Herwig Turk e Paulo Pereira têm desenvolvido um
projecto artístico a vários títulos excepcional, com a peculiaridade de
ser protagonizado por um artista plástico e um biólogo. Trata-se de
um trabalho de co-criação deveras singular no cruzamento
arte / ciência, tendo como eixo a percepção. Partindo de um olhar com
um certo cariz documental e etnográfico, algo afim ao trabalho de campo
levado a cabo dentro dos laboratórios de ciência por antropólogos e
sociólogos, rapidamente percebemos que esse ponto de vista é
subvertido. Paulo Pereira gosta de se referir a «Retratos da Vida em
Laboratório». Com este projecto, em construção, têm explorado aquilo
que gostam de caracterizar como regiões de fronteira, onde ocorrem
sobreposições de territórios disciplinares, e para isso têm construido
uma linguagem poderosa a partir do uso da fotografia, do vídeo, da
escultura e da performance. — Entrevista por João Urbano
NADA — Podias, Herwig, dar-nos uma panorâmica do teu percurso antes de chegares a Portugal?
HERWIG TURK — Faz sentido falar sobre os meus
projectos artísticos antes de chegar a Portugal para poder fazer uma
ligação entre o antes e o depois. Estive a trabalhar na Áustria
principalmente com novas tecnologias, debruçando-me sobre o corpo e o
movimento e em especial estive sempre interessado em questões ligadas à
medicina e à clínica. Fiz algumas instalações sobre Imortalidade e realizei uma série de fotografias sobre genetechnology, que foram os Super-Orgãos. Acho
que este trabalho teve continuação em Portugal, agora com um pendor
muito mais intenso nesta troca entre arte e ciência e arte e medicina.
Estou interessado em compreender como estes dispositivos institucionais
ou técnicos estão a influir no processo de conhecimento.
N — A tua fase Austríaca decorre entre que datas?
HT — As primeiras animações em computador datam de 1992; os Super-Orgãos foram realizadas em 93–94; as instalações sobre Imortalidade em 95–96. Fiz também uma exposição em 97 num hospital de Roterdão e posteriormente, em 98, apresentei o Referenceless Photography.
N — Tu trabalhavas isoladamente ou tinhas um grupo?
HT — Desde 89 que faço exposições sob o rótulo
«Herwig Turk». No entanto, em Viena tive sempre um grupo de pessoas à
minha volta com as quais era possível trocar ideias e discutir alguns
conceitos. Éramos não apenas artistas mas também organizadores,
curadores e técnicos ao mesmo tempo. Muitas vezes não era claro onde
começava e acabava a prática artística e todos contribuíam para os
projectos de cada qual. Criámos muitos projectos em rede (networking)
sob o rótulo HILUS até 1996. Depois tive um projecto maior, onde juntei
27 pessoas de vários países, para reflectir e discutir sobre o esquecimento como um processo quase patológico na nossa cultura, mas que está também muito presente no nosso quotidiano
N — Esse esquecimento teve algo haver com a
História relativamente recente da própria Áustria? Estou a referir-me
em especial ao fascismo.
HT — Foi obviamente um tópico dentro do grupo,
porque o esquecimento na Áustria é um tabu. Não podes esquecer. Tens
sempre de lembrar. Só que na verdade nunca te podes lembrar porque o
mecanismo de rememoração altera o acontecimento original, por assim
dizer. Tens sempre imagens sobre imagens. Tens um processo de diluição
do acontecimento inicial. Nunca tens o original. Tens uma cópia, uma
variação. Aliás, acho que o problema dos monumentos é esse. Ao
erigires um monumento estás automaticamente a esquecer o evento
original, ou, melhor ainda, com a criação do monumento instalas um novo
incidente. E nós estávamos muito interessados em isolar o processo de
esquecimento ao encontrar um acto de esquecimento activo ou uma coisa
sobre a qual pudesses falar.
N — As tuas preocupações com a medicina e com a clínica vêm donde?
HT — Durante muito tempo pensei que era uma
mera coincidência, mas na verdade não o é. Quando era criança fui
sujeito a várias operações. Por volta dos três, quatro anos estive
pela primeira vez internado numa clínica durante três semanas por causa
do meu olho, a seguir fui operado aos seis anos, e mais duas com
dezoito, dezanove anos, e não consegui andar durante dois anos. Entendi
que estes processos são muito graves e que estás muito dependente das
instituições de medicina. Por exemplo, quando tive o meu problema com o
joelho a única coisa que eu tinha na mão era um raio-X e o primeiro
médico a que recorri disse-me que eu já não tinha cartilagem no joelho e
que devia de ser operado, enquanto o médico seguinte me disse para não
se tocar no joelho, que era melhor esperar, provavelmente em cinco
anos o joelho voltaria a funcionar. Depois de consultar três médicos,
eu e os meus pais decidimos que íamos fazer a operação. Durante o ano
seguinte fui sujeito a duas operações muito delicadas e nunca recuperei
a 100%. Tive várias complicações. Isto foi muito interessante para
mim, na medida em que fui obrigado a alterar completamente a minha
vida. Tornei-me um inválido. Nessa altura ingresso na Academia das
Belas Artes de Viena e percebi que podia levar a vida para a frente,
mesmo tendo de deslocar-me em canadianas, etc. Nessa altura era uma
incógnita a minha evolução clínica, se ia melhorar ou não. Tudo correu
pelo melhor, mas tenho a consciência que tudo podia ter sido diferente.
Quando tu entras no hospital como um paciente, deixas de ter o
controle da situação, entregas-te na mão de um dispositivo feito de
aparelhos, peritos, etc. A anestesia foi, quanto a mim, uma experiência
fundamental. Eu, com dezoito anos, tinha já sido quatro ou cinco
vezes anestesiado, e foi sempre algo incrível. Eu lembro-me muito bem
do momento em que a anestesia começava a actuar (o anestesista diz
sempre que tu tens de contar um, dois, três, e por aí fora.) e, num
espaço de tempo muito curto, as tuas imagens oculares mudavam e parecia
que estavas diante de um televisor sem sinal. Isto para mim foi algo
muito importante.
N — E quando chegas a Portugal...
HT — Quando vim para Portugal eu pensava que ia
deixar de fazer arte, estava um pouco farto, sentia já algum desgaste e
alguma erosão em relação ao que fazia em Viena. Portugal tem um bom
clima, vou fazer coisas diferentes, pensei. Mas depois, quando
encontrei o Paulo fiquei muito curioso com o que se passava no
Instituto de Oftalmologia onde ele investigava. Essa área científica
sempre me interessara. O Paulo trabalha em oftalmologia e também em
biologia molecular. Eu tenho dois tios que são físicos atómicos, um
deles muito conhecido, que esteve em Los Álamos, e sempre gostei imenso
de conversar com eles. Não que eu compreendesse tudo o que me diziam,
mas eles eram pessoas muito particulares e tinham um conhecimento
sobre muitas coisas invisíveis e no meu mundo, vivia numa pequena
cidade da Áustria, nunca tivera acesso a esse conhecimento. O
conhecimento científico para eles não tinha a mínima importância. Eram
muito atrasados. Eu fiquei fascinado com essa comunidade que se
dedicava a analisar coisas invisíveis num nível de especialização e de
conhecimento muito elevados. E achei que isso tinha também uma ligação
com a arte.
N – O teu encontro, Paulo, com o Herwig ocorreu quando?
PAULO PEREIRA– Em 2003. Há seis anos.
N– Não te vou pedir para me contares a
história da tua vida mas o que é que te motivou a trabalhar com o
Herwig? É que a vossa parceria é peculiar. Habitualmente um artista
quando trabalha com um cientista, este fica na sombra, não passa de um
facilitador e está longe de adquirir o estatuto de criador ou de
co-autor. Mas vocês têm uma verdadeira parceria criativa e conceptual.
PP– No início, como há pouco dizia o Herwig,
houve alguma curiosidade para explorar territórios que eu conheço
menos bem e a intersecção com a arte criou essa oportunidade. Eu acho
que só vale a pena falarmos se tivermos alguma coisa para dizer. Muitas
vezes queremos dizer coisas mas não temos formas adequadas de dar
expressão às coisas que precisamos de dizer; e o encontro com o Herwig
criou aqui também uma nova oportunidade ao nível da linguagem.
N– De alguma maneira tinhas já um interesse por matérias extra-cientificas, por assim dizer, em especial a arte?
PP– Parece-me que actualmente, na ciência, se
criou uma espécie de hiper-especialização e as pessoas confinam o
âmbito do seu estudo a coisas infinitamente pequenas, acabando por
saber quase tudo sobre quase nada. Eu sempre tive alguma curiosidade
sobre a natureza dos procedimentos que servem de suporte à ciência e
sobre a ligação destes mesmos procedimentos ao resto do mundo. Como é
que se relacionam?, como é que se integram?, para que é que servem?,
porque é que são importantes as coisas que dizemos que são
importantes?, e quem é que decide o que é importante? Por outro lado,
encontras na arte uma forma legítima de dar expressão a coisas que a
ciência, pela natureza dos seus próprios procedimentos, não te permite.
A ciência adopta necessariamente procedimentos e metodologias de rigor
e de normalização. A ligação à arte e ao Herwig permitiu-me, de
alguma maneira, dar voz e corpo a uma certa inquietação e a um certo
desconforto que eu sentia. Esta ligação permitiu-me explorar, se
quiseres, um território que não se limitava a facilitar o acesso de um
artista a um local de produção de ciência. Tratou-se, de facto, de
fazermos alguma coisa em conjunto, alguma coisa cujo resultado não
fosse o de um artista que tem acesso à ciência nem fosse o de um
cientista que quer aproveitar a arte para promover a ciência. Não
queríamos mais promover de forma explícita ou encapotada, uma espécie
de discurso panfletário para fazer a apologia da ciência e dos seus
procedimentos. Acho até que muitas vezes esta apologia é feita de uma
maneira um bocado excessiva e descontrolada, se quiseres. Portanto,
esta questão de perceber melhor qual é a ligação da ciência com o
resto do mundo e podermos socorrer-nos da arte para ajudar à resposta,
foi o que despoletou esta colaboração. Eu tenho, desde há algum tempo, a
impressão de que, na história recente, a ciência é um bocado arrogante
e a arte autofágica, o que é uma combinação que proporciona algum
autismo e não favorece a comunicação. Entendo, também, que se quiseres
fazer isto de uma maneira séria tens de ir para o terreno. Tens de
desenhar um projecto em conjunto que possa denunciar esta dificuldade e
simultaneamente traduzir esta necessidade de nos compreendermos melhor
um ao outro e de criarmos, pelo caminho, uma linguagem que não é nem
uma linguagem da ciência nem uma linguagem da arte, mas que existe num
território mais ou menos híbrido—eu não gosto de dizer híbrido porque é
actualmente uma palavra um bocado abusada. É a ideia de um ecótone,
que são regiões de sobreposição e transição entre territórios ou
ecossistemas diferentes. São regiões de diversidade improvável. Por
exemplo, na transição entre as cidades e ambientes selvagens podes
encontrar inesperadamente um tigre ou um leão. Esta zona de transição,
este ecótone, criou, na minha perspectiva, um território
propício a esta experimentação com o Herwig. Como é que podíamos
documentar esta espécie de inquietação que cada um de nós sentia? O
Herwig já explicou o seu fascínio pelos aspectos mais ou menos
secretos, mais ou menos ocultos, mais ou menos invisíveis, da ciência. O
mesmo se passa comigo em relação à arte, de alguma maneira. Como é
que eu posso, em conjunto com um artista, dizer alguma coisa que a
ciência, no âmbito razoavelmente restrito da sua linguagem, não me
permite dizer? A linguagem da ciência é muito reduzida. A linguagem é
reduzida, os procedimentos são muito padronizados, muito
estandardizados. E se é certo que isso te dá uma grande eficácia,
também te impõe limites e constrangimentos diversos. Há limitações do
ponto de vista do discurso, das ideias e da exploração de uma coisa
que, no nosso caso, tinha de ser outra, tinha de ser diferente. O
objectivo não era o produto final. Não queríamos produzir um objecto
que deslumbrasse o espectador. Interessava-nos o próprio processo e
tivemos necessidade de o criar. Eu acho que é também aqui que reside a
diferença da nossa abordagem. O Luís Quintais costuma referir-se às
«qualidades encantatórias» dos objectos científicos. São coisas
reluzentes. São coisas sobre as quais é possível sentir algum fascínio
e alguma sedução porque nunca se mostram completamente. Nunca vês
tudo. O nosso objectivo era também desmontar isso. O que é que está por
detrás do brilho? O que é que se esconde por detrás da sedução do
brilho? Afinal, nem tudo o que brilha é ouro. Não queríamos, por isso,
fazer um aproveitamento desleal dessas qualidades encantatórias dos
objectos científicos. Queríamos criar e dizer, em conjunto, alguma
coisa que fosse mais do que a soma dos dois. Para mim foi uma
oportunidade de poder dizer coisas que talvez não pudesse dizer de
outra maneira. Não sei se as consegui dizer ou se as conseguimos em
conjunto dizer, mas foi uma oportunidade de criar um processo. Foi uma
oportunidade de pensar como é que podemos retratar a vida no
laboratório, as coisas visíveis e invisíveis de que é feita a ciência. O
Herwig falava ainda há pouco nos raios-x, nas imagens e na
legitimidade dos seus intérpretes, o que, de algum modo, nos permite
também questionar a autoridade da ciência e as suas formas de
legitimação. Parece-me que se atingiu um ponto em que és inundado por
um vasto conjunto de informação de todos os tipos (tsunamis, escândalos
políticos e crimes vários) e no meio de tudo isto dizem-te que se
descodificou o genoma humano ou que se podem fabricar orelhas humanas
num rato. E habituámo-nos todos a ser crentes em relação a estas coisas
e obedientes em relação a quem conferimos a legitimidade de saber
mais. Por todas estas razões estava também presente, na nossa
abordagem, a questão da autoridade da ciência. Esta tentação de ver o
que está por detrás destes véus e destas opacidades que há nas diversas
áreas disciplinares da ciência. E é importante saber denunciar o que
vês ou sabes existir de uma maneira que não seja agressiva socialmente
e que não crie tensões desnecessárias. Questionar de uma forma serena
mas séria o que está por detrás da ciência e perceber o que move os
seus protagonistas. O que é que os faz correr e o que é que os faz
parar. Porque a ciência tem determinantes políticas. Há toda uma teia e
uma malha social, política e económica por detrás da ciência a que é
importante, de alguma maneira, dar visibilidade. Só isso. Quando
fazemos algumas destas exposições que questionam a percepção, a
autoridade, a legitimidade, tem um bocadinho também a ver com a
intenção de tornar visíveis muitas destas determinantes sociais,
políticas e económicas.
N– Turk, apresentaste recentemente o
projecto, O Laboratório Invisível, que de certa forma é a continuação
do Blindspot. Ambos os projectos se imbricam um no outro, qual work in
progress. O que é que pretendes explorar com este projecto em parceria
ou co-autoria com o Paulo?
HT– Para mim era muito importante desenvolver
uma técnica, uma sistemática diferente e aprender coisas do sistema
científico. Verifico agora que o Paulo teve uma grande influência no
meu trabalho mais recente. Entretanto surgiu um outro problema, porque
agora tenho receio de fazer trabalhos que não possa explicar ou que
não possa formular rigorosamente. E essa falta de explicação e
clarificação exaustiva, sendo um grave defeito na área cientifica, é,
por outro lado, uma coisa muito rica nas artes plásticas, uma coisa
central. Na última exposição percebi que tinha aprendido muito e mesmo
sido contagiado por esse rigor e que, se calhar, estive a desenvolver
coisas demasiado didáticas, demasiado ilustrativas e ligadas com o
nosso discurso, e sinto um bocado a falta do enigma, algo que tu sintas
mas que não possas traduzir em palavras, um tacit knowledge,
em que instalas uma relação física e emocional com a peça e tens várias
ligações com isso sem ser só esta coisa racional passível de ser
traduzida em palavras ou em conceitos rigorosos. É muito complicado de
explicar. Antigamente fazia coisas e estava muito seguro ao fazê-las,
porque acreditava que a coisa estava certa mas sem conseguir explicar
com grande pormenor porquê. Agora, quando tenho a certeza de que devo
fazer uma coisa, põe-se logo a questão de como a posso explicar ao
Paulo, de que ele a não vai entender, e que para o mundo científico a
minha ideia ou certeza quanto ao que devo fazer é ridícula. Isto
dentro do nosso processo de trabalho é super interessante. Agora temos
de fazer um movimento de recuo, temos de brincar mais. Para mim foi
importante ter estado a aprender a limpar a linguagem, a reduzir as
metáforas e tudo isso, mas ficas com uma linguagem muito rígida, muito
reduzida, que de certeza não é a linguagem da arte. E é interessante
observar como o Paulo me influenciou. Na última exposição compreendi
que tinha estado demasiado ocupado com a maneira como os cientistas
podem entender e usar as peças que nós produzimos e afinal isso é
irrelevante. Nunca podemos pensar como é que as nossas peças vão fazer
sentido para os outros, sejam ou não cientistas. Se para nós dois as
peças, de alguma maneira, fizerem sentido, é o suficiente. Temos esta
linguagem entre as fronteiras, entre dois campos disciplinares que
tendo algumas semelhanças, são, no fundo, linguagens muito diferentes e
temos de aceitar que nunca podemos explicar tudo e que tens poucas
pessoas que vão entender o teu trabalho. Porque as pessoas das artes
plásticas são às vezes demasiado convencionais, às vezes não dispõem
ou não despendem o tempo que é necessário para aprender os tópicos
implicados na nossa obra e, por outro lado, nas ciências há poucos
cientistas que tenham algum conhecimento de arte contemporânea. Isto
faz com que sejam poucas as pessoas que entendem o nosso trabalho.
N– Que tópicos tens explorado, mesmo com essa linguagem reduzida, no teu trabalho interdisciplinar mais recente com o Paulo?
HT– Para mim a percepção do meu mundo, do meu
entorno, é a questão central. Às vezes tenho a sensação de que estou a
manipular a minha percepção. Tenho uma coisa muito subjectiva que
altera as coisas que estão a acontecer diante de mim. Ponho-me a contar
a outras pessoas o que estive a observar mas foi outra coisa que
aconteceu. E nesse encontro entendes que tu mesmo fizeste isso. Como se
a tua realidade fosse completamente desligada da realidade dos outros.
A ciência tem a tendência para tentar encontrar uma ideia geral
(realidade objectiva), uma ideia que podes aplicar em qualquer lado,
uma coisa universal. A arte contemporânea está muito preocupada com a
subjectividade, com o território individual, com o tempo em que as
coisas estão a acontecer, e por isso não precisas de uma explicação
geral ou universal. Não estou muito satisfeito com essa posição da
arte. Eu, mesmo sendo este indivíduo, quero fazer uma coisa que vá um
pouco mais longe. Com duas cabeças, no mínimo, temos de nos entender e
temos de desenvolver uma linguagem universal para nós. E isso é um
potencial que não tinha quando trabalhava sozinho.
N– Para ti, Paulo, como é que passaste, de
algum modo, a tua linguagem científica para a da arte e como é que tu
te libertaste daqueles constrangimentos que o trabalho científico
implica e de que modo é que isso acrescenta alguma coisa à arte?
Finalmente como é que depois dessa experiência tu voltas a olhar para a
ciência? A ciência não sofre com esse deslocamento?
PP– Essa é uma pergunta relevante, que as
pessoas tendem a fazer e à qual não costumava ser muito fácil responder
mas vai sendo cada vez mais claro à medida que tenho tempo para ir
percebendo as implicações que isso tem para mim e também para as
pessoas que me rodeiam no laboratório. O Herwig está com frequência
connosco no laboratório a fazer as coisas mais variadas: a conversar, a
pedir para ver os cadernos de laboratório, a tirar fotografias aos
objectos ou a fazer retratos dos cientistas. É um processo que não me
envolve só a mim e acaba por envolver um grupo mais alargado de pessoas
que «vivem» no laboratório e que têm de abrir e mostrar a sua casa. Eu
tenho constatado, inicialmente com alguma surpresa, que isto, de
alguma maneira, altera a forma como os cientistas olham para os seus
próprios procedimentos. Da mesma forma que quando sabes que estás a ser
observado adquires uma espécie de hiper-consciência dos teus actos. E o
facto de o observador ali ser um artista, não é despiciente. As
pessoas percebem que há ali um território que se sobrepõe entre a
ciência e a arte. Um território que talvez nem soubessem que existia
mas onde percebem que é possível fazer coisas—ainda que frequentemente
de difícil apropriação. Por exemplo, os meus alunos de doutoramento e
as pessoas que trabalham comigo no laboratório—são ao todo talvez umas
quinze pessoas—estão habituados a ver um artista partilhar com eles o
espaço, nos laboratórios, nos corredores, estão habituados a que
apareçam pessoas a instalar câmaras e luzes e gostam de participar.
Sentem que talvez saibam mais e que «A» ciência talvez seja mais do
que a ciência que eles fazem. E mais do que isso, trata-se também de
alguma coisa que está para lá das paredes do laboratório. O facto de
teres alguém como o Herwig, de teres um artista que documenta a
produção de ciência, esta ideia de retrato da vida do laboratório,
interpretado e de alguma maneira também exposto, altera a maneira como
tu olhas e percebes as múltiplas dimensões daquilo que fazes. Isto não
significa que o cientista vá descobrir alguma coisa nova como
consequência desta abordagem ou que o faça mais depressa. Mas se
perguntares se vamos com isso ser melhores cientistas, se vamos criar
uma cultura de gente que por ter esta interacção, esta interferência,
esta fertilização, vai pensar a ciência de uma maneira diferente, a
minha resposta só pode ser sim, absolutamente. Começas inevitavelmente a
pensar o que fazes numa perspectiva muito mais global. Um exemplo
concreto tem a ver com esta peça aqui, com este modelo de uma conexina,
uma proteína membranar que faz a comunicação entre as células. Eu
lembro-me do Herwig pedir às pessoas para ver os seus cadernos de
laboratório e as suas notas, não sendo muito certo que tipo informação
útil podia retirar daí. Os investigadores desenham frequentemente
esquemas, diagramas e modelos nos seus cadernos, para melhor
interpretarem os resultados das suas experiências. O Herwig encontrou,
num dos cadernos, uma coisa parecida com esta (a peça é a transposição
de um diagrama de uma conexina para uma escultura em grande escala).
Na verdade isto não são mais que construções que tu fazes, moldadas
pela pessoa que tu és e que incluiu todas as tuas limitações,
expectativas, aspirações de que não te consegues despir. É aquilo a que
o Herwig por vezes se refere como a poluição humana no processo
científico. Um lado emocional onde perdes alguma objectividade.
Enquanto cientista precisas de ferramentas que te ajudem a pensar numa
proteína, talvez possas pensar numa proteína como uma abstracção, mas
não é útil. Precisas de fazer esquemas, precisas de modelos que possam
ir evoluindo à medida que fazes o teu trabalho e sabes mais. Mas é
também verdade que os teus modelos—sempre que os fazes—têm de fazer
sentido na tua cabeça. São uma ferramenta de conforto que te ajuda a
perceber o mundo. Também por isso estes modelos implicam um grande
investimento e com frequência são sobre-investidos. É por isso
inevitável que esses modelos alterem a maneira como tu percepcionas e
pensas as coisas. Se calhar, o facto desta representação / escultura
estar fora de escala e ser vermelha—que corresponde, aliás, ao que
estava desenhado no caderno do Steve—pode levar-te a pensar que uma
proteína tem aquela forma e aquela cor. Por outro lado, esta
representação obriga-te a pensar numa coisa muito importante: de que
maneira é que tu usas os modelos para dar expressão e corpo a uma ideia
e, reciprocamente, de que maneira é que o corpo, a forma, a cor que tu
atribuíste a essa representação determina a maneira como tu constróis
e interpretas a tua experiência. Porque os modelos são sempre
visualizações úteis da realidade. Mas, necessariamente, visualizações
reduzidas, que correspondem a uma parte da realidade. Podes perceber de
que maneira a construção de modelos determina aquilo que tu vais fazer
a seguir. De que maneira é que aquilo que eu vou fazer pode ser
moldado e determinado pela antecipação e pelo investimento emocional
que resulta do meu apego ao modelo que eu fiz? E esta é uma questão
importante e que acontece na ciência, porque sendo feita por pessoas
ninguém tem um distanciamento tal que permita uma objectividade total
em relação ao que se faz no laboratório. Deixas que uma certa forma de
pensar um mundo, que te parece carecer de ordem e sentido, interfira
com a neutralidade e isenção que devias ter para melhor compreenderes
um mundo que é mais complexo e mais aleatório do que muitos de nós
gostaríamos de pensar. Entre o que acontece e aquilo que és capaz de
perceber tens os teus próprios modelos a segredarem-te qual o
pensamento mais conveniente, aquele que melhor cumpre com as tuas
antecipações—aquilo que é um resultado válido e aquilo que não é um
resultado válido. Numa certa perspectiva—talvez excessivamente
didática—é também importante perceber o entorno social do trabalho dos
cientistas e perceber que muito do que fazem não se confina ao espaço
limitado do laboratório, não se esgota aí, tudo isso tem ramificações
complexas. Ainda assim a ciência tem-se, de alguma forma, mantido em
territórios fechados e inacessíveis. Parece-me mesmo que parte do
fascínio mais recente pela ciência, nomeadamente por parte da arte,
tem, de alguma forma, que ver com esta transgressão. Há um apelo quase
irresistível na ideia de explorar territórios inatingíveis, vedados,
selados. A maior parte das pessoas não tem oportunidade de entrar num
laboratório, pelo que não pode perceber o que se passa lá dentro. Não
podes falar com os cientistas e perceber facilmente os seus objectos de
estudo ou as razões que os levam a investigar as coisas que
investigam. Não percebes porque é que aquilo é importante. Não se
trata sequer dos cientistas cultivarem ou promoverem esse
distanciamento. Não sabem é fazer de outra maneira. Não consegues
encontrar uma forma de traduzir adequadamente aquilo para fora dos
laboratórios. O facto de termos feito a exposição, O Laboratório Invisível,
no Museu da Ciência em Coimbra, parece-me que foi, neste sentido,
bastante útil e relevante, não só no contexto do nosso projecto como
também na forma como percebes o papel que pode ter um Museu da Ciência
contemporâneo. Se tu olhares para a grande maioria dos Museus da
Ciência, o que é que lá vês? Vês coisas, geralmente objectos, que
acompanham a história da Ciência, vês instrumentos, porventura
documentação histórica, vês microscópios desde o séc. xvii, e
eventualmente nos museus mais modernos até tens uns gadgets,
umas coisas mais ou menos interactivas, muito na linha dos jogos
pedagógicos para crianças do Ciência Viva. Tudo isso pode ser muito
útil para um público juvenil. No entanto, se quiseres explicar a um
público mais erudito as coisas que acontecem dentro de um laboratório,
porque é que a ciência é importante, como é que tem melhorado ou
piorado as nossas vidas, não tens ferramentas ou mecanismos adequados
para o fazeres. Bem sei que há um conjunto de gente de áreas
disciplinares diversas a preocupar-se, e bem, com estas coisas, e há
muitas teses que se podem escrever e efectivamente se têm escrito sobre
isso, mas é verdade também que têm uma divulgação muito limitada.
Portanto, se tiveres uma exposição, como esta, num museu que obrigue as
pessoas, de uma maneira um bocadinho indirecta a pensarem (não
precisam de encontrar uma resposta) e a questionarem-se sobre o que se
passa dentro dos laboratórios, porque é que isso é importante, onde é
que acaba o cientista e começa o equipamento, quem é que decide o que é
que se faz, tudo isso, de alguma maneira, serve um propósito e
corresponde a uma maneira enriquecedora de pensar—talvez
criticamente—sobre a ciência. E actualmente não é fácil tu
documentares isso. Como é que explicas o que é hoje a ciência? Tu
entras num laboratório e o que é que vês? Máquinas, caixas pretas ou
brancas ou das cores mais variadas. Mas o que é que isso te diz sobre
os procedimentos? O que é que isso te diz sobre o que lá se passa?
Vamos fazer uma exposição de caixas que são completamente genéricas?
Como é que representas, por exemplo, o adn? Não só a molécula e a
estrutura mas tudo o que significa actualmente a referência ao adn.
Por exemplo, nós mostrámos no Laboratório Invisível uma peça
sobre o adn. O que fizemos foi traduzir uma sequência de adn em som.
Porque é que não podes traduzir o adn em som? O adn o que é? É aquela
escultura inspirada no modelo do Watson e Crick com a dupla hélice que
podes ver em Cold Spring Harbor? É assim que é o adn? Não sei.
Parece-me que é uma das muitas maneiras de o representar. Mas a verdade
é que também pode ser som, pode ser uma escultura de luz, pode ser uma
outra coisa. O que nós procuramos, com estas peças, é produzir
iniciadores, coisas que iniciam alguma reflexão e te dão pontos de
apoio para questionar a natureza das coisas. Foi importante decifrar o
genoma humano, porquê? E porque é que isso aconteceu? E quanto dinheiro
é que se gastou? E o que é que se aprendeu com isso? E quanto melhor é
que o mundo está agora? Nunca ninguém viu dentro de uma célula o adn
com a forma daquela escultura da dupla hélice. Aí há todo um nível de
entendimento em que é importante confrontares-te com os próprios
limites e as contingências dos teus modelos. De que maneira é que isso
depois interfere com a tua maneira de pensar sobre o teu trabalho? Para
mim este projecto foi muito importante e criou esta e outras
interferências que acabaram por ser produtivas. Porque a ciência é
bastante mais do que o conhecer ou aplicar o método experimental. As
perguntas muitas vezes ingénuas, naives, do Herwig, acabaram por me obrigar a pensar sobre coisas com as quais provavelmente não teria que me confrontar.
N– Existe então uma espécie de cegueira no trabalho dos cientistas?
PP– Absolutamente. Por excelência. Se há área
onde essa cegueira é dominante é na ciência. Tu tens uma autoridade bem
definida e isso basta-te e não tens que sair dali. Era também por
isso que te falava há bocado da arrogância da ciência. Os cientistas,
quer individualmente quer ao nível dos decisores políticos, não sentem
necessidade de explicar nada a ninguém. É, entre outras coisas, uma
questão de autoridade e de legitimidade. Mas na arte também é um bocado
assim. Só que há sempre quem pense que se calhar a arte não é tão
importante, porque não é vital. Mas é vital. De uma maneira mais
directa ou indirecta é vital. É uma pulsão, é uma coisa que é
fundamental e faz parte da tua vida. Só que esta autoridade e estas
verdades, tanto da ciência como da arte, podem e devem ser
questionadas. Da mesma maneira que a arte não deve ser autofágica, a
ciência não pode ser arrogante, tem de saber partilhar e essa partilha
não se pode limitar a formas didáticas com o objectivo de motivar e
ensinar os miúdos da escola, que é outra vez a apologia da ciência pela
ciência e pelos seus próprios procedimentos. Tem que ser um questionar
mais amadurecido, mais crítico e mais criativo. E podemos pensar nisso
de várias maneiras.
N– Podes esclarecer melhor isso da arte autofágica?
PP– Era uma coisa que eu sentia e ainda sinto de
vez em quando. Trata-se de uma angústia grande por querer perceber
melhor e não perceber bem algumas das coisas que os artistas andam a
fazer. Muitas vezes parecem-me discursos que se consomem a si mesmos e
em si mesmos. Eles falam e não percebes nada do que estão a dizer ou
do que se está a passar. É como assistir a uma conversa entre dois
cientistas. Se ouvires uma conversa entre dois cientista podes passar
muito tempo sem perceber nada. São letras e números, números e letras,
sem uma gramática reconhecível, frases inacabadas, etc. Muitas vezes
parece-me uma não linguagem funcional. Eu, durante muito tempo, senti
essa espécie de exclusão em relação à arte. Obviamente que é também uma
coisa de preguiça. Há naturalmente formas de arte que carecem de um
discurso e que carecem de uma iniciação. São de acesso difícil para os
não especialistas e tu podes sentir-te excluído. Neste sentido a
ciência partilha com a arte a obrigação de se empenhar neste esforço,
para chegar aos outros de uma maneira que não seja meramente
pedagógica ou paternalista. É evidente que o acesso à arte dá trabalho e
que carece de iniciação. Nalguns casos, como no romance ou no cinema,
tens talvez referências mais reconhecíveis que facilitam o acesso.
Podes não perceber tudo, percebes que há coisas que não percebes, mas
entras lá para dentro. Em algumas formas de arte ou na música erudita
contemporânea (electroacústica e afins) os territórios estão como que
vedados aos não iniciados. Se se entende que é legítimo que a ciência
esteja vedada e isolada do resto da sociedade, já não se entende o
mesmo na arte. Eu acho que seria muito desejável que houvesse um
acesso, uma permutação e uma permeabilidade entre estas diferentes
áreas disciplinares. Faz tudo parte da mesma coisa. É evidente que é
mais fácil leres um romance e teres uma opinião sobre ele do que leres
um artigo cientifico e teres uma opinião sobre ele. Os públicos alvo
são distintos e aceita-se que não tenhas os conhecimentos para formular
uma opinião sobre uma matéria científica. Mas o acesso não te deve ser
vedado e devem existir formas alternativas de o fazer. Voltando ao
projecto com o Herwig, à relação da ciência com a arte e em particular
à nossa colaboração, podemos conhecer parte da linguagem um do outro,
mas, se calhar, isso não é suficiente, se calhar precisamos de
encontrar, como disse o Herwig, uma outra linguagem para poder dar
expressão a esta projecto que estamos a construir.
HT– Uma coisa fundamental entre arte e ciência é
que na arte a falibilidade também existe nos resultados. Tu tens
alguns projectos dentro de uma série que não resultam tão bem. E
provavelmente não tens uma explicação para isso. Na ciência tens de ter
certezas quando publicas, cada passo tem que ser justificado e cada
acontecimento é autónomo, está bem circunscrito e tem de ser válido.
Para mim, para a minha ideia da arte, provavelmente só daqui a dez anos
e em retrospectiva será possível compreendermos completamente as
dimensões diferentes do projecto que eu e o Paulo estamos a levar a
cabo e a sua validade. Isso vai fazer muito mais sentido do que os
subprojectos, pois só então o projecto no seu todo, em todas as suas
fases, revela a riqueza das suas articulações e da sua linguagem. Esta
é uma linguagem que brinca com a poluição, como nós costumamos dizer,
que é transmitir em vários canais uma informação. A corporalidade e
este tacit knowledge, este «conhecimento tácito» que tu não
podes muito bem traduzir em palavras ou teorias, existe. E penso também
que o mesmo ocorre dentro dos laboratórios. Os cientistas são pessoas
comuns, que têm muitas afeições em relação aos objectos, têm uma
percepção produtiva como nós. Eles já têm uma imagem dentro da cabeça
quando estão a olhar para as coisas e de algum modo tentam limpar essas
imagens prévias, mas têm sempre uma agenda, têm sempre um objectivo.
Para além disso, têm que fazer isto ou aquilo para obter financiamento,
etc. Existe um campo de negociação muito interessante, em termos
sociais, políticos, económicos, filosóficos.
PP– Há uma coisa importante em relação a isso
que talvez se possa questionar. Actualmente, como estava a dizer o
Herwig, uma das coisas à qual temos procurado dar corpo é esta espécie
de excessiva institucionalização e formatação do próprio procedimento
científico. Não fazes ciência sem dinheiro e portanto tens de submeter
os projectos a concursos, tens de concorrer a fundos da União Europeia,
da fct, das mais diversas agências financiadoras, e para o fazeres
tens de ter um projecto, e nele tens de dizer o que vais fazer, tens de
antecipar os resultados, tens de antecipar as implicações, tens de
fazer um orçamento, tens de antecipar a gestão do tempo e dos
investigadores envolvidos, os meios necessários, tens de saber o que
vais alcançar ao fim de três, quatro anos, como é que o projecto vai
contribuir para fazer avançar uma determinada área do conhecimento,
como é que vai contribuir para a internacionalização, para o bem estar
da sociedade, etc., etc. E há uma corrente que acha que esta é uma
péssima maneira de fazer ciência. É a maneira anglo-saxónica,
dominante, de fazer ciência. E algumas pessoas defendem, como a Blue
Sky Research, o financiamento de gente e projectos criativos fora do
«sistema». Porque se olhares para a História, se pensares no Einstein
ou no Fleming, não teriam grandes oportunidades de sucesso no actual
modelo de gestão científica, em que existe uma hiper-formatação de
todos os procedimentos. A liberdade de exploração científica de uma
forma mais criativa é uma coisa que tem sido completamente coarctada
por estas regras e espartilhos, por esta formatação, pela ideia de que
tens de ter uma hipótese e demonstrá-la por antecipação, de antecipar
mesmo o que pode correr mal. Não existe uma aposta na criatividade.
Suponho que na arte acontece uma coisa semelhante. Temos participado,
por exemplo, com projectos em concursos públicos da Direcção Geral das
Artes ou outros financiadores de arte, e existem aproximações ao que
se passa na ciência. A ideia é reduzir o risco. Mas reduzindo-se o
risco reduz-se também aquela probabilidade de sucesso inesperado e
aqueles laivos de génio que acontecem de forma não ponderada, não
previsível, tanto na ciência como na arte. Portanto, esta
hiper-formatação acabou com uma certa ideia romântica do cientista,
que, por seu lado, não passava também de um cliché. O actual sistema é
uma maneira de fazer as coisas que é pouco falível, resulta, é
funcional, e que objectiva o mais possível os indicadores e os
processos. A ciência na sua própria avaliação é hiper-objectiva,
hiper-rigorosa. Tu para fazeres a avaliação de um projecto científico
sabes que eu tenho um valor científico, que tenho um número, que tenho
um número de artigos e que cada artigo tem um número que corresponde ao
seu factor de impacto e que somados dão um outro número; que os meus
trabalhos foram citados por um determinado número de pessoas. O meu
valor pode ser medido por um outro número—o factor H—que relaciona a
quantidade com a qualidade do meu trabalho científico. É tudo
hiper-objectivo, é quase que a aplicação de um modelo macroeconómico à
gestão da ciência. Portanto, corres poucos riscos, o que no global
talvez seja uma maneira de funcionar e de garantir alguma
objectividade, mas eventualmente aquela genialidade mais ou menos
espontânea e não conforme a estes cânones acaba por desaparecer.
N– De qualquer maneira suspeito que os
cientistas usam de artimanhas, como o velho Ulisses, para darem a volta
a tais constrangimentos?
PP– Sim, o maior e melhor conhecido dos nossos
segredos é que normalmente fazemos projectos para investigar coisas que
já sabemos. Dizemos que vamos «descobrir» coisas que já «descobrimos»
para depois termos oportunidade de fazer outra coisa um bocado mais
arriscada. O sistema já compreende de algum modo a sua própria
falibilidade.
HT– Para mim foi uma surpresa ao perceber que a
ciência funciona num nível industrial muito regulamentado e, de alguma
maneira, de uma forma anónima. Trata-se mesmo de tirar a pessoa e a
pulsão da pessoa do sistema. Existe um plano geral, existe um interesse
em investigar um determinado problema. Julgo que muitos problemas vêem
da área militar, outros da área económica. E não é claro que exista
uma entidade neutra—ou facilmente identificável—que dite as linhas de
investigação da ciência. Para mim isto é fascinante. Tens uma máquina
enorme e altamente complexa em movimento sem um centro condutor
reconhecível.
PP– Um exemplo extraordinário do que o Herwig
está a dizer é o mega projecto da descodificação do genoma humano. O
inventário de todas as bases do genoma humano é um exemplo claro de um
projecto sem hipótese. Não havia nenhuma hipótese na origem. É um
inventário de informação. É verdade que houve durante muito tempo uma
máquina de propaganda a alimentar a ideia de que com a sequenciação de
todo o genoma humano se ia não só descobrir a origem da maioria das
doenças, genéticas ou não, como se ia poder curar algumas. Criaram-se
expectativas que obviamente não foram cumpridas
N– Mudando de faixa. No caso da bioarte, em
que não observas de fora, como um antropólogo, o laboratório mas em que
o artista se converte num cientista, desempenha o papel do cientista
dentro do laboratório e leva a cabo experiências com bactérias,
células ou o que seja, de certa maneira o artista aí submete-se aos
constrangimentos ligados aos procedimentos e metodologias da área
cientifica em que trabalha, assim como a regulamentos éticos do que se
pode ou não fazer, diria até que está mais constrangido que o próprio
cientista. No caso do vosso trabalho nada disso se passa e têm
liberdade total de movimentos. Não estão, por assim dizer, a trabalhar
sobre a própria matéria oftalmológica, existe uma mistura entre o
trabalho artístico e o trabalho antropológico de um Latour ou de um
cientista social a trabalhar dentro daquele ambiente. De que forma o
vosso trabalho, Herwig, se distingue da bioarte?
HT– A coisa mais interessante para mim é usar
uma metodologia indirecta. Um reflexo. Encontrar reflexos de
determinadas situações. Quanto a mim, trabalhar dentro do laboratório
como um bioartista era a via errada. Eu não acredito que tens um
conhecimento equivalente ao do cientista, nem que tenhas um
conhecimento muito directo dos processos e dos materiais de
investigação cientifica. Obviamente entras em várias transacções com os
cientistas e com os objectos, aprendes coisas técnicas, mas se
desempenhas o duplo papel de artista e cientista, ficas muito ocupado
com as entidades físicas e com as técnicas e perdes a distância do
observador, deixas de poder fazer a mediação e a transdução para algo
mais geral, para um mundo exterior ao laboratório. Para mim é mais
adequada a posição que tenho. Eu não acredito, como artista que sou,
que vou aprender as técnicas de um cientista em dois ou três anos. E
caso eu conseguisse colocar-me no lugar do cientista, ou chegar a
sê-lo, perdia a minha capacidade artística e ia fazer coisas muito
pedagógicas. Lá ia explicar mais uma vez os processos do trabalho em
laboratório que a escola ou a Ciência Viva faz. E acho essa uma posição
perigosa. Neste sentido, a colaboração com o Paulo resulta. Ele tem o
conhecimento científico e eu o conhecimento da arte. E parece-me que
esta constelação é muito favorável e muito rara.
N– Já agora, gostava que desenvolvesses um pouco mais a tua perspectiva sobre a bioarte?
HT– Eu não deixo de achar importante isso de se
tentarem fazer coisas físicas dentro do laboratório e mesmo fazer o
caos dentro do laboratório. Acho até que tem graça. Para mim são
diferentes maneiras de aproximação a este tópico da ciência pela arte e
pelos artistas. Obviamente, em termos estratégicos, é muito favorável
ir para o laboratório e fazer arte com materiais vivos. A ciência
precisa, até por uma questão de marketing, de artistas que estão a
trabalhar dentro do laboratório. E hoje já existe uma máquina que
precisa de artistas que vão para os laboratórios fazer experiências,
até porque tens esse segmento de bioarte e tens várias entidades do
campo científico que financiam esse trabalho. É muito parecido com o
que aconteceu entre a arte e as novas tecnologias. Tinhas os festivais,
tinhas os lançamentos, tinhas uma expectativa política e industrial
de que ia acontecer um evento artístico dentro dessa área, e isso são
limitações. Porque és usado, instrumentalizado, para uma coisa de
marketing. Por exemplo, na área da ciência, ou de uma ciência
industrializada, e em especial a indústria farmacêutica, no caso da
bioarte, participa com muito dinheiro porque quer lavar um bocado a sua
imagem. Os artistas têm no mínimo alguma credibilidade. Não têm
dinheiro, não têm poder, mas têm credibilidade e a indústria
farmacêutica por um custo baixo tenta transferir a credibilidade dos
artistas para a sua imagem pública. Os bioartistas mais críticos não
têm nenhum impacto e, no fundo, não questionam o jogo da indústria
farmacêutica. Estas podem dar aos artistas uma pequena porção de campo
de jogo e assim parecem empresas mais credíveis, mais abertas, mais
responsáveis, mas, no fim de contas, ninguém está a prestar atenção ao
que esses artistas dizem. Os SimbióticA, que trabalham com cultura de
tecidos, fazem esculturas em tecidos vivos, estão a discutir e a
levantar questões éticas a um nível alto, intenso, mas têm a ilusão que
o trabalho deles está a criticar os interesses, objectivos e o
comportamento da indústria farmacêutica, só que na verdade não é
assim. Os Critic Arte Ensemble, que têm estado a trabalhar de um modo
muito diferente, muito mais com a reflexão, fazem, quanto a mim, algo
muito mais crítico e contundente do que os SimbióticA. Os SimbióticA em
todos os festivais, em todas as grandes exposições, fazem a aclamação
do trabalho com a matéria biológica, viva, e passam a ideia que podes
brincar com isso, que não é complicado fazê-lo. Essa pode ser a
mensagem que na verdade está a ser passada cá para fora e não a
mensagem crítica que vem dentro dos painéis e dentro dos textos. É
muito complicado. As coisas têm muitas faces. No princípio dos anos
noventa a biologia genética tinha uma imagem muito má na Áustria e na
Alemanha. Todos os discursos eram super negativos, até por causa da
eugenia nazi, e parecia um verdadeiro apocalipse que estava a acontecer
no mundo. Foi muito interessante como a bioarte ajudou a mudar a
imagem da genética nos países de língua alemã. Numa perspectiva
histórica os festivais como o Artes Electrónica ajudaram a remover o
fantasma da eugenia e a alterar, na Áustria pelo menos, a ideia que a
opinião pública tinha sobre a manipulação genética. Não sei qual foi a
influência exacta deles nessa alteração mas a arte foi usada para
tornar a manipulação genética mais popular e aceitável. Como se esses
assuntos se tornassem menos diabólicos por os artistas já trabalharem
com eles. É muito interessante reparar como podes ser altamente
crítico quando simultaneamente estás dentro do próprio meio que
criticas, estás a usá-lo para lavar o dinheiro, de alguma maneira. Mas
acho que este é um problema da arte em geral.
PP– Quanto à bioarte em «Wet Lab», eu,
pessoalmente, não tenho nenhum deslumbramento especial por essa forma
de fazer arte. Não acho que haja nenhum valor acrescentado nisso. Um
exemplo clássico é talvez o coelho verde (Alba) do Eduardo Kac. Para
mim o acto em si de fazer coelhos verdes ou sapos vermelhos não tem o
mais pequeno interesse. O facto de ser feito por um artista ajudou a
quebrar um tabu e deu origem a uma série de questões políticas, sociais
e éticas importantes. Há gente que pode entrar num laboratório sem ser
o cientista. Os artistas podem utilizar a biologia e os materiais
biológicos até agora reservados aos cientistas como uma nova forma de
fazer coisas. Ok. Agora, essa espécie de fascínio de fazer coisas
utilizando os procedimentos técnicos da ciência, eu, honestamente, acho
isso uma coisa um bocado pobre e enquanto cientista não me impressiona
minimamente, porque é uma ferramenta quotidiana. A manipulação
genética, produzir proteínas verdes ou vermelhas ou ter um artista a
trabalhar na bancada impressiona-me muitíssimo pouco e acho que não
acrescenta nada de significativo, a não ser esse romper das fronteiras
disciplinares e do espaço selado do laboratório. Recorrendo a Latour,
esta antropologia da vida do laboratório e o seu retrato, com algum
distanciamento do artista, pode ser muito mais importante e
significativo no aporte, na sua tradução e nas suas implicações quer
na arte, quer no entorno social, quer na ciência, do que utilizares os
meios e os procedimentos dos cientistas. Nesta área da bioarte e da
ciência e arte—como em tudo o resto na vida—importa distinguir o que é
importante daquilo que é impressionante. Na cabeça das pessoas, do
público, das audiências, é muito importante distinguir estas duas
coisas. Compreendo a tentação de alguns artistas em utilizar meios e
procedimentos pela sua espectacularidade mediática ou pelos seus
resultados, mas que, no fundo, não acrescenta um valor próprio. Temos,
numa exposição, uma peça sobre a falibilidade dos procedimentos
científicos. Trata-se de um vídeo que apenas mostra experiências que
correram mal, resultados de culturas que correram mal. É lixo
científico. Para quem não sabe, não consegue distinguir este erro do
resultado válido. Mas esta espécie de paralelo com a arte em que o
desperdício e o que não vale também vale, em que existe um campo de
incerteza em que as coisas correm de uma maneira ou de outra e que não
há uma maneira certa ou uma maneira errada de as coisas funcionarem,
tem esta tradução na ciência. É uma tradução que me parece bastante
relevante e que só foi mostrada porque o Herwig estava no laboratório a
ver. Alguém disse, «isto não presta», «esta foi uma experiência que
correu mal», «isto não resultou por esta razão». Talvez seja mais
importante documentar isto e perceber-se que efectivamente há coisas
que correm mal, que há uma falibilidade inerente aos próprios
procedimentos do que andar a utilizar os meios técnicos para fazer uma
coisa com muito «brilho».
N– Porque é que a biologia contemporânea, a
partir da biologia molecular e da genética, atraiu os artistas? E
trata-se de um contágio relativamente recente. Tem pouco mais de década
e meia.
PP– Por duas razões. Primeiro tem a ver com uma
coisa que as pessoas valorizam, que é uma coisa fundamental, o último
de todos os segredos: a vida. E depois porque é espectacular. Podes
fazer coisas que impressionam. Porque um implante de uma orelha num
rato ou no braço de uma pessoa impressiona. São coisas que impressionam
e que podem ser feitas. Da mesma maneira que o Herwig disse que
precisas de tempo para as coisas amadurecerem e para criares algum
distanciamento e perceber a sua importância, na ciência, às vezes,
acontece a mesma coisa. Na maioria das vezes as coisas mais
espectaculares não são as mais importantes. Podes dizer que se fizeres
quadros com o adn e as pessoas puderem levá-los para a sua sala de
estar talvez fiquem a saber mais sobre a ciência ou se sintam mais
próximas. Mas eu tenho dúvidas que assim seja e tenho também dúvidas
que seja esse o objectivo desta arte que se pretende associar às
ciências da vida.
HT– O Eduardo Kac é um artista na fronteira. Ele
é muito consciente quanto à mediação e iconografia desta linguagem.
Em cima do trabalho faz uma coisa muito sofisticada com a linguagem,
com as constelações que cria e com as discussões, mesmo mediáticas, que
gera. O coelho fluorescente pode ser uma montagem de fotoshop, ninguém
sabe. E usa estes pré-conceitos para gerar controvérsia.
PP– Sim, parece-me que o coelho em si não
interessa nada. O mais importante foram os discursos e as questões mais
ou menos laterais e secundárias que se geraram à volta da própria
produção do coelho. Questões políticas, sociais, legais até, como a
questão da propriedade do coelho. De quem é o coelho? É do artista ou é
do laboratório? É uma obra? Posso vendê-la ou produzi-la em série?
Tudo isso é muito mais interessante do que o coelho em si. O coelho
esvaziado desses discursos e dessas reflexões não serve nenhum
propósito. É esta integração e este entorno mais ou menos fértil que
falta a alguma da bioarte que se faz actualmente.
N– Como é que estão a pensar o vosso trabalho daqui para a frente?
HT– Até agora desenvolvemos um processo com
entidades não humanas, fazendo um registo dos objectos. A partir daqui
vamos mais numa direcção interpessoal. Queremos trabalhar mais com os
investigadores. Colocar mais questões de poder e de hierarquia. Como é
que os cientistas funcionam num ambiente um pouco estranho ou um nada
fora do ambiente do laboratório a que estão habituados? Os próprios
investigadores vão tornar-se numa ferramenta, eles recebem ordens de
uma outra entidade e vamos também fazer mais coisas performativas.
PP– Sim, passarem para o lado das cobaias. A
ideia do investigador passar a ser uma cobaia. Aquilo que temos feito,
os tais retratos da vida no laboratório, são paisagens desumanizadas,
de alguma maneira, onde não tens elementos humanos, ou quando os tens é
pela sua ausência. Só são visíveis porque não estão. Tens objectos
com um protagonismo quase inusitado, quase despropositado. É o que
sobra depois dos cientistas, é o que está à volta deles. São as tais
coisas, de que falava o Herwig, periféricas, menos visíveis. Por
exemplo, aquelas sequências de retratos de objectos semelhantes aos
cadastrados: vista de perfil, vista de frente [projecto agents].
Porque é que se retrata o cientista e não um objecto? Qual é o
protagonismo de um e do outro? E agora temos esta ideia, não sei bem
como é que a vamos concretizar, que remete para a relação das pessoas
(os cientistas) umas com as outras e das pessoas com o próprio sistema
científico, com o próprio entorno. Temos conseguido tirar os objectos
do seu contexto, podes levar os objectos para outro sítio, podes
dar-lhes protagonismo, podes tratá-los de maneira diferente e aquilo
causa-te alguma surpresa, seja pela escala, seja pelo contexto, seja
por outra razão qualquer que consegues manipular. Mas como é que se faz
isso com as pessoas? Como é que podemos manipular o contexto? Como é
que podemos encontrar as tais características peculiares, as tais
deformações ou vícios dos cientistas? Como é que os podemos expor
noutro lugar? Como é que consegues destacar isso do resto da pessoa?
Parece-me um desafio importante. Vamos, no fundo, manipular, dentro do
laboratório, o entorno de maneira a criar pistas diferentes, de maneira
a criar uma situação de algum desconforto e que denuncie um gesto, um
traço do cientista, aquele resíduo que fica depois da pessoa, aquilo
que faz de ti um cientista, se é que isso existe. Os cientistas, ou os
médicos, por exemplo, estão muito habituados a controlar o seu
ambiente. Vamos então baralhar as coisas e tratar aquela questão das
hierarquias e das teias e malhas sociais de que falava o Herwig, não só
a hierarquia entre as pessoas mas a hierarquia com as coisas, com os
discursos, com os símbolos, com o mundo, e como é que eles se
reposicionam se retirares algumas dessas âncoras e referências que lhes
dão algum conforto e que tornam o meio reconhecível. O que é que
sobra? Ainda tens alguns gestos?, os tais preconceitos? Como é que usas
isso? No fundo, estamos outra vez a falar de retratos da vida no
laboratório, mas agora dos objectos que não são visíveis. Estamos
sempre a falar do mesmo nos nossos projectos, ou pelo menos é o que eu
gosto de pensar. Temos uma linha condutora que remete sempre para as
coisas que estão na periferia do teu olhar, que quase escapam ao teu
campo de visão. Coisas que não são visíveis e que determinam de uma
maneira mais subtil, inesperada, imprevisível, a resposta em relação
aos procedimentos da ciência, que é, no fundo, o que pretendemos
questionar.
HT– E também as coisas muito comuns, a que não
ligas ou que não tens uma noção delas, do dia a dia, que te são muito
familiares. Nós pretendemos alterar uma linguagem muito reduzida que
temos usado até agora e pretendemos mostrar que os cientistas quando
recebem uma ordem vinda de fora, de uma entidade que eles não conhecem,
também não entendem a 100% essa linguagem. Ao alterares o seu
ambiente habitual vais obrigá-los a repensar a sua posição, as
metodologias, etc., e verificar se eles têm alguma liberdade para mudar
as coisas ou de acatar as ordens, se podem fugir. A ideia geral era
também trabalhar com as pessoas que dão ordens, elas podem ser
incluídas com os cientistas dentro de uma experiência. Pode ser uma
coisa muito social, psicológica. Podem-se usar eles mesmos como
ferramentas dentro de um experimento de ciência natural.
N– O que é que este projecto, e dirijo-me a
ti Herwig, sobre a ciência, acrescenta e de que forma amplia o
vocabulário das artes plásticas?
HT– O nosso tipo de trabalho já existe em outros
campos, como na arte política, performativa, etc. Nós temos um ponto
de partida diferente e também temos ferramentas diferentes. A coisa
começa a estar bem definida e eu espero que esta constelação particular
resulte e forme um corpo de trabalho que tenha alguma autonomia. Não
existem muitos projectos dentro das artes plásticas sobre ciência
contemporânea. Tens muitas coisas históricas e tens algumas coisas
polémicas, políticas, que são às vezes superficiais ou têm deficits
nalgumas partes e este equilíbrio que conseguimos tem de produzir uma
coisa nova, relevante em si. Não sei se já atingimos isso, mas o
projecto, em si, faz todo o sentido neste momento e provavelmente ainda
mais quando tu olhares, daqui a muitos anos, para trás. Isso para mim
já chegava. Mas eu tenho sempre muitas dúvidas. Ainda agora, quando
puseste esta questão, eu senti-me como um artista muito mau, porque não
fiquei lá muito satisfeito com a última exposição. Só que isto,
dentro do processo, faz sentido. Não posso garantir que a obra que
temos desenvolvido será relevante no mundo da arte. Mas em comparação
com muitos projectos que tenho visto, o que fazemos é muito diferente,
é, de alguma maneira, algo estranho, e parece-me muito complicado de
enfiar numa gaveta, o que é em si uma coisa boa, uma coisa que
conseguimos fazer. Mas serão outras pessoas, as que fazem a história e a
contextualização, que dirão o que ando a fazer e não eu.
N– Como tens financiado a tua obra?
HT– [risos] Uma luta que continua. As obras
anteriores foram financiadas, principalmente por entidades austríacas.
Mas as coisas têm sido difíceis e não estão melhorar muito. A situação
é quase sempre muito complicada, mesmo apresentando orçamentos baixos.
N– Estás com dificuldades em lidar com as galerias e com o mercado da arte. Porque achas que isso acontece?
HT– Obviamente o que fazemos parece não
interessar ao mercado da arte. Não há um público, não há
coleccionadores que queiram adquirir o tipo de trabalho que fazemos e
também as instituições científicas nunca têm dinheiro para financiar
projectos artísticos. No caso do mercado da arte quando o contexto era
mais histórico e mais definido era mais fácil. Mas, em geral, todos os
projectos na área em que trabalhamos têm grandes problemas para
entrarem no mercado. Eu também não entendo muito bem porque é que as
instituições científicas não podem comprar os nossos projectos. Acho
que para eles, em termos estratégicos, podia ser bom, e faz todo o
sentido adquirirem projectos de arte / ciência contemporâneos. Só que
não existe uma consciência da sua relevância, nem em Portugal, nem na
Áustria, nem quase em país nenhum. Muitas vezes pessoas que têm
recursos financeiros para fazerem estes projectos de arte / ciência têm
um extremo mau gosto e apenas querem coisas decorativas, ilustrativas,
que obviamente nós não fazemos.
PP– Existem algumas excepções. Estou a pensar no Wellcome Trust em Inglaterra, que compram peças destas e as expõem nas suas instalações.
HT– A nossa visibilidade é muito baixa porque
estamos mesmo entre os campos da bioarte, das artes plásticas e da arte
e tecnologia. Nós não usamos alta tecnologia, nós não usamos
organismos...
N– Sinto que o vosso trabalho está muito mais
perto das artes plásticas «mainstream» que da bioarte ou das artes
tecnológicas. Que até seria relativamente fácil serem aceites.
HT– Pensei também que assim era, mas acontece
que quando estou a falar com os curadores e outras pessoas que
trabalham nessa área, provavelmente o trabalho não é suficientemente
apelativo para eles. Eu tenho a impressão que eles não querem fazer um
esforço para entender ou explorar estes tópicos que desenvolvemos. Mas
existem entidades minúsculas que estão muito interessadas no trabalho
que levamos a cabo. Chegar a esta publicação [aponta o livro Art in the Age of Technoscience. Genetic Engineering, Robotics, and Artificial Life in Contemporary Art]
com a participação de vários autores e artistas, significa que nós
fazemos uma coisa própria, interessante e existe uma pequena comunidade
que conhece o nosso trabalho, o reconhece e valoriza. Mas não temos
impacto no mercado da arte, nem no da bioarte. Em termos estratégicos é
sempre muito arriscado trabalhar entre as áreas, mudar os campos, os
media: uma vez fotografia e vídeo, outra vez um bocadinho de escultura,
performance. Isso baralha e confunde. Não cria uma relação mediata.
Não é fácil alguém sentir-se, num primeiro olhar, fascinado por isto,
nem na área da arte, nem na área da ciência.
PP– É verdade tudo isso mas não devemos
dramatizar e as coisas não são assim tão más. Tivemos exposições na
Alemanha, na Áustria, em Seul, estamos na Dinamarca num evento sobre
bioestética e por aí fora. Há é um grupo reduzido de interlocutores. O
nosso projecto tendo muito pouco a ver com a bioarte, parece-me, no
entanto, ser uma espécie de corolário mais ou menos óbvio desta
proliferação de bioarte. O que é que lhes fica a faltar? Talvez um
discurso que permita enquadrar e dar uma espécie de moldura social e
cultural a tudo isso que se faz e que eu acho que está um bocadinho
aqui.
PP– [O Paulo resolve fazer uma pergunta ao Herwig] A ciência é a nova arte?
HT– A ciência tal como a tecnologia são muito
diferentes da arte. Quando eu estive a falar com um cientista sobre a
recombinação do adn, para ele aquilo é mesmo real. Ele acredita nisso e
tem maneiras de o realizar. A arte tenta introduzir um discurso social
e uma crítica muito superficial e não tem muito a ver com os
desenvolvimentos actuais. A grande mudança cultural vem das áreas da
tecnologia e da ciência, não da arte. Alguma vez a arte influenciou a
cultura em sentido lato? Se sim, a ciência não é a nova arte porque
definitivamente as transições na nossa cultura vêm da tecnologia e da
ciência. A arte é completamente secundária.