Pela primeira vez desde o aparecimento da NADA, construímos um número
temático. Tão singular acontecimento nasce do convite endereçado à revista NADA pelo Diretor Cultural da Fundação EDP, José Manuel dos Santos, em nome da Fundação, para
integrar um evento em torno do RISO. Pareceu-nos desde logo um desafio
estimulante que em nada desvirtuava, bem pelo contrário, o espírito
indisciplinar e fora do lugar que tem orientado a NADA.
Esta é uma viagem um tanto contingente, sem um itinerário preciso, pelo
riso e seus afluentes: a paródia, o burlesco, o humor, o grotesco, a comédia, a
ironia, etc.
É claro que ficou quase tudo de fora, dada a densidade rizomática do tema,
suas múltiplas linhas, filiações, cruzamentos, derivas, mas esse imenso fora de
alguma maneira ressoa nos textos e imagens presentes nesta NADA. Num movimento
inverso esse fora é para onde se precipitam os que se encontram na borda do
riso.
Não incluímos estudos epocais sobre o riso, tipo: o riso carnavalesco na
Idade Média, a comédia na Grécia Clássica, a ironia no romantismo alemão ou na
pós-modernidade, etc., como nos afastámos, sem escapar completamente, a
análises demasiado presas a um determinado escritor, fosse romancista ou
filósofo. Muito menos abordamos o riso com as lentes de aumentar e as formas
proposicionais da ciência, através, por exemplo, de uma etologia do riso, ou
mediante as neurociências, e ainda menos nos interessámos em tentar descortinar
os genes que estão na base do riso, discriminando por sua vez o gene irónico do
gene cómico... Também passamos ao lado de uma sociologia do riso ou das actuais
terapêuticas do riso.
O que fundamentalmente nos interessou foi o riso como operador estético e
como pulverizador de sistemas.
Dentro de determinadas condições históricas (já que podemos ter sob essas mesmas condições histórias ou
noutras um riso transgressivo sacro, ritualizado, etc.), a paródia, o humor, o
grotesco, a ironia, a comédia, são em muitos de seus aspectos armas
dessacralizadoras, poderosas armas profanatórias de ordens superiores e
hieráticas. São armas de inversão, de sabotagem e mesmo de demolição, tanto de
ordens estratificadas fixas como de ordens altamente plásticas, a começar no
Olimpo e a acabar no mercado e na cultura do empreendedorismo e do
entretenimento - do mais sagrado ao mais profano dos mundos. Por paradoxal que
possa parecer, trata-se também de profanar o mais poderoso dispositivo
profanatório que alguma vez surgiu à face do planeta Terra, o tecnocapitalismo.
Estamos a passar por dias deceptivos que, no entanto, são o prelúdio de uma
viragem, viragem esta que assinala o fim de uma época. E damos os primeiros
passos, titubeantes passos, não propriamente a caminho da saída do gigantesco
parque de diversões multitemático em que o mundo nas últimas décadas se
converteu, e muito menos com o propósito de o desmantelar, mas tendo em vista a
sua reconfiguração mediante um conjunto de novas regras para que os actores que
puseram de pé uma tal maravilha e que hoje passam por um mau bocado voltem a
soerguer-se e a sentir o inebriamento do comando. Muito embora este não volte
mais a ser o que foi. Outros actores poderosos entraram em jogo.
De um outro ponto de vista, esta viragem ou transição sela um afastamento
definitivo em relação à era pós-moderna (que há muito perdera o seu viço e se
vinha arrastando num estado anémico, crepuscular) com a sua queda para a
brincadeira desconstrutiva e remistura paródica. Há quem assegure que
regressámos à coisa, à materialidade
dos objectos, enfim, à cultura material, depois de um longa jornada ao país dos
signos e da textualidade. Mas a coisa
surge demasiado dúctil, mesmo em sua rugosidade e viscosidade, demasiado
esteticizada, mesmo na sua condição de escória ou detrito, demasiado produzida
e tecnicizada, demasiado cartografada, no fundo, demasiado desmaterializada. É
uma coisa fluxo, mutante. E se hoje a coisa
fala e interrompe a sua mudez fá-lo através de mediadores e aparelhos de
auscultação altamente sofisticados. Não se trata propriamente de um regresso,
muito menos a um mundo sólido, seja o que for que isso queira dizer. Não há
regresso possível. O que há é uma outra coisa, uma coisa abissal, que nos lança
para fora da terra em busca do vestígio do objecto desaparecido da origem
cósmica ou para junto das frequências indetectáveis das cordas que vibram. Não
passam, porém, de objectos espectrais que nos chegam do futuro, de um porvir
que retroage com o mais remoto passado reconfigurando-o, muito embora coagulem
no presente. Por outro lado, era como se o actual regime de alta aceleração
ultrapassasse o próprio futuro, provocando uma espécie de colapso da seta do
tempo.
Temos porém de ter em atenção que o mundo, a substância do mundo, sempre
foi espectral. A realidade, desta ou daquela maneira, sempre foi espectral. O
riso, na sua plasticidade, move-se num mundo duplicado, e ainda que se possa
comportar como um poderoso desactivador dessas entidades metafenomenológicas
que são os espectros, também ele, em seus efeitos de superfície, é espectral. O
riso extravasa, projecta-se para fora da carne arrastando-a. E ao projectar-se
para fora da carne torna-se também ele espectral. Mas essa projecção é uma
prega ou dobra plástica da carne, uma espécie de mascarada, de exacerbação do
duplo, de forma a dar-lhe uma vida imanente. Trata-se de um espectro material,
talvez feito de uma matéria que se aproxima de um estado ondulatório, como
quando um crepúsculo se comporta como uma onda (Física Quântica). Ou melhor,
era como se a carne passasse de um estado rígido para um estado ondulatório.
Levando até ás últimas consequências esta digressão um tanto delirante
permito-me aventar que a época que se abre diante de nós corresponde não à
completa abolição dos espectros, mas à sua atenuação de forma a quase
desaparecerem, ao seu apagamento, uma espécie de mundo dos sem-mundo. O que
paradoxalmente acentua a natureza espectral e desancorada da nossa deriva. De
algum modo, numa mistura entre diagnóstico e vidência, a viragem que hoje
protagonizamos consiste numa espécie de passagem ou salto da desconstrução
irónica para a elisão cómica, não a elisão do passado e do futuro, mas a
simples retirada ante o que está aí, uma retirada que não é um recuo ou um acto
de resistência, mas uma demanda, um avanço e um excesso por defeito - apóstolos
que somos da renúncia e profetas da subtracção. Pelo que me parece uma
evidência que não se trata mais da espera (messiânica ou oracular) que aloja a promessa de um povo a vir, ou
melhor, de um colectivo de humanos e não-humanos a vir, mas antes de um
colectivo que acaba de chegar, e que ao chegar fatalmente trai ou não parece
corresponder de todo às expectativas, por mais abscônditas, depositadas nessa
vinda. Não se trata portanto de alcançar o que não alcançaremos nunca, já que o
que alcançamos é sempre algo inusitado, ao lado e um tanto decepcionante,
medíocre, idiota. Trata-se antes de não alcançar, da recusa em alcançar. De não
esperar e mesmo de não empreender sem por isso colapsar.
Só que para cumprir um tal programa as páginas que têm diante de vós ou
estariam inevitavelmente em branco ou se eclipsariam mal as tentassem folhear,
o que não deixaria de ser interessante e até com o seu gradiente cómico. Só que
o raio da NADA não é fiel ao seu nome e recusa-se a parar de empreender,
recusa-se a não vir.
Como nos diz Domingo Sánchez, vivemos hoje no limiar de uma época que, no
que concerne ao riso, se compraz ou dilacera com brandura na angústia da ironia, pois, no fundo, é o
sistema metamórfico actual que antecipadamente se ri de quem ri dele. Pior, o
próprio sistema é auto-paródico e tacitamente diverte-se muito especialmente
com esta crise que o abala sem ter, longe disso, a potência de o abolir. Mas
também isto se tornou um lugar-comum. Pelo que proponho modalidades mais
improváveis e heteróclitas, mais abissais e devastadoras de riso, geradas pela
pantomímia dos sem-mundo, dos sem-rosto e dos sem-imagem. O que de certo modo
não deixará, a acontecer, de inquietar. Embora nem eu mesmo saiba, com rigor,
do que se trata.
No entanto, nada disto serve de pretexto para evitar traçar mesmo que com
brevidade as linhas com que se tece esta NADA. Se muito do que vão encontrar
radica na grande tradição Ocidental, que no essencial começa na Grécia Clássica
e vem até à actualidade, mesmo que saltando daqui para ali, sem nenhuma
tentação em ser exaustivo ou em esgotar o que quer que seja, já que o que nos
interessa é não só a ressonância desse passado no nosso devir, como também a
colisão desse passado com tudo que nos vem do futuro. Talvez o único desvio
relevante seja o efectuado rumo ao riso de certos povos indígenas da amazónia e
do cerrado, e aí sim verificamos como certas categorias ontológicas mestras do Homo-Ocidentalis parecem embaralhar-se e
mesmo colapsar e é todo um outro modo de apreender e fazer corpo com o mundo
que assoma. E esses povos não fazem parte de um passado mítico, remoto, mas são
nossos contemporâneos e companheiros de viajem, também eles devêm neste hoje
que tendemos a reduzir ao que se passa nos noticiários e nas redes sociais.
Também eles riem connosco e de nós, embora sejam especialistas a rirem de si
mesmos. Bem haja esse outro que julgamos não existir, não fazer parte do jogo,
dado o seu impoder - e nisso em perfeita sintonia connosco. Quanto ao mais só
posso desejar uma agradável viajem ao mundo pantagruélico dos espectros.
LADO B por Jorge Leandro Rosa
Logo a abrir o século XX, Bergson preocupou-se em descobrir a causa
profunda do cómico. Trazer o cómico à Filosofia era parte do grande movimento
em que esta se ia ocupando com a vida e com os movimentos da vida. Depois dos
mecanismos da retórica, da sociedade e da natureza, o cómico aparecia, por
assim dizer, exposto às vagas mais imprecisas, mas também mais incisivas, do
Homem enquanto fenómeno sui generis
da vida. A singularidade do humano aparecia sublinhada nos traços cómicos que
este sabia imprimir à existência. Revela-se aí o quanto o cómico é excepcional
na regularidade dos fenómenos vivos. Autores como Bergson mostravam a
Humanidade, já não como grande produtora do cómico – talvez a única forma de
produção que a diferenciava de Deus, mas como parte de uma estranha e
inquestionada intercessão entre os actos próprios dos seres vivos e os actos
inapropriados que o vivo manifestava
através deles. Que seria possível, em todo o caso, retirar uma inteligibilidade
dessa intercessão, era a aposta manifesta do pensamento filosófico que chegava
às convulsões da modernidade sem uma chave para a comédia trágica que se
avizinhava. Prisioneira dos efeitos cómicos que se prendem com a vida individual
e colectiva, não lhe era possível retirar-se de uma perspectiva narrativa do
que intersecta a vida como riso. Bergson tinha plena consciência desse limite
que a narratividade cómica impõe ao riso ao afirmar, em apêndice a Le Rire, que é espantoso que a sociedade
possa rir.
Este número da NADA propõe uma girândola de interrogações em torno desse
espanto. O espanto de uma interferência. O espanto de um despropósito. O
espanto de um afastamento das causas originárias daquilo que nos faz rir. Todo
o patético do riso, que destrói a coerência imaginária dos homens, é afinal
muito pouco devedor da imaginação coerente dos cómicos e dos humoristas.