Às vezes, os media convocam a pintura. Digo «pintura» e não a
arte em geral, que é uma categoria que eles nunca duvidam saber o que
seja, mas que, por isso mesmo, lhes parece mais apetecível. Falar
daquilo que surge definido antes de ser interrogado é a missão que os
nossos jornalistas tomam em mãos. É cada vez mais frequente sermos
informados do preço de uma obra, do número de visitantes de uma
exposição, da vida mundana do artista e do modelo, das características
do edifício que alberga as colecções. A arte é hoje um mundo que alguns
habitam. Só o modo de vida que aí se leva interessa para fins
comunicacionais. Falar de pintura é, por essa razão, inadequado para os
públicos desses meios de comunicação. Falar de pintura – ela mesma –
seria aceitar uma restrição imposta voluntariamente ao mundo da arte.
Seria aceitar que há um quadro que organiza a atenção. Equivaleria a
conhecer a história das gramáticas pictóricas e, last but not least,
o que é um pigmento e o que nele faz dialogar o visível com o
invisível. São muitas as razões pelas quais a pintura não interessa hoje
aos nossos media, mas a causa mais profunda desse desinteresse
reside na pertença da pintura à terra e às coisas que vêm desta. Numa
época digital em que toda a ideia de substância se torna arcaica, a
pintura evoca um estado opaco do mundo artístico; um estado onde o olhar
se suja no próprio acto de visão; uma arte onde o espaço é aquilo que
dificilmente se liberta da coisa pictórica. Os media não gostam de coisas terrosas que ameaçam os seus circuitos.
Foi nestas circunstâncias pouco favoráveis que, no início deste ano,
surgiram notícias sobre uma pintura. Trata-se de uma obra de um pintor
sueco chamado Carl Michael von Hausswolff. Essas notícias deram a volta
ao mundo, o que é raro quando o assunto não é a questão da propriedade
de um quadro ou a sua atribuição. Bem conhecido na Suécia, mas pouco no
estrangeiro, enquanto músico, artista plástico e curador, Carl
Hausswolff tem apresentado trabalhos centrados na produção electrónica
de sons e música, instalações cujo contexto teórico é uma curiosa
variante contemporânea do espiritismo. Tornou-se especialista do
trabalho de Friedrich Jürgenson, e do seu electronic voice phenomena
(EVP), um investigador que detectou as vozes dos mortos na estática
radielétrica. Von Hausswolff é também rei numa monarquia bicéfala: o
Reino de Elgaland-Vargaland, um território no man’s land, entre
a terra e o mar, o espaço digital e o espaço mental (a Wikipédia é a
fonte diligente destas informações). Temos, portanto, um artista
activamente envolvido nas artes tecnológicas, no mais extremo da sua
exploração de processos e sentidos híbridos.
O que aqui me interessa é a vertente do seu trabalho como pintor.
Talvez esta não fosse a mais conhecida do seu percurso artístico, mas,
subitamente, como que através de um ingrediente mágico, tornou-se aquela
que o mediatizou. E através de um quadro em particular que mereceu as
já referidas honras da imprensa: uma obra de pequenas dimensões, segundo
me é dado ajuizar pelas imagens que circularam, emoldurada e dotada de
um clássico passe-partout. O quadro é um trabalho
característico da pintura posterior à perspectiva, onde predominam os
tons castanhos e uma certa espessura no uso do pincel, dando-lhe uma
textura terrosa. Não haveria muito mais a dizer se não soubéssemos, pela
boca do próprio pintor, que o pigmento principal aí utilizado (e
pigmento é um vocábulo que sou eu que utilizo) são as cinzas que ele
próprio terá recolhido de um dos crematórios do campo de Majdanek, na
Polónia. Cinzas humanas, bem entendido. Provavelmente de judeus, dado o
que sabemos da história dos campos de concentração, mas não é certo, já
que Majdanek não era tão especializado nos filhos de Abraão como
Auschwitz-Birkenau, admitindo outros grupos humanos. Terão sido
misturadas com água a fim de ser possível utilizá-las no trabalho
pictórico.
Abro aqui outro tipo de considerações: apercebo-me da importância de
uma declaração como aquela que Carl Hausswolff produziu, atribuindo à
matéria da coisa pictórica uma importância decisiva. Efectivamente,
Hausswolff sabe que o seu quadro não é uma imagem, mas sim uma pintura. A
sua declaração é, antes do mais, essa reivindicação. Entendo, com
efeito, que toda a pintura moderna, das vanguardas ou posterior a elas,
mesmo quando envolvida num jogo de provocação e irrisão do pictórico,
está ainda a fazer pintura dentro do grande quadro teórico da pintura.
Ou seja: o artista sueco faz pintura e reivindica-o dizendo-nos qual é a
sua matéria pictórica. Esta já não é de origem mineral, mas é antes
biológica. É a carne e o fogo que dão matéria àquela pintura. Mas não
posso deixar de sublinhar que Hausswolff é obrigado a recorrer, anos
depois da criação da obra e certamente preocupado com a sua
visibilidade, a uma declaração pública sobre a cozinha pictórica em que
trabalhou, retirando-a, nesse instante, à obscuridade dos processos
químicos. Aqui nascem, simultaneamente, o escândalo e a atenção estética
a este criador. Legítimas dúvidas se levantam sobre saber se a
verdadeira matéria deste quadro não será, então, puramente linguística: a
afirmação de um suposto acto de profanação. Acabo a interrogar-me:
voltamos aqui à pintura ou deparamo-nos, no fim de contas, com a sua
pura impossibilidade? Se aquilo que aqui é decisivo é a confissão
pública da apropriação das cinzas, então, sem dúvida, este objecto não é
uma pintura mas uma imagem.
As reacções dos chamados especialistas – e limito-me aos portugueses –
foram curiosamente metafísicas: oscilaram entre a confirmação do valor
simbólico das cinzas, retirando-as à pintura e ao ritual funerário que
elas não tiveram: a profanação. Ou declararam-nas irrisórias, já que
toda a questão decisiva é aquela, puramente conceptual, que antecede a
génese material da obra. Em ambos os casos, evocaram a soberania
artística para legitimar um objecto, ignorando toda a pergunta sobre a
possibilidade de estarem, aí, diante de uma obra pictórica. Revelaram-se
duplamente ignorantes: da crise da pintura patente no actual mundo
artístico e da crise da Humanidade tornada manifesta pela destruição dos
judeus que varreu a Europa. De qualquer modo, é falso argumentar, como o
fez o pintor, utilizando o seu direito a uma teoria exterior à obra de
arte, uma teoria de lógica expositiva, que uma obra que usa um pigmento
de origem humana está ali para lembrar a tragédia desses homens. O
pigmento pensa, mas fá-lo precisamente porque esquece a sua natureza. O
pigmento não tem alma nem carne. Não tem imagem nem discurso. Este
pigmento pensa muito para além da impiedade do autor e dos críticos.
Evidentemente, esta pintura convoca para dentro de si a destruição. A
destruição de seres humanos passa a ser uma questão que a convoca a
partir de dentro. Os crematórios de onde Von Hausswolff diz ter roubado
as cinzas eram dispositivos que, sem qualquer natureza jurídica ou
religiosa, estavam ali para destruir criaturas como nós. São, portanto,
minas da morte debaixo do céu de chumbo do nordeste da Polónia.
Perguntar-me-ei aqui: se toda a teoria que age a partir do interior da
obra de arte está indissoluvelmente ligada à sua matéria, e que é
precisamente essa ligação que sustenta a sintomatologia iconográfica da
história da pintura, constantemente suspensa entre beleza e horror,
rosto e carne, ressurreição e morte, então que céu cor de terra é este
que está diante de nós? Já sem posição cosmológica, que terra obstrói o
céu e que morte ut pictura assim se revela a nós? Talvez nada
nos seja aqui dado na pura medida em que o sistema actual da recepção da
arte fecha a porta a toda a revelação. E Hausswolff terá sido o
primeiro a fechar essa porta.