O futuro é algo com o qual devemos manter boas relações porque
desempenha um papel muito importante nas nossas vidas, pessoais e
colectivas. O mais imprescindível dos livros de auto-ajuda deveria
intitular-se, precisamente, «O futuro, manual de instruções». O futuro
parece a coisa mais simples do mundo: encontrar-nos-emos com ele façamos
o que façamos; quem quiser conhecê-lo, apenas tem de esperar um pouco e
ver... No entanto, é um espaço complexo, aberto e desconhecido, que
ameaça ou promete demasiado, que inquieta e atrai, onde quem o maltrata
acabará por pagar um preço elevado. Nada mais inevitável e,
simultaneamente, fácil de eliminar.
Se há alguma coisa que merece
ser cultivada e civilizada, mais do que os espaços físicos, são os
tempos, mais concretamente, o tempo futuro, que não é ocupado com
exércitos e colonos, mas através do desejo e das expectativas. O código
dessa ocupação é a esperança, uma virtude que define o esforço com que
os humanos encaram essa batalha para ganhar o porvir. Entre outras
particularidades desse estranho combate, teríamos de mencionar o facto
singular de se referir a acontecimentos que ainda não tiveram lugar, mas
que se preparam no momento presente, antecipando-os. O ser humano, as
sociedades humanas, vivem sempre dependentes do que os espera, positiva
ou negativamente, desfrutam no imediato do que terão, experimentam o
medo diante do que ainda não existe, mobilizam-se pela promessa,
desconfiam ou iludem-se, enfrentam perigos futuros, amedrontam-se diante
do que pode acontecer, tudo formas demasiado humanas de fazer algo com
essa forma de irrealidade que é o futuro.
Se examinarmos a nossa
relação actual com o futuro, a convivência que as democracias ocidentais
mantêm com o porvir, concluiríamos que, apesar de toda a nossa liturgia
da novidade e das diversas retóricas da ilusão, o início do século xxi
destaca-se sobre um fundo de radical desconfiança. Os nossos sentimentos
mais profundos parecem induzir-nos a não esperar quase nada. A
omnipresença do princípio de precaução sugere que não temos com o futuro
uma relação amigável; a chegada de qualquer novidade vem sempre
acompanhada pela sombra do temor e situamos instintivamente o novo na
fronteira do monstruoso; os avanços da técnica suscitam, de forma quase
automática, a sua rejeição; a existência desse medo do futuro explicaria
a recusa sumária da técnica e da ciência; durante muitos anos
cultivou-se um imaginário colectivo em que a química serve
fundamentalmente para envenenar, a ciência para destruir, a comunicação
para enganar, a pedagogia para manipular, e só seremos saudáveis
enquanto não formos ao médico; a inovação está imaginariamente associada
à precariedade, à destruição, à perplexidade e ao controlo; a prevenção
triunfou sobre o risco, nas leis, na ciência e na guerra.
Ao mesmo
tempo, necessitamos de grandes sistemas portadores de esperança
colectiva, de utopias capazes de fazer sonhar ou de objectivos que
ponham em marcha forças comuns. Talvez seja essa a origem da nossa
obsessão com a memória e os diversos modos de relação histérica com o
passado. A sociedade mobiliza-se menos por projectos de futuro que pela
agitação do passado. A esta falta de perspectiva corresponde um tipo de
acção política que prefere não despertar a crítica a proceder a uma
mobilização enérgica em direcção a grandes horizontes ou reformas
ambiciosas, depois de se descobrir que os cidadãos são mais sensíveis
aos riscos do que às oportunidades. Muito menos é hora de grandes
promessas; a mobilização realiza-se através das energias negativas da
indignação, afectação e vitimização.
A nossa energia vital não é
muito esperançada, mas também não temos com o futuro essa relação certa e
dramática do desespero diante da catástrofe ou a inevitável decadência.
A era pós-moderna não tem uma relação épica nem trágica com o futuro.
A
questão que pretendo formular é como podemos construir a esperança
política depois da desilusão, da destruição da ingenuidade ou do
esgotamento da velha ideia de progresso. Para dizê-lo com as palavras do
poeta irlandês Seamus Heaney, «Como fazer com que ‘a esperança e a
história rimem’ novamente?» Vou examinar a questão em quatro fases, que
andam à volta das seguintes perguntas: 1. Como se pode pensar o futuro
depois da crise da ideia de progresso?; 2. Por que se reduziu o tempo a
um presente absoluto?; 3. Pode a política configurar o futuro das nossas
sociedades ou deve limitar-se a registar a impotência colectiva? 4.
Será possível manter, apesar de tudo, uma esperança razoável?
1 – O futuro depois do progresso
É
muito habitual ouvirmos uma caracterização do tempo segundo a qual
estaríamos no final de algo que se perdeu irremediavelmente ou que deve
ser reconstruído, algo que falta assegurar ou completar. Resta-nos muito
pouco de que nos despedirmos: segundo parece, chegou ao fim a história,
as ideologias, a autoridade, a família, a própria política... Entre as
coisas que já não são o que eram, sobressai a ideia de um progresso
linear, necessário, irreversível e contínuo, baseado na segurança de que
nada é insuperável, nem há nada que possa resistir à vontade de
transformação.
Que tipo de futuro produzimos na nossa sociedade
desde que se produziu este esvaziamento da ideia de progresso? O que
morreu, no legado do progressismo, foi fundamentalmente a fé no
progresso automático, a crença de que todos os tipos de progresso se
encadeiam harmoniosamente, de forma a fazer convergir os avanços
técnico-científicos e o progresso moral ou político.
Existem
dinâmicas parciais de progresso, mas sem a unificação geral que um
quadro histórico de inteligibilidade e uma governabilidade articulada
proporcionavam. O progresso sofreu uma refracção e uma fragmentação.
Como prova desta transformação temos uma peculiar disjunção entre o
campo progressista da esquerda e o conservadorismo modernizador. Já não
há progressistas completos nem, tão pouco, conservadores, e a confiança
no progresso vai-se administrando aqui e ali, de forma sectorial e sem
nenhuma pretensão de universalidade. Vai-se desfazendo a aliança
histórica entre os defensores do progresso e os partidários da justiça
social. Os progressistas convertem-se em pessimistas e receiam as
dinâmicas inovadoras no campo da economia e da globalização; os
conservadores tornaram-se os mais convictos partidários de continuar sem
obstáculos a lógica da modernização. Há quem defenda que a ideia de
progresso passou gradualmente da esquerda para a direita, transformada
numa vontade genérica de modernização, eufemismo da velha ideia de
progresso que se conjuga agora com outras expressões: acelerar, avançar,
mexer-se, adaptar-se, reformar...
Que consequências políticas tem a
crise da ideia de progresso? A política não se move actualmente por
projectos que suscitem a esperança colectiva, nem por antecipações do
futuro especialmente prometedoras. Não é por acaso que o desencanto em
relação à política coincide com o momento em que o futuro se converteu
numa categoria problemática. A este respeito Jacques Rancière falava do
fim da política como o fim da promessa: não se trata das limitações de
uma actividade em concreto ou das dificuldades laborais de uma
profissão, mas sim do fim de um certo tempo, do uso da promessa num
sentido radical (ou seja, para além do jogo eleitoral). Tanto o tempo
como a política se secularizaram; abandonam-se as ilusões vinculadas ao
poder enquanto programa de libertação e promessa de felicidade; entrámos
num tempo homogéneo, numa temporalidade sem o obstáculo do futuro, mas
também sem as suas evocações emancipadoras. O desencanto da política
que caracteriza o mundo em que vivemos afecta uma instância à qual, não
há muito tempo, se confiou a tarefa de atribuir às sociedades humanas
um controlo sobre o destino. Actualmente, há um profundo pessimismo
sobre a capacidade humana de dar forma a alguma coisa, muito menos
através da política.
Esta perda de energia antecipatória
manifesta-se no facto de as nossas democracias carecerem de projectos
utópicos, de missões ou concepções de justiça, de horizontes globais; os
grandes visionários foram substituídos por políticos que gerem as
inevitáveis adstringências do presente. E onde melhor se revela esta
redução da esperança é no facto de a política se mobilizar mais pela
rejeição do que pelo projecto, mais pela desconfiança do que pela
adesão. É aquilo que Pierre Rosanvallon denominou «era da política
negativa», onde os que rejeitam não o fazem à maneira dos antigos
rebeldes ou dissidentes, já que as suas atitudes não têm em vista nenhum
horizonte desejável, nenhum programa de acção; limitam-se a expressar
de maneira desordenada que preferem, no momento, arquivar o futuro sem o
condicionar.
Será possível conceber o progresso de outra maneira,
conferir outro significado a esta velha ideia moderna? Para já, convém
precisar que o chamado «fim da história» é o esgotamento da história
concebida como uma ficção linear que caminha para um determinado fim,
mas não o fim da esperança colectiva. Teríamos que pensar e praticar uma
esperança que fosse independente do velho esquema progressista: que
passasse do reino da necessidade e do automatismo ao reino da liberdade e
da vontade. Trata-se de desautomatizar o progresso reconhecendo a sua
multiplicidade e ambiguidade. O facto é que essa descrença face às
grandes narrativas deve-se em parte à nossa concepção do futuro se ter
tornado menos mecanicista e ingénua.
Quero acreditar que perante a
dissolução da ideia de progresso, temos a oportunidade de pensar melhor o
futuro e cultivar uma esperança mais fundamentada. A crise de uma
determinada concepção de progresso não teria obrigatoriamente que
pressupor a crise do progresso em si. Provavelmente, estão criadas as
condições para que aconteça precisamente o contrário: ao desaparecer a
segurança garantida pelo controlo ideológico sobre o progresso, pode
abrir-se caminho a um futuro mais surpreendente e inédito do que
costumamos imaginar, mais aleatório, acidental, imprevisível,
inclusivamente mais arriscado e perigoso. Esta indeterminação permitiria
um novo protagonismo humano face à imagem do futuro irresistível que
dava razões para a sua própria submissão ou desculpas para a
passividade. Perdemos as ilusões consoladoras de uma certa figura da
esperança, aquela que assentava na crença do progresso automático, mas
libertámo-nos igualmente da legitimação dogmática e das constrições
impostas em seu nome, da instrumentalização do porvir.
2 – A Tirania do presente
Uma
das primeiras consequências da crise da ideia de progresso é a
absolutização do presente e de uma falsa mobilidade. Do progresso morreu
o finalismo [1] e sobreviveu a dinâmica. As sociedades combinam a sua
resistência a troco de uma agitação superficial. A utopia do progresso
transformou-se numa utopia técnico-informática, em movimento
desordenado, «neofilia» frenética, agitação anárquica e dissipação de
energia. Essa rotinização do movimento determina o imperativo da
aceleração em todos os domínios, aquilo que Paul Valery denominava
«regime de substituições rápidas». Trata-se de um activismo que se
traduz em exasperação inquieta, em fuga para a frente, até ao sempre
mais da técnica ou da economia num presente global anistórico. [2]
Esta
fatalização do tempo traduz-se na exigência de aumentar a aceleração, a
mobilidade, a velocidade e a flexibilidade. Vemo-lo diariamente na
linguagem das novas «elites ultramóveis transnacionais» (Lasch) que nos
exortam a «mover-nos», a acelerar o próprio movimento, consumir mais,
comunicar com maior rapidez, comercializar de uma maneira absolutamente
rentável. Produziu-se uma transferência semântica que explicaria muitos
desencaixes ideológicos, por assim dizer, da esquerda à direita: onde
havia progresso e revolução, há agora movimento e competitividade. O
adjectivo «revolucionário» passa a fazer parte do vocabulário
transversal da moda, do management, da publicidade e da pós-política
mediática. O fantasma da permanente revolução passeia-se agora como
caricatura neoliberal. Mas, no fundo, o imaginário político actual tem
um discurso prescritivo minimalista, conceptualmente paupérrimo: o
discurso da adaptação ao aparente movimento do mundo, o imperativo de se
mexer com o que se move, sem discussão, nem interrogação ou protesto.
Com
a crise da ideia de progresso, o futuro revela-se problemático e o
presente absolutiza-se. Encontramo-nos num regime de historicidade em
que o presente é dono e senhor absoluto. É a tirania do presente, ou
seja, da actual legislatura, a curto prazo, de consumo, nossa geração...
Praticamos um imperialismo que já não é espacial, mas sim temporal, do
tempo presente, que coloniza tudo. A «sociedade de satisfação imediata»
impõe uma temporalidade de perspectiva curta. Esse «presentismo»
torna-se visível em todas as esferas da cultura, assim como na política,
convertida numa corrida depois da instantaneidade das sondagens, numa
espécie de lógica just in time roubada ao consumo, à publicidade e aos
média.
A primeira consequência da tirania do presente é que o futuro
fica abandonado e ninguém se encarrega dele. A urgência dos prazos faz
com que não nos possamos abrir ao horizonte do não imediato. Estamos
disso impedidos pelo peso todo poderoso do que tem que ser resolvido
hoje mesmo. O futuro distante deixa de ser uma finalidade relevante da
política e da mobilização social, não só pelo descrédito das
planificações ou pela sua perversão totalitária, mas devido também à
urgência dos problemas presentes. O que está demasiado presente impede a
percepção das realidades latentes ou antecipáveis, que são muitas vezes
mais reais do que aquilo que é actualmente representado. Ou será
razoável prestar semelhante atenção às ameaças presentes até ao ponto de
se deixar de perceber os riscos futuros? Poderemos dar-nos ao luxo de
sacrificar projectos de longa duração no altar do curto prazo? O que
será mais real, as mudanças climáticas ou o calor deste Verão? Estaremos
realmente dispostos a aceitar que as possibilidades actuais arruínem as
expectativas do futuro? No fundo, tudo isto se traduz em perguntas
ainda mais incómodas: quem tem mais direitos, nós ou os nossos filhos?
Será justo adoptar uma «preferência temporal pelos que vivem hoje»? Não
seria isto uma versão temporal do privilégio que alguns querem realizar
no espaço? Ambos os casos estabelecem uma cumplicidade do ‘nós’ à custa
de um terceiro: se antes era o de fora, agora é o depois que paga o
preço das nossas prioridades.
Uma das exigências éticas e políticas
fundamentais consiste, precisamente, em ampliar o horizonte temporal. Em
resumo: deixar de considerar o futuro como o chiqueiro do presente,
como o lugar onde se depositam os problemas por resolver para assim
aliviar o presente. Esta ampliação do nosso horizonte temporal encerra
dois desafios fundamentais: a introdução de prazos mais alargados e a
ponderação dos direitos das gerações futuras.
Em primeiro lugar,
enfrentamos a exigência de ir mais além da lógica do curto prazo. A
instantaneidade impede a tomada de decisões coerentes. Quando a
perspectiva é temporalmente estreita corremos o risco de nos submetermos
à «tirania das pequenas decisões» (Kahn), ou seja, de ir somando
decisões que, no final, conduzem a uma situação que não queríamos
inicialmente, algo que é do conhecimento de qualquer pessoa que tenha
examinado como se produz, por exemplo, um congestionamento de tráfego.
Mediante o consumo privado, cada consumidor pode estar a contribuir para
a destruição do meio ambiente, e cada eleitor votante pode estar a
contribuir para a destruição do espaço público, algo que ambos não
desejam e que, além disso, tornaria impossível a satisfação das suas
necessidades. Se tivessem podido antecipar esse resultado e anular ou,
pelo menos, moderar os seus interesses privados mais imediatos, teriam
agido de outra forma.
Quando as decisões são tomadas com uma visão
de curto prazo, sem ter em conta os factores externos negativos e as
implicações a longo prazo, quando os ciclos de decisão são demasiado
curtos, a racionalidade dos agentes é necessariamente míope. Para
compensar este défice de responsabilidade desenvolveram-se procedimentos
democráticos que introduzem considerações a médio e longo prazo (livros
brancos, avaliações comparativas em matéria de educação, controlo de
publicidade e transparência, observatórios, compromissos
supra-legislativos...). Estes e outros instrumentos servem para fomentar
uma responsabilidade que vá mais além dos prazos imediatos.
Em
segundo lugar, estão as novas reflexões acerca da justiça
inter-geracional. As discriminações vinculadas à idade ou à condição
geracional (quando uma geração se impõe a outra ou vive à custa dela)
colocam desafios particulares ao exercício da justiça. A maior parte das
decisões políticas que tomamos têm impacto nas gerações futuras. Por
exemplo, os problemas da segurança social (saúde, pensões,
desequilíbrios demográficos, subsídios de desemprego) precisam de um
enquadramento temporal amplo e de um ponto de vista cognitivo que
considere os possíveis cenários futuros. Será moralmente aceitável
transmitir às gerações futuras os resíduos nucleares, um meio ambiente
degradado, uma considerável dívida pública ou um sistema de pensões
insustentável? Teríamos que passar de uma propriedade «privada»,
geracional, do tempo, a uma colectivização inter-geracional do tempo e,
sobretudo, do tempo futuro.
A questão da responsabilidade face às
gerações futuras deveria estar no centro do que se poderia denominar
«ética do futuro». O pensamento e a acção a longo prazo, comprometidos
com «uma previsão adequada do futuro» (Birnbacher), parecem entrar em
contradição com os objectivos a curto prazo dos indivíduos consumidores
ou da governação determinada pelo jogo das sondagens e pela estratégia
das imagens. Mas trata-se de uma das primeiras exigências quando
pensamos qual o porvir que temos de conceder ao progresso e quem havemos
de considerar como «próximo»: definitivamente, passar de uma
responsabilidade das «relações curtas» (Paul Ricoeur) a uma outra cuja
regra seja «as coisas mais distantes» (Nietzsche), que o próximo não
seja simplesmente aquilo que está mais perto no espaço e no tempo.
3 – A configuração política do futuro
A
política é a tentativa de civilizar o futuro, de impedir a sua
colonização por um passado determinador, o seu monopólio ideológico, o
seu abandono à mera inércia administrativa. A política tem como
objectivo um horizonte comum, no sentido de fazer articular as
expectativas individuais com o progresso colectivo. Desde há algum tempo
que se constata a dificuldade da política em configurar esse futuro, na
medida em que deixa de ser uma actividade que constrói, renova e
transforma a ordem social. Na minha opinião, há três factores que
contribuem para a perda de relevância da política: a privatização da
realização pessoal, o assédio procedente de outras esferas da vida
pública, como a economia, o direito ou a comunicação, que a querem
tornar supérflua e, correlativamente, a própria debilidade da política
na hora de conceber a mudança social.
As sondagens dizem que os
jovens estão imbuídos de «optimismo individual e pessimismo colectivo» e
mostram interesse pela «coisa comum», mas não «de forma colectiva».
Pensam que o futuro é um assunto exclusivamente individual e não algo
que corresponda à política. Aconteceu aquilo que Klaus Offe chamou de
«privatização da utopia»: o futuro privatiza-se, pluraliza-se e
fragmenta-se. Temos uma ideia privada da felicidade, que já não está
associada a projectos colectivos, nem se entende como algo tornado
possível por um contexto social. Concebemos o espaço público como
irrelevante para a nossa felicidade, como mera garantia do privado e não
como lugar de ampliação do privado. No meio de forças impessoais que
procedem da globalização, da burocracia e da tecnologia, numa sociedade
sem política, sem esperança colectiva, incapaz de imaginar e promover um
futuro alternativo comum, o nosso actual destino parece ser o salve-se
quem puder.
Da política apenas se espera protecção para desenvolver
um projecto de realização pessoal. Desprovida de toda a força de
transformação social, a política fica subordinada a uma sociedade
entendida como amálgama de indivíduos privados, consumidores,
accionistas, clientes, cuja única relação com a política é a sua
aparição ocasional como eleitores, através da crítica ou na
interpretação das sondagens.
Ao mesmo tempo, a política é assediada
por outras lógicas que diminuem o seu espaço. A política desvanece-se
perante o poder mediático e financeiro, o poder dos mercados e da
judicialização. A política é débil face à oposição poderosa dos fluxos
financeiros e dos poderes mediáticos; o seu espaço próprio perde-se nos
formatos inéditos da globalização e face às exigências particulares que
propõe os processos de individualização. Trata-se de forças que
pretendem transformar a política numa actividade desnecessária. O mundo
unifica-se no plano económico e mediático, sem que tenhamos conseguido
uma correspondente sincronização política, como aqueles objectivos,
ainda por cumprir, definidos pelas relações multilaterais ou a
governação global. A agilidade e a sincronização dos mercados contrasta
com o analfabetismo político da sociedade mundial.
Mas a principal
ameaça contra a política provém da sua própria debilidade, que
impossibilita essa forma de futuro que a política transforma, reformando
ou planeando alternativas. Impôs-se a ideia de que a complexidade
social não pode ser modificada politicamente. Este pessimismo abrange
até a própria ideia de governo e planificação, obsoleta e face à qual se
impõe um muddling throught, o «ir devastando», ou, no melhor dos casos,
uma improvisação inteligente. Passámos da euforia da planificação ao
pessimismo da governação. A decisão e a iniciativa foram substituídas
pela interactividade. Seja como for, as constelações e as dinâmicas são
mais importantes que as intenções dos actores.
Pode-se sublinhar um
aspecto positivo da crise da governabilidade e entendê-la como uma
oportunidade para transformar a política numa linha mais democrática e
com mais respeito pelo protagonismo da sociedade civil. Porque a
capacidade de configuração da política não se realiza contra os seus
limites, mas sob condições de limitação. Podíamos dizer que essa
resistência das coisas e das sociedades a serem governadas constitui uma
fonte de aprendizagem para a política e uma garantia face às lideranças
incontestáveis. Provavelmente, era tão ilusória a fé no carácter todo
poderoso da política como a crença actual de que é impotente ou
irrelevante. O que se passa é que há outras formas de actuação sobre a
sociedade, diferentes da direcção autoritária.
Suponhamos que os
grandes relatos que construíam e ordenavam a nossa experiência se
esgotavam efectivamente. Isto pode ser algo mais libertador que
limitador, uma vez que as grandes narrações continham também o seu
próprio fatalismo. Talvez se inaugure nesse lugar vazio uma nova
possibilidade. A política não deve eliminar completamente o destino, já
que não é possível imaginar um mundo sem limitações. Mas a própria ideia
de política oferece uma visão diferente do destino, pessoal e
colectivo. A política é uma pequena rebelião contra o preconceito de que
tudo está já decidido e é inalterável.
A política é uma combinação
singular de visão e paixão, de perspectiva e determinação, pela qual não
deixamos de perceber a realidade como ela é, mas que, ao mesmo tempo,
nos projecta para além do que é um mero dado adquirido; é a consciência
dos limites e a vontade de os superar. A política sem visão perde-se na
agitação quotidiana e acabamos por ir parar aonde na realidade não
desejávamos; mas se falta paixão à política, ela é incapaz de fazer
frente à resistência fatal dos factos, aos quais se acomoda
inevitavelmente sem chegar aonde se tinha proposto.
4 – Uma esperança razoável
Tenho
a impressão de que os problemas da política não procedem de esta ter
cedido precipitadamente ao realismo nem de ter renunciado à utopia, como
se costuma dizer, mas de algo que é anterior. Na origem da sua falta de
vigor está a aceitação de uma partilha de território, onde
corresponderia à direita gerir a realidade e a eficiência, enquanto a
esquerda poderia desfrutar do monopólio da irrealidade, movendo-se sem
oposição entre os valores, as utopias e as ilusões. Uns têm realidade
sem esperança e outros esperança sem realidade. É esta cómoda
delimitação do território que se encontra na origem de uma crise geral
da política: aceite a ruptura entre o princípio de prazer e o princípio
de realidade, entre a objectividade e as possibilidades, a direita pode
dedicar-se a modernizar irreflectidamente, sem o receio de que a
esquerda a incomode com a sua utopia genérica e desconcertada. A direita
pode dar-se ao luxo de ter algumas dificuldades com os valores enquanto
a esquerda continua a tê-las com a realidade.
Assim sendo, o
realismo político equivale hoje a constatar a impotência no momento de
configurar o espaço social. E se, no fundo, a política não fosse outra
coisa senão uma discussão sobre o que entendemos por «realidade»? Porque
a realidade não é o factual nem se reduz ao actualmente possível.
Também pertencem à realidade as suas possibilidades e impossibilidades
provisórias, a sua indeterminação e abertura. A realidade da vida
humana, a realidade das sociedades é uma mistura de possibilidades e
impossibilidades que estão em parte abertas e em parte fechadas à acção.
Que tudo seja possível de outra maneira não significa que tudo seja
possível, mas também é certo que os «realistas» costumam ter um conceito
muito estrito da realidade, pouca sensibilidade a outras possibilidades
laterais. Talvez a questão política fundamental não seja tanto a dos
ideais e dos imaginários, mas sim a ideia que se tem do real.
Contra
os administradores oficiais do realismo há que defender que a política
não é mera administração, nem mera adaptação, mas sim configuração,
planeamento dos termos de actuação, adivinhação do futuro. Tem a ver com
o inédito e o insólito, dimensões que não se manifestam noutras
profissões muito honradas, mas contudo alheias às inquietudes que o
excesso de incerteza provoca. O tipo de acção que é a política não opera
unicamente com regras de experiência, com os ensinamentos comodamente
armazenados por meio do conhecido. Quem for capaz de conceber esta
incerteza como oportunidade, verá como a erosão de alguns conceitos
tradicionais torna de novo possível a política como força de inovação e
transformação. É urgente realizar uma redefinição do sentido e dos
objectivos da acção política, a partir da ideia de que nela se conhecem,
isto é, se descobrem, aspectos da realidade e possibilidades de acção
que não podem ser percebidos nas nossas acções rotineiras e nos nossos
debates pré-construídos.
Os humanos seriam outra coisa sem essa
capacidade de «futurizar», de projectar-se até ao futuro e antecipá-lo
em termos de imaginário, expectativa, projecto e determinação. Essa
inquietude que nos faz desejar, esperar e temer é a que nos permite
relacionarmo-nos com o futuro nas suas diversas formas. Se não se educa,
essa antecipação funciona destrutivamente: atrofia-se, converte-nos em
fanáticos, em receosos sem motivo, em demasiado crédulos... A relação
com o futuro terá que ser cultivada, como fazemos com as outras
capacidades humanas. Embora não o enunciemos dessa forma, nem conste de
nenhum programa ou currículo educativo, toda a educação, o trabalho das
instituições, a nossa socialização em geral tem, entre outros, o
objectivo de configurar em cada um de nós uma relação correcta com o
futuro, o que também se pode dizer da sociedade no seu conjunto. Há
sociedades que se relacionam patologicamente com o seu próprio futuro,
enquanto que outras o tratam de uma maneira razoável e benéfica.
A
esperança—esse sentimento ou afecto humano que regula a nossa relação
com o futuro—não é uma ilusão consoladora nem uma resistência obstinada à
aprendizagem com origem na decepção proveitosa. A esperança razoável
pode distinguir-se do optimismo brando que alimenta a ilusão na mesma
medida que se fecha ao conhecimento da realidade.
É por esta razão
que se deturpa radicalmente a esperança quando esta se contrapõe ao
conhecimento, como faz Rorty. O filósofo irónico defende que a renovação
política não pode ser feita a partir de uma descrição de
acontecimentos. Para isso é necessário, diz-nos, descrever o país onde
se vive como aquilo que se espera que apaixonadamente venha a ser, a
lealdade a um país sonhado mais do que àquele em que se acorda todas as
manhãs. Penso, pelo contrário, que essa contraposição é letal e eterniza
a ideia de que conhecer ou descrever bem a realidade é paralisante,
enquanto que toda a força transformadora se concentraria no desejo,
tanto mais mobilizador quanto menos tenha que ver com a realidade. Se
assim fosse, só o poderia esperar quem ignorasse a tragédia da história e
a dureza da realidade. O único que nos salvaria do desespero seria a
fuga até à acção, e o optimista seria um ignorante ou alguém que
suspende voluntariamente o princípio da realidade para não desesperar.
Mas,
como escreveu Adorno, em defesa da boa teoria face à impaciência da
praxis, o activismo não nos cura da «néscia sabedoria da resignação». A
esperança não é ilusão sem conhecimento. Um cínico é alguém que
substituiu a esperança pelo conhecimento, enquanto que um sonhador é
quem substitui o conhecimento pela esperança. Se existe algum motivo
para, apesar de tudo, continuar à espera é porque não estamos condenados
a escolher entre a ingenuidade e a resignação. Evitemos o dilema
ruinoso entre uma esperança sem experiência e um desencanto sem
aspirações, como se não nos restasse outra hipótese senão escolher entre
estar cego face às limitações ou reprimir os nossos melhores desejos.
Neste sentido, poder-se-ia falar de uma esperança democrática, que não é
ingénua nem demasiado confiante, que tem suficiente decepção atrás de
si para não confiar excessivamente nas promessas, mas cuja experiência,
essa experiência, não a impede de aspirar ao melhor.
Notas [1] N. do T.: No original «a-histórico». [2]
N. do T. : Qualquer doutrina filosófica dedicada à investigação das
múltiplas finalidades—e, entre as quais, a finalidade suprema—que
explica a organização e as transformações do universo e dos seres que o
integram; o mesmo que teleologia ou teleologismo.