrolífero de 1973, que quase acabou com a nossa transformação social. Mas isso é uma outra questão. E a crescente tecnificação da ciência, a industrialização da ciência e cada vez mais a questão das articulações da ciência com o mercado. A pesquisa científica pela antecipação do mercado, que começou obviamente com a genética molecular, em que a pesquisa científica já é feita em antecipação dos resultados económicos. E não só dos resultados económicos para os outros, mas os resultados económicos dos próprios cientistas. Na informática também, obviamente! Na informática, o start-up de pequenas empresas, a convergência do papel dos cientistas, do engenheiro e do empresário que eram figuras tipicamente distintas no passado. Isso implica toda uma série de transformações. A questão da responsabilidade social da ciência, a responsabilidade pública da ciência, que é uma questão que já não pode ser assumida por conta da ciência, vai precisar de adequar parte da esfera pública. Agora com a penetração da universidade pelo mercado, já não é questão de esfera pública. A universidade começa a diluir-se. Essas coisas tiveram o seu impacto. Portanto é a questão do pensar a ciência como tecno-ciência e a ciência não só como fonte da tecnologia mas como articulada com a tecnologia.
N – Portanto há uma espécie de hibridação cada vez maior entre a ciência e a tecnologia?
HM – A questão do progresso através da ciência coloca-se em termos muito diferentes. No passado, a ciência avançava, depois a técnica avançava e depois a economia avançava e depois o progresso social avançava, numa sequência lógica, harmoniosa, relativamente harmoniosa, um modelo de perfeição. Mas agora tudo se recoloca. E nas ciências da vida não se postula o bem para o homem, o bem para a sociedade, mas postula-se a transformação da condição humana, das estruturas ontológicas do ser humano. Já não se colocam questões de como satisfazer as carências humanas mas de como transformar o ser que tem carências. Transformar a carencialidade do humano, de facto é extremamente paradoxal. De certo modo tudo isto são questões que já vinham sendo colocadas anteriormente. Há uns textos de biólogos dos anos 20 que antecipam todas essas coisas. O Haldane, um biólogo mas também um pensador, aliás um especulador, imaginou toda uma série de transformações através da biologia e sendo um biólogo de grande envergadura, tratou da matemática da evolução, da genética humana. Tinha a peculiaridade de fazer as experiências em si próprio, com gazes, químicos e coisas assim. Hoje experimenta-se com os outros [risos]. Também foi vítima da primeira guerra mundial.
N – Nos anos 70 o Hermínio é um homem já formado. Como encarou de repente, todo este tipo de projectos de industrialização da Ciência?
HM – Houve um choque moral. De certo modo, a não progressividade moral da ciência nos dois sistemas: o sistema soviético e o sistema ocidental. No sistema soviético o mais brutal era o completo desprezo pela população, o completo desprezo pela natureza. Não deixavam o ambiente em paz e não deixavam as populações em paz, faziam experimentos com tudo, com toda a gente. O colapso ecológico do mar Aral, um grande lago, um desastre extraordinário. Há grandes projectos que eles tinham, os projectos eram autenticamente fantásticos. A transformação da natureza sem qualquer consideração pela natureza.
N – Isso do lado soviético, e do outro, do lado ocidental?
HM – É a mesma coisa embora com controlo, com limitações. Por exemplo, na América todo um conjunto de projectos de construção de centenas, de milhares de centrais nucleares existiam no papel mas numa certa altura houve um choque com a opinião pública e em resultado disso não constroem uma central nuclear há vinte e tal anos. E as pessoas que se queixam deste país [Portugal], dos inimigos da ciência, não dizem porque é que há tantos inimigos da ciência nos Estados Unidos e não constroem uma central nuclear? [risos] Isto é um grande país de progresso. Mas seriam boas para nós, portugueses, com certeza, óptimas para nós. Aliás, já temos que nos haver com centrais nucleares em Espanha. Sem falar das dezenas e dezenas de grandes centrais nucleares francesas.
N – Uma grande parte da nossa energia [Portugal] vem precisamente dessas centrais nucleares.
HM – Sim, isso é verdade. Mas, na América houve aquela grande viragem. Eles também tinham grandes projectos de transformação. Por exemplo, tinham projectado a abertura de um novo canal, entre o Pacífico e o Atlântico, rasgado por bombas nucleares. Brrrrrrr. [risos] E houve um projecto de fazer explodir uma dezena de bombas atómicas na Amazónia, para pôr na Amazónia uma série de lagos, para fornecer energia a toda a América do Sul. Um grande projecto. Esse projecto do Hudson Institute foi frustrado, de qualquer maneira, pela reacção nacionalista Brasileira. Portanto, comecei a pensar que isto é uma vocação permanente das ciências. Avançar com a automatização, informatização, tudo que seja, transformar tudo à imagem da tecnologia particular que se está a fazer. Mas na questão da teoria biológica, da engenharia genética, houve outra questão fundamental que se prende com a transformação do ser humano, a questão que se coloca é, para quê? Não é já para realizar as necessidades do ser humano, dado que o ser humano vai ser agora objecto de transformação. Se eles ao menos dissessem: É o desígnio de Deus, é uma força imanente, é um projecto imanente. Mas para quê? Para que é que vamos fazer isso? Se é para satisfazer as necessidades do ser humano: as pessoas têm fome, têm miséria, são doentes, não se realizam plenamente devido a certas limitações? Ok, mas agora o próprio ser humano vai ser transformado ou quer ser transformado. Temos aí outro problema que é a resolução dos problemas gerados pelas tecnologias, que são obviamente uma espiral sem fim.
N – Já agora, o Hermínio quando aborda as questões da ciência e tecnologia, aborda as coisas mais pela citação dos próprios cientistas e dos que produzem dentro dessas disciplinas científicas discursos ideológicos sobre a ciência e a humanidade, do que propriamente depois analisar toda a envolvente, todo o contexto, desde os políticos, passando pelos aparelhos de estado até às multinacionais...
HM – Em parte porque muita gente faz esse tipo de trabalho. Por isso, o princípio económico, a vantagem comparativa faz-se porque os outros não fazem, porque não querem fazer, ou porque não estão interessados em fazer, ou não fazem com tanto interesse. Em parte é isso, mas já comecei a tratar desse tipo de questões. É suficiente para responder a essa questão. Para voltar à anterior. O Nietzsche já tinha dito que o século xx seria um século de barbárie por meios científicos. Foi a industrialização da morte nas duas guerras, em parte pela química, em parte pela física. A bomba atómica, de facto, é um marco importante. Depois do advento das armas atómicas, pela primeira vez, com os meios científicos mais avançados, mais sofisticados podemos caminhar para a aniquilação da espécie, uma coisa que não estava no nosso poder antes. Agora está, em princípio obviamente. E depois claro, há outras armas, há uma super-abundância de armas biológicas, químicas, etc.
N – O Hermínio até brinca um bocadinho e refere num ensaio recente de uma bomba de neurónios.
HM – Existe, é perfeitamente factível. A bomba burguesa por excelência, só destrói as pessoas e deixa a propriedade intacta. [risos] Não é brincadeira, é de facto assim. Podíamos dizer, A bomba do mercado por excelência. Aliás nem precisamos de pessoas para comprar e vender, pode fazer-se virtualmente. Enfim, mas, deixando isso, não sei porquê mas talvez devido a certos defeitos de formação, vejo uma diferença importante entre o Marx e o Nietzsche. O Marx pensava que havia uma coisa boa na associação, a associação das pessoas, a associação livre dos produtores, portanto na cooperação social. Coisas muito boas que teriam a sua plenitude numa sociedade avançada pós-capitalista. Não se ouviu Nietzsche dizer que a associação seja uma coisa boa, a qualquer nível. Para Marx o proletariado era a grande classe universal que realizava todas as aspirações e desejos da humanidade. Nietzsche praticamente não fala de cooperação, que eu saiba. Não sou especialista em Nietzsche. Mas é verdade, tem toda a razão quando fala na relação darwiniana de Nietzsche. De certo modo Nietzsche radicalizou Darwin, antropologicamente, socialmente, historicamente. Às vezes digo às pessoas que Nietzsche não fez mais do que radicalizar Darwin e David Hume. A ideia de que a pessoa não tem substância. Des-substancializa-se a pessoa, de certo modo, des-substancializa-se a espécie, porque de certo modo Darwin des-substancializa as espécies. Numa certa leitura de Darwin só há indivíduos, e os indivíduos não têm estatuto ontológico específico como mostra a imagem dawkinsiana do organismo como mero «veículo», mero portador de genes ou adn. Fazem mas não são autores. Não têm capacidade autónoma de fazer as coisas, fazem não se sabe bem porquê, para quê. Portanto é uma visão radicalmente ateleológica do mundo. Mas quando se passa daqui para a questão das transformações que a ciência pode fazer, e a questão de qual a finalidade dessas transformações, as razões óbvias são de satisfazer as propensas das pessoas, coisas melhores para nós, melhores para a nossa saúde, para a nossa alimentação, melhores condições de vida, etc. Mas ao fim e ao cabo não é para isso porque um dos projectos é transformar a própria pessoa, transformar os indivíduos, transformar a espécie, passar desta espécie para outra. Quais são as finalidades dessa transformação? Se não há finalidades, não há razão nenhuma, não há uma razão fundamental para fazer uma transformação. Qualquer transformação tem de ser feita niilisticamente, só por fazer. Eu não quero falar muito da palavra niilismo, tem sido muito abusada. Se não há finalidades, se não queremos satisfazer as necessidades do ser humano, mas por outro lado parece que o ser humano tem de ser transformado, pode ser transformado e está a ser transformado; uma das coisas que se tem sempre de enfatizar é que há sempre uma grande tendência para que o seja tecnicamente possível seja implementado, de uma maneira ou doutra. As potencialidades técnicas não vão ficar assim numa espécie de limbo, vão ser efectivadas. Aliás, cito muitas vezes o físico quântico Murray Gell-Mann. Ele é autor de uma máxima muito interessante que de certo modo é emprestada daquelas máximas que havia nos anos 30 que diziam que num regime democrático o que não é proibido pode fazer-se; num regime totalitário, só há duas alternativas: ou a coisa é proibida ou é obrigatória. Ele diz: na física também. Ele diz que na física há uma espécie de totalitarismo, no sentido em que ou é impossível, de acordo com as leis da física, ou se é possível segundo as leis da física, tem de se realizar. [risos] Tudo o que é fisicamente possível, também é fisicamente necessário. Bom, um biólogo português distinto, muito influente e muito mediático, que encontrei quatro ou cinco vezes na vida, de todas essas vezes me falou da eutanásia. É curioso e é uma espécie de preocupação. E há várias pessoas da bioética que dizem que não só temos o direito de morrer eutanásico mas também temos um dever de morrer. Mais fácil se torna o suicídio assistido clinicamente, com a oportunidade, a facilidade, meu deus, pobres de nós, estamos a sofrer tanto, a agonia é terrível, não é só a oportunidade mas temos também o dever de morrer. Eu não estou a imaginar, estou a citar. Devo dizer que imagino muito pouco. Devo dizer que a minha imaginação é extraordinariamente limitada. Por isso leio tanta literatura científica. [risos] Coisas que nunca poderia imaginar que seriam pensáveis, imagináveis ou que uma pessoa normal, decente, enfim com sentimentos morais médios, pudesse formular a si próprio. Há claro aquela literatura sádica. Isso poderíamos dizer: É literatura. Quando os cientistas dizem essas coisas, não é literatura. Eles não falam de literatura, não se interessam por literatura, não viram isso na literatura. Pensaram por si próprios. Também há aqueles paradoxos, que é mais aparente na sociedade americana, que é quanto mais a pessoa envelhece mais há uma certa repugnância pela velhice, por ser velho. O exemplo banal é a cirurgia estética, mas há todo um leque de enhacement technology, tecnologias de majoração, para tornar as pessoas cada vez mais como se fossem de uma fase etária mais baixa. E cada vez mais há uma preocupação para as pessoas se tornarem mais bonitas. Alguém disse, um americano, que temos a sorte de viver numa época em que as pessoas são mais bonitas do que nunca [risos]. Nos anos 50 e 60, na ressaca do governo trabalhista, o igualitarismo, o racionamento, a equidade e tudo o mais, um escritor interessante, inventou uma fantasia que era a Justiça Facial. É injusto umas pessoas serem mais bonitas do que outras. Umas são muitíssimo feias, outras são extremamente atraentes, é injusto. Isto não tinha nada de eugenia. Até que ponto o igualitarismo pode levar, o igualitarismo moral, o igualitarismo político? Nessa fantasia, o estado decreta que toda a gente vai ser obrigada a fazer operações de cirurgia estética, para parecerem mais ou menos médios, em que ninguém é mesmo muito feio nem ninguém é muito atraente, tem de ser uma média. Agora vê-se na sociedade americana a preocupação de que toda a gente tenha uma beleza média boa. Em princípio começa-se assim, mas sabe-se que nunca se pára por aí. A elevação do nível moral, intelectual e estético das pessoas vai levar à perfeição. Num colóquio organizado pela NewScientist as pessoas começaram a falar das possibilidades, não da eugenia, mas da eufenia, a transformação fenotípica das pessoas e alguém exprimia vagamente o perigo da macdonaldização das aparências. E um bioeticista inglês, famoso, dizia – E porque não? As pessoas gostam, aliás, isso é uma das regras da avó, eu gosto de ter estudantes bonitos, mas não o são. [risos]
N – Está a falar de desejos humanos?
HM – Mas há uma dialéctica entre os desejos humanos e os constrangimentos sociais. Aquele que pensou que a única autoridade que podia fazer as pessoas conformar-se a um diálogo estético, ou aliás estético igualitário, seria o estado. Mas estamos a ver que as pressões do mercado, estão a levar as pessoas à corrida incessante para a majoração física e intelectual permanente, e, claro, para isso não há solução definitiva. As pessoas querem que os filhos sejam mais altos e mais bonitos, mais espertos, com melhor «capital genético» possível à nascença, superior à dos pais, o melhor que os super-alelos artificiais podem conseguir.
N – Mais inteligentes.
HM – Para que não sejam baixas, ninguém quer que os filhos sejam baixos, portanto pelas intervenções no feto ou nos genes pensam obter o tal mais, mas obviamente que toda a gente concorre pelos filhos mais altos, mais belos, mais inteligentes, o que deveras complica a coisa.
N – Claro, todos vão ficando mais altos...
HM: Aliás, mesmo os portugueses e os japoneses são mais altos hoje do que eram há dez ou vintes anos.
N – E na Idade Média, pelos vistos, os alemães tinham no máximo um metro e meio.
HM – Mas faziam tudo, faziam tudo, grandes obras. Mas está a ver, por um lado há as utopias estatais, intervenção estatal, mas aqui o mercado por si próprio também já é suspeito. E o mercado é livre, portanto a escolha é livre. O Robert Nozick, um filósofo político, já apresentava que a lógica da argumentação seria a de aceitar o mercado livre mundial dos genes para o Homem. Ou digamos, o supermercado genético, diríamos mesmo, um grande shopping center, em que qualquer pessoa, qualquer pai, o pai ou a mãe, pode escolher qualquer gene de qualquer parte do mundo, qualquer qualidade para injectar no futuro. Aliás, a coisa é interessante porque a lógica das transformações das tecnologias reprodutivas já estava a conduzir a esse resultado, o planeamento familiar que se falava entre aspas, um eufemismo para o controle do nascimento, agora as pessoas já podem escolher o pacote dos genes para o futuro bébé. Quer dizer, de certo modo toda a criança vai ser uma criança adoptada, pré-adoptada. É o ser escolhido. Posso escolher. Posso escolher tudo. Mas isso não resolve o problema fundamental que é que os nossos filhos não nos escolheram. A minha previsão é que as relações entre pais e filhos vão ser muito más nas próximas décadas, porque numa sociedade em que tudo é contratual, tudo é escolha livre e tudo é temporário, reversível, a microrelação misteriosamente irreversível, não escolhida dá-se com os nossos pais e irmãos...
N – A família.
HM – Sim, no sentido tradicional. Podemos escolher tudo, desescolher, substituir e não esperamos permanência em qualquer relação, nem podemos esperar, é tudo transitório, tudo reversível. Mas com os pais que diabo de relação é essa com os nossos pais? Mesmo que eles não nos tenham escolhido completamente, dentro do pacote de genes. Portanto a ciência embate aí com um constrangimento fundamental. Ainda não encontrei aí qualquer fantasia, qualquer solução para este problema.
N – Temos sociedades como Esparta em que os filhos nasciam e cresciam sem saber quem eram os pais, pelo que se tornavam filhos do próprio Estado, da comunidade. A família era a própria comunidade.
HM – Mas Esparta era uma pequena comunidade de guerra, portanto de certa forma decorria uma identificação muito forte com uma colectividade. Ninguém vai sugerir isso hoje porque... [risos] Nem posso dizer isso.
N – Se começam a haver filhos de multinacionais, por exemplo. Quem escolheu foi a multinacional, foram os gestores, os cientistas, os engenheiros, que escolheram os filhos. Estou a brincar...
HM – Eu escrevi um artigo sobre a mercantilização das universidades, a comercialização das universidades. A linguagem do mercado está tão difundida hoje, que predomina a obsessão do mercado como paradigma exemplar, modelo, arquétipo de tudo. Qualquer diálogo é a falar de Deus como um empresário supremo. Isto é uma espécie de brincadeira, embora no século xix houvesse coisas assim. Adivinhe a minha surpresa quando no último número da revista Economia Pura, há uma recensão de um livro já de há dois ou três anos de um professor de Economia da Universidade Católica, onde ele diz literalmente que Jesus Cristo foi o maior empresário de todos os tempos. A minha imaginação é tão pobre que não tinha imaginado que alguém o dissesse literalmente, com todas as palavras. E não é formalmente um lunático, ou um imbecil, trata-se de um professor catedrático da Universidade Católica Portuguesa. Depois de tantos séculos, finalmente a igreja católica já baptizou o capitalismo. É muito tarde para ser baptizado, é um baptismo de adulto. Não foi durante o crescimento.
N – Aliás, a única vez que Jesus se passou, que a gente saiba, foi exactamente na sua visita inaugural a Jerusalém quando vê o mercado à frente do templo e desata a destruí-lo.
HM – Pergunte ao professor. Eu nunca diria uma coisa dessas. A imagem de Jesus não tem nada a ver com isso, mas com muitas outras coisas que deveriam ser mais importantes. Mas para um católico praticante não sei, não sei. Bem, deixemos isso. A propósito dos filhos, a nossa sociedade está tão dissolvida em relações transitórias, episódicas, reversíveis, casuais, que é curioso que tendo ainda pais, temos uma relação para toda a vida, irreversível, permanente. Podemos recusá-la, obviamente. Nos Estados Unidos já há um instituto legal. Há o caso de uma criança em que o juiz reconheceu a não paternidade do pai. É um caso curioso, o pai tinha matado a mãe do filho e tinha ido para a prisão e continuava a querer controlar o filho, embora o filho vivesse com uma nova família de acolhimento. O filho não aguentou aquilo e pediu ao tribunal para anular a paternidade. Mas claro, de certo modo é um fenómeno secundário. Há uma assimetria aí que não conseguimos abolir tecnologicamente, uma «seta do tempo» humano não-dominada, mesmo que os físicos nos digam que a seta do tempo é ilusória. Mas é excepcional, porque todas as relações hoje são contratuais, ou quase contratuais, sem nenhuma perspectiva de permanência, não a podemos esperar, estatisticamente e mesmo moralmente. Aliás, não podemos esperar moralmente que a outra pessoa tenha uma relação para connosco, pois é já uma violação das expectativas de liberdade e de autonomia [risos]. E a relação com os pais é uma coisa curiosíssima. Há ainda a pretensão de que existe uma relação com a pátria, com a terra. Mas já estão mais fracas, muito mais fracas.
N – É importante a existência de uma língua.
HM – Extremamente importante.
N – Há pouco disse que se interessava pelas catástrofes, a reacção das pessoas às catástrofes, podia esclarecer melhor do que se trata?
HM – Já publiquei um texto sobre isso, em parte inspirado pelo trabalho clássico de um sociólogo bem conhecido, o Sorokin, que escreveu um livro sobre as calamidades precisamente nos anos 40, em 1942, durante a Segunda Grande Guerra. O que também me interessou nele foi que tinha sido prisioneiro político no regime Tsarista alemão várias vezes e depois foi prisioneiro politico no regime bolchevique e conhecia muito bem o que tinha acontecido à paisagem soviética. Depois ele emigra para a Checoslováquia e a seguir para os Estados Unidos. Portanto, ele tinha conhecido crises politicas, revoluções, fomes, epidemias, exílios, prisões políticas, e depois publicou um livro em 1942, em plena segunda guerra mundial, que foi uma catástrofe com toda uma série de catástrofes dentro dessa guerra: etnocídios e o genocídio do Holocausto e depois a bomba atómica que, de certo modo, também foi uma catástrofe para a humanidade. Ele procurou sistematizar os grandes tipos de calamidades, não uma tipologia exaustiva, mas procurou classificá-las: as fomes, as epidemias, as guerras e as revoluções. Eu procurei estudar isso e procurei ver como essas questões se colocam hoje, no princípio do século xxi, e procurei relacionar isso também com os meus estudos sobre a tecno-ciência. Por um lado, todas as epidemias estão hoje relacionadas indirectamente com as transformações tecnológicas, as guerras são guerras tecnológicas do principio até ao fim, o fenómeno do terrorismo também está relacionado com o fenómeno tecnológico, as forças de segurança, e por aí fora. Mas deve-se também relacionar isso com a crise ambiental global e com a crise da biodiversidade, que de certo modo é uma catástrofe biológica, induzida por nós, portanto uma crise antropogénica, não só o que nos acontece mas o que fazemos acontecer aos outros. Estas grandes calamidades estão cada vez mais endogenizadas também por transformações tecnológicas em curso, em que as potencialidades de catástrofes estão relacionadas com as nossas visões do que pode acontecer devido aos meios tecnológicos potentes, ou seja, o impacto das novas tecnologias agro-económicas, agro-industriais sobre a biodiversidade e o mundo da vida em geral, além dos factores antropogénicos que podem estar a ser responsáveis por uma parte, só uma parte, das alterações climáticas globais que estão em curso. A potencialidade de calamidades parece-me um objecto importante.
N – E a relação íntima, mesmo perversa dos média com as calamidades?
HM – Os sociólogos falam sempre da construção social das calamidades, o que é uma expressão ambígua que pode sugerir que não há calamidades, há só imagens ou representações de coisas que se parecem com calamidades, o que não parece ser o caso. As fomes são bem reais, as epidemias são bem reais, as pandemias também são bem reais, a extinção das espécies também é um fenómeno bem real.
N – Vamos assistir à conversão da biodiversidade numa biotecnodiversidade?
HM – Por mais que se faça, os substitutos tecnológicos para as coisas vitais a médio prazo podem ser sustentáveis mas a longo prazo são insustentáveis.
N – O que acha das relações arte/ciência?
HM – A ciência nada tem a ver com a arte, mas a arte tem muito a ver com a ciência. Estou a exagerar. Há um interface em termos de representações. A ciência é hoje uma ciência de simulações e portanto de representações. Quando se fala de representações, têm que existir facetas que podem ser relacionadas com os actos, com os modos artísticos de pensar, etc. Mas uma coisa que também me preocupa é a falta de cultura geral dos cientistas hoje, e a hermetização da ciência, da educação científica. Antes os cientistas mais talentosos tinham relações com os meios artísticos, os meios literários, as boémias, as tertúlias e coisas assim. O Einstein frequentava aqueles meios de radicalismo social e cultural. Até ao fim da vida usava sandálias. Hoje é difícil ver isso, não sei. É um fenómeno geral. Muitos dos mais jovens nas ciências sociais são pessoas, por exemplo, sem qualquer formação histórica ou filosófica. Preocupa-me realmente o que vai acontecer com esta hiper-tecnicidade dos jovens cientistas sociais. Receio o que isso vai dar, porque me parece uma receita para a esterilidade. Há toda uma geração de intelectuais portugueses na camada dos quarenta, cinquenta ou sessenta anos com interesses históricos, filosóficos, analíticos, mesmo estéticos, artísticos, que não parece ser representada nas gerações mais novas. Os professores que hoje ensinam também já só querem bmw´s topo de gama, isto não é imaginado, é um facto.
N – E as mulheres na ciência?
HM – Essa é uma questão interessante, no Reino Unido são predominantemente mulheres que vão para a biologia. E para medicina também há uma percentagem cada vez mais alta de mulheres, embora desistam muito, não acabam o curso. Já há vinte, trinta anos discute-se a questão: Que diferença vem introduzir a participação maior das mulheres na investigação, por exemplo, nos tais domínios da biologia? Até hoje não temos uma resposta clara ou a resposta é, introduziram pouca diferença ou nenhuma. O que de certo modo é uma pena, de facto podiam induzir certas diferenças interessantes...
N – Também pode ser porque a ciência não tem sexo...
HM – As feministas sempre disseram que a ciência tinha sexo. E isto não só vindo de mulheres feministas, pois os sociólogos feministas diziam que a ciência era sexista e que só uma muito mais elevada participação de mulheres na investigação é que poderia fazer a diferença.
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Depois da entrevista, sentimos que algo nos escapara e tentámos reparar a nossa desatenção enviando uma última pergunta por e-mail ao Hermínio Martins, e qual não foi a nossa estupefacção quando escassos dias depois recebiamos em vez de uma resposta, um verdadeiro ensaio que seria imperdoável não partilhar com os leitores da nada.