Para quem está habituado a ler Hermínio Martins e a encontrar os seus textos dispersos por revistas e publicações colectivas portuguesas (de notar que o seu último livro data de 1996), é com algum júbilo que vê finalmente parte do trabalho desenvolvido pelo autor nesta última década e meia aparecer em formato livro. Tendo em conta que o livro que acaba de sair é uma reunião de muitos desses textos dispersos, embora em muitos aspectos melhorados e aumentados, poderíamos ser levados a crer que pouco ganharíamos em voltar a lê-los, mas assim não se passa. Não apenas não se trata de uma mera reunião de textos mas de um livro articulado, uno por assim dizer, como ao lê-lo o pensamento do autor revela uma força, uma amplitude e consistência que talvez nos escapasse quando o líamos fragmentariamente e tínhamos acesso apenas a um texto aqui e outro acolá. Se já antes ler Hermínio Martins era uma experiência única e um gozo intelectual, com este Experimentum Humanum estamos diante provavelmente do mais singular e estimulante pensador português das últimas décadas. Diria que para aqueles que não querem seguir esta ou aquela cartilha teórica, para os espíritos que preferem fruir um estilo e um dispositivo teórico fora das correntes dominantes, ler Hermínio Martins e em especial este Experimentum Humanum é imperioso. Trata-se de uma trabalho teórico que escapa às grelhas disciplinares e onde assistimos a uma saudável indisciplinaridade. Sendo rápido diria que este livro se debruça sobre as implicações, os impactos e repercussões do devir tecnocientífico a nível planetário tendo como eixo a condição humana, e procede a uma desmontagem e desactivação das narrativas, muitas delas de teor messiânico, que legitimam e extremam esse devir. Nos capítulos iniciais este livro fornece-nos de uma forma ágil uma genealogia caleidoscópica das diversas visões sobre a tecnologia ou mesmo da tecnociência ao longo da modernidade, e desmonta algumas ideias feitas que temos hoje sobre, em especial, alguns pensadores positivistas franceses, embora faça interessantes incursões sobre o pensamento marxista relativos à técnica. Isto no âmbito do que o autor classifica como o Prometeanismo tecnológico, pois na segunda década do século XX, com Spengler, temos a emergência da visão fáustica da tecnologia, que virá a incluir pensadores como Junger e Heidegger numa ala direita, ou Horkmeiar e Adorno numa ala esquerda. Segundo Hermínio a visão Fáustica da tecnologia «devia ser encarada sem disfarces humanitários, como expressão da vontade-de-poder de uma cultura irredutível e particularista, e não como mero instrumento de fins universalistas da civilização em geral: aliás, o tema da tecnologia como expressão da vontade de poder é um dos temas mestres do pensamento alemão de direita perpetuado à sua maneira pela Escola de Frankfurt depois da Segunda Guerra Mundial» (pág. 283). Para que não restem quaisquer dúvidas quanto ao diagnóstico que leva a cabo transcrevo a frase que remata o capítulo VII: «O Prometeanismo Iluminista precisa de ser corrigido e reformado porque se confunde cada vez mais, na prática, paradoxalmente, com o Faustianismo anti-iluminista» (pág. 322). Mas o autor convoca para a leitura da tecnocultura as mais diversas correntes de pensamento e pensadores: De Vico a Mises ou de Descartes e Bacon a Popper e Beck.

Outra parte relevante do trabalho teórico do autor recai sobre o discurso de muitos cientistas e mesmo filósofos, que profetizam uma espécie de advento de uma transhumanidade ou de um éden desmaterializado erigido pela tecnociência. Não se trata apenas de uma operação de desmontagem dos delírios discursivos de tais gurus da ciência mas de um ataque aos programas que as biotecnologias, a inteligência artificial e as nanotecnologias, ou o mais «tradicional» programa nuclear, para ser sucinto, têm hoje em curso e, claro, todos os efeitos colaterais e imprevistos desses programas na biosfera e no devir humano. Os textos de Hermínio são caleidóscopicos e tecidos de mil fios. Talvez uma das teses centrais de Experimentum Humanum seja a inversão do princípio de Vico da transparência da tecnologia (só conhecemos totalmente o que fabricamos), pelo que Hermínio mostra-nos como a tecnologia não é nem transparente nem neutra. Primeiro os seus usos transcendem o programado pelos seus designers, em segundo lugar muitos artefactos tecnológicos não são em termos científicos completamente transparentes. No cerne dos artefactos tecnológicos temos uma espécie de obscuridade, de descontrole e de imprevisibilidade, não apenas na sua utilização como no seu devir. Também temos por parte do autor uma critica mordaz aos que julgam que emancipação e tecnociência andam a par. Pelo que o empreendimento actual de mercantilizar a vida é para Hermínio Martins abusivo, perigoso e no fundo inaceitável. Um risco que não devemos correr, ou algo que nem sequer devíamos ter começado a experimentar. Mas esta como que regra de precaução deveria também impender sobre a energia nuclear e todas as tecnologias «onde há potencialidades catastróficas, mesmo que as probabilidades numéricas determinadas pelos peritos sejam muito baixas» (pág. 190). Obviamente as preocupações ecológicas são uma constante, seja o aquecimento global, seja a poluição química dos solos ou a acidificação do mar, seja a perda de biodiversidade, e por aí adiante. De algum modo Hermínio recusa aderir ao «principio da plenitude tecnológica segundo o qual tudo o que seja possível de fazer será, mais cedo ou mais tarde, feito» (pág. 146). Por outro lado temos algumas páginas mordazes em relação ao novo paradigma da informação que invade tudo, da física às neurociências. Como se, no fundo, tudo se pudesse reduzir a mera informação. Segundo o autor «no estado de natureza cibernético, a natureza é natureza-como-informação. Ou seja, o pressuposto é que a natureza se encontra totalmente disponível aos processos de recuperação, processamento e armazenamento de informação, possibilitados pela máquina universal» (pág.156).

O autor também faz luz para uma espécie de revolução paradigmática (Kuhn) que está a ocorrer principalmente nas ciências duras. Trata-se do «quarto paradigma» de fazer ciência ou e-ciência, «que exige procedimentos de processamento de dados superabundantes, da ordem dos petabytes e múltiplos de petabytes (...), e sempre renovados, técnicas computacionais e algoritmos estatísticos que nunca foram necessários, ou que nunca foram aplicados nesta escala antes. Esta transformação está a ter lugar em todas as disciplinas das ciências duras, e na matemática, ainda que a astronomia e a biologia tenham sido pioneiras neste processo» (pág. 122). Isto para lá de se esperarem, segundo o autor, «avanços consideráveis na robotização do trabalho científico» (pág.123).

As preocupações éticas, que compreendem a tecnoética e a ética ambiental, constituem um dos pilares deste livro. Questões ligadas aos riscos e incertezas a longo prazo impossíveis de prever ou com baixa probabilidade de ocorrer mas que caso ocorram se revelariam catastróficas e que dizem respeito ao legado mais ou menos letal que deixamos para as futuras gerações, até a uma política que assente na precaução e prevenção, senão mesmo na eliminação à partida desses riscos e incertezas não significa que o autor seja uma espécie de ludita ou de opositor radical da cultura tecnocientífica. Para Hermínio Martins existem sim riscos que não devemos de forma alguma correr. Incertezas com que não devíamos brincar e experimentos que à partida temos a obrigação de a todo o custo evitar, sejam quais forem os altos desígnios que os caucionem, já que se podem revelar diabólicos, ter custos incomportáveis e mostrarem-se uma ignomínia para a dignidade humana, assim como fatais para o porvir da espécie humana, não apenas em consequência dos projectos de muitos cientistas tendo em vista um futuro transhumano, como, em igual ou maior medida, para o meio ambiente. Neste sentido o autor rejeita completamente a ética utilitarista em suas diversas formulações ou correntes e aponta para uma forte regulamentação da experimentação tecnocientífica e da sua industrialização e que à partida e por precaução existem coisas que os cientistas e tecnólogos devem abster-se de tocar, mesmo atendendo a que não existem fronteiras nítidas ou linhas que separem muitas vezes a boa da má investigação e que usos pode ter aquilo que à partida parecia ser em benefício para a saúde humana ou para qualquer outro beatífico desígnio.

Este livro revela mais uma vez a erudição avassaladora e heteróclita de Hermínio Martins. Não se trata nunca de uma viagem convocando os autores do costume. Trata-se de uma outra viagem e por isso inusitada e altamente gratificante. Hermínio Martins é o pensador português mais prolifico a gerar novas palavras ou neologismos, tornando mais rico, operativo e vasto o nosso vocabulário.

A vinda a lume deste Experimentum Humanum é um acontecimento. Neste caso um acontecimento em língua portuguesa, mas seria um acontecimento em qualquer língua e em qualquer parte do mundo que se regule ou sofra os efeitos do princípio da aceleração. E se nem a órbita do nosso planeta lhe escapa... Mesmo sendo um livro altamente crítico e irónico, senão mesmo mordaz, em relação à tecnodisseia em que estamos metidos, não a condena em absoluto e muito menos se barrica numa espécie de ecologia profunda. No essencial este livro adverte-nos quanto ao teor messiânico de muitas das promessas tecnocientíficas e defende a possibilidade de caminhos alternativos que evitem a escalada imparável, irregrada e cega da tecnologia; que a podemos conter e que é urgente desfazermo-nos de certas ideias que se tendem a generalizar, e que se poderão revelar fatais, como a de que os problemas gerados pela tecnologia têm sempre um remédio ou solução tecnológica, ou de que não podemos evitar o princípio da plenitude tecnológica, segundo o qual tudo que é tecnologicamente possível mais tarde ou mais cedo será realizado, ou no ainda mais delirante (o autor adjectiva-o como uma enormidade) princípio da plenitude tecnofísica, em que tudo que é fisicamente possível é tecnicamente possível. Para o autor somos livres de tomar outros caminhos e não estamos fadados a seguir esta via de sentido único.

Paradoxalmente ou não este é um livro acelerado. Existe algo de aditivo na escrita de Hermínio Martins. Mas o estilo de Hermínio mais que provocar efeitos similares aos de uma nova droga da lucidez — todas as drogas de algum modo proporcionam algum tipo de lucidez e o acesso a realidades alternativas —, parece antes desencadear efeitos terapêuticos de desintoxicação. 


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Editor da revista Nada e autor de Políbio no Jardim Metafísico (Edições Mortas, 2003).


 

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