1. Reprodução do mundo pombalino do pintor alverca

Agosto de 2003

É deveras espantoso que durante a primeira semana de Agosto de 2003, mal fechava os olhos, as pinturas de Alverca me apareciam à frente, longínquas, baças, e logo esvoaçavam para não muito longe como um bando de pombos, não me dando tempo de as agarrar. Todas as noites me apareciam os quadros lunares de Alverca que se escondiam num eclipse de pombos. Crak! Os divertimentos pombalinos de Alverca estilhaçavam-se num pontilhismo esvoaçante de pombos.

Acordava doido a vociferar e a atirar pedras aos pombos mas era bruscamente sossegado pela imagem bondosa do famoso bebedor de cerveja que dizia que matar ou ferir um pombo era um crime de lesa-majestade. Essa mesma pessoa, que gostava de pombos, de praças e de telhados, dizia também que Hasek precisou de se esquecer de quase tudo da Grande Guerra para escrever a sua obra palavrosa transparente, ele dizia que Hasek escrevia debaixo de vidro. Eu sabia, nessa semana, que não estava sob vidro, as obscuras pinturas de Alverca estavam ainda muito próximas, apareciam e fugiam repetidas vezes durante cada noite. Ah! Uma semana é suficiente para esquecer. Basta brincar, brincar à brava. Brincar tem afinidades com o esquecimento, a brincadeira desfaz gestos repetidos, torna-os líquidos. O grande Tostão diz que é a brincadeira que desperta a descoberta e que é importante que as crianças brinquem com a bola para lhes estimular a imaginação. E assim foi, segui o conselho de Tostão e não parei de brincar durante a segunda semana de Agosto do ano de 2003 para esquecer o pintor Alverca. Mas não esqueci os pombos, ia todas as madrugadas para a praça da Figueira, ouvia música e brincava com os pombos. Não cheguei a brincar nos telhados com receio de imitar o famoso bebedor de cerveja que num gag burlesco escorregou e caiu de um telhado quando dava de comer aos pombos. Antes de cair, elevou-se graciosamente nos céus, depois de se transformar em pombo. A título de curiosidade, ouvi muito Lili Boniche, L’Oriental, o velho músico argelino fanfarrão, recentemente redescoberto, com as suas misturas de rumba, de tango, de chanson française e de música árabe-andaluz. Ouvi vezes sem conta a harmónica de I’m a doggy e outros temas de Marvin Pontiac, músico imaginativo e infantil que mistura o Mali com Nova Iorque e que morreu tragicamente atropelado por um autocarro. E também o estranho músico de blues do Delta do Mississipi, Cedell Davies, vitimado por uma poliomielite quando tinha nove anos e que, sentado numa cadeira de rodas, toca a guitarra com uma velha faca de prata como extensão da mão deficiente. Os pombos ainda não tinham ouvido estes músicos e certamente a minha presença foi para eles uma paródia. Ouvi outras coisas estranhas e infantis que por brincadeira não vou contar. Que bela surpresa! A terceira semana de Agosto de 2003 foi uma semana transparente. As pinturas de Alverca viajaram até mim de bicicleta com motor, de mobillete musical, sob um vidro de chuva e vento, cristalinas e fulgurantes. Não consigo esquecer-me da visão da viagem de Abril, muito simpática e obstinada, que percorreu 3.000 quilómetros para conhecer o famoso homem da cerveja e dos pombos, de bicicleta à chuva e ao vento. Não sei quanto tempo demorou Hasek a esquecer a grande guerra, Cedell demorou três anos a repensar a guitarra e a encontrar a singular plasticidade tonal aparentemente desafinada da sua velha faca de cortar manteiga. Numa só semana, uma semana desafinada e prateada de Agosto, descobri a face não transparente do abstracionismo de Jorge Alverca, os seus traços de pombos brancos e de pombos negros preenchendo a tela de vidro sob os céus de Lisboa, uma Lisboa pombalina ainda a preto e branco. E foi exactamente numa alucinação surrealista de pombos, numa brincadeira de telhados, num turbilhão de geometrias pombalinas que se deu a aparição da técnica plástica de Alverca. A imagem alcoólica, em duplicado, em triplicado, em miltiplicado do bebedor de cerveja a escorregar de um telhado, que se metamorfoseia em pombo antes de cair e que viaja sobre um céu de vidro, largando o seu rasto de tinta, apareceu-me com uma tal nitidez que consegui reconstruir mentalmente os padrões de Jorge Alverca. Quadros etílicos na sua simultaneidade, um céu pontilhado de telhados, telhados burlescos por onde deslizam homens escorregadios que se metamorfoseiam em pombos, alguns pretos outros brancos, que esvoaçam ao acaso e que pintam o vidro azul pombalino de Lisboa. Passei o restante Agosto a realizar a tarefa de tentar imitar os seus quadros e a sua técnica. Não percebia nada de pombos mas somente de formigas e da sua espantosa ordem colectiva. Aparentemente, a obra de Alverca na sua singularidade e estranheza apresenta características dos sistemas complexos acentrados: uma desmultiplicação de traços autónomos, uma simultaneidade e paralelismo, uma emergência da forma como resultado das interacções entre esses traços, a miopia e localidade: cada traço aparenta ignorar o destino dos outros traços e o padrão global da obra, e finalmente os traços parecem comunicar não directamente entre si mas através das manchas pintadas – o pioneiro das formigas, Grassé, poderia classificar esta forma de comunicação como sendo um exemplo de estigmergia (comunicação indirecta através da obra). A minha ideia foi de reproduzir artificialmente os padrões plásticos de Alverca, não através de pinturas reais, mas através da ferramenta computacional Starlogo criada por Mitchel Resnick do mit Media Lab, em Boston, que eu conhecia bem e que já tinha utilizado para as minhas experiências de mirmecologia virtual. E à maneira de Gauss, conhecido por esconder os andaimes de todo o seu trabalho intelectual, não descreverei as tentativas falhadas de reprodução dos padrões etílicos de Alverca mas apenas a minha experiência bem sucedida, terminada ao cair do pano desse Agosto não imitável. Criei então uma pequena sociedade de micropintores, os Colombines que apresento a seguir com todos os detalhes técnicos, como se tratasse de um manual.

As simulações de alverca pelos colombines, micropintores virtuais liliputianos.
Os Colombines são micropintores artificiais muito simples e puramente reactivos que vão pintar uma tela virtual, utilizando uma paleta apenas com preto e branco. Distribuo os pintores numa tela vazia e estes vão movimentar-se, largando um rasto de tinta até preencherem completamente a tela. A tela não é um meio passivo, ela tem a capacidade de atrair os pintores. Vou passar à descrição mais pormenorizada da natureza da tela e do comportamento dos Colombines.

A tela virtual.
Cada tela é um espaço bidimensional dinâmico em forma de toro (donut), constituído por células, é no fundo uma espécie de papel quadriculado computacional, enrolado em todas as direcções, que é habitado pelos micropintores, na qual coexistem dois materiais virtuais: a tinta e um sinal químico específico aos Colombines, posso chamar-lhe de químico-a. Limitei a tela a um quadrado com 251 células de cada lado. Inicialmente todas as células estão a cinzento, o cinzento é então a cor de fundo dos quadros. Deveria se azul mas por questões técnicas tivemos de usar o cinzento. As células da malha podem ser pintadas de preto ou de branco. O químico-a tem a propriedade de atrair os pintores, polarizando os percursos e os traços dos Colombines, desempenhando um papel fundamental na emergência dos padrões. A ideia é que as zonas não pintadas tenham maior capacidade de atracção (maior quantidade de químico) e que o odor-a se difunda pela tela.

Na realidade, todas as células têm a capacidade individual de produzir e difundir químico. Cada célula, sendo uma produtora potencial de químico-a, só o produz quando estiver não pintada (cinzento-que-devia-ser-azul). Em relação à difusão, cada célula está constantemente a difundir uma percentagem do seu químico pelas oito células imediatamente vizinhas, independentemente de estar ou não pintada. O químico-a evapora-se a uma taxa constante. Se não se der o fenómeno da evaporação química, as zonas já pintadas demorarão mais tempo a perderem o seu poder de atracção podendo desorientar os pintores ao criar a ilusão que essa célula está ainda por pintar. No fundo, a evaporação aumenta a eficácia dos pintores.

O comportamento de cada uma das células é o seguinte: 1) se estiver não pintada incrementa a quantidade de químico em x unidades, caso contrário conserva o químico-a; 2) difunde pelas oito casas vizinhas uma percentagem do seu químico; 3) retira uma percentagem do seu químico (evaporação). Estes valores de produção, taxa de difusão e taxa de evaporação podem ser modificados pelo simulador.

Os colombines.
Os pintores são individualmente muito simples, não comunicando directamente entre si, não existindo nenhum tipo de organização ou coordenação. Não fazem mais do que navegar na tela virtual, preferindo visitar células com maior quantidade de químico e pintando as células ainda por pintar, deixando rastos de cor atrás deles. Um Colombine tem uma orientação (0–360) e só pode habitar uma célula de cada vez, tendo uma capacidade de percepção muito limitada: apenas a sua própria célula mais as três células imediatamente vizinhas à sua frente. Por outro lado, nunca muda de cor. Nenhum Colombine tem a possibilidade de observar a totalidade da tela, ou de a representar, não tendo, por conseguinte, o estado da tela, visto globalmente, nenhuma influência sobre a sua actividade artística. A pintura influencia-os de forma indirecta através da distribuição de químico na tela. O comportamento de cada pintor é o seguinte: 1) percepciona as três células imediatamente à sua frente e escolhe a que tiver mais químico, mudando-se para a célula escolhida, rodando simultaneamente na direccçaõ dessa célula (-45, zero ou 45 graus caso escolha respectivamente a célula à sua esquerda, em frente ou à sua direita – a rotação positiva corresponde ao sentido horário); 2) se essa célula estiver pintada não faz nada, caso contrário pinta-a com a respectiva cor.

A dinâmica de interacção entre os colombines e a paisagem química.
A tela pode ser vista como uma paisagem química em constante mutação, que coevolui com os pintores, dando-se uma interacção dinâmica entre a distribuição do químico e o comportamento dos pintores. O mundo químico é informação sob as manchas pintadas e o fundo do quadro. Existe uma circularidade: a informação guia os pintores e estes transformam a informação, numa interac­ção auto-catalítica permanente. Os pintores não comunicam entre si directamente mas através de sinais químicos que nadam na tela virtual. Os padrões, as formas a preto e branco, são o produto desta invisível colaboração entre os Colombines e o seu meio ambiente químico.

O simulador.
A evolução de uma produção plástica desenrola-se da seguinte forma. Inicialmente a tela é cinzenta e cada célula tem uma quantidade idêntica de químico. Divido ao meio a população de Colombines: metade será preta e a outra metade será branca. Depois distribuo os pintores ao acaso pela tela, cada um na sua célula. O simulador dará início ao processo numa sequência de iterações desde o espaço vazio até que toda a tela esteja preenchida de preto e branco. Uma iteração desenrola-se a dois tempos: no primeiro, todas as células executam o respectivo comportamento (produção, difusão e evaporação de químico), no segundo passo, todos os Colombines movem-se em paralelo atraídos pelo químico largando os seus rastos a preto ou branco.

Para além de alverca.
Posso colocar centenas ou mesmo milhares de Colombines numa tela e criar padrões que seriam impossíveis para Alverca. Os seus limites humanos impediam-no de controlar a evolução de mais do que algumas dezenas de traços.

As obras plásticas aleatórias dos colombines.
Numa noite etílica de cerveja os Colombines criaram estas quatro obras plásticas cuja semelhança com os divertimentos pombalinos me abstenho de comentar. Não tendo nenhuma ideia sobre a história do aparentemente desconhecido Jorge Alverca, pedi ao meu amigo António, biógrafo ocasional, para investigar a sua vida. O resultado do seu trabalho, o seu esvoaçar pontilhístico está publicado a seguir.


2. Biografia não autorizada de jorge alverca

I – Em criança, Alverca é tímido. Habita-o aquela estranha sensação de pertencer a lugar nenhum. Do bairro burguês onde nasce, inócuo, asséptico e sem graça, não guarda recordações. Para sermos mais exactos, só uma recordação da periferia do bairro foi marcante na vida do jovem Alverca. Foram os cheiros e os odores provenientes de uma tinturaria artesanal que o convocaram. Timidamente a princípio, frequentemente a partir de um tempo já sem corpo, Alverca é compelido obsessiva e repetidamente a partilhar as cores, os odores e a desordem daquele lugar.

Alverca é original porque repetitivo. A pulsão pela repetição e por algum mimetismo está enraízada naquele hábito ancestral de visita ao tintureiro. Este, homem rude, portador de um nariz adunco que, sem ser belo, era um nariz instalador, destilava simpatia. O tintureiro, ao respirar mecanicamente, como quem realiza uma nova infusão, arfava e movia as narinas com um movimento tão singelo que fazia lembrar o blatir dos camelos. Passou a vida a executar o mesmo motivo nos panos crus a que dedicava a sua arte, sempre ao mesmo ritmo, marcado pelo arfar daquela respiração camelídea.

Aos sete anos, Alverca em mais uma visita ao tintureiro, movido pela poética do cheiro, particularmente alguns azotos libertados pelos corantes naturais, pela cor, hipnotizado pela alquimia do gesto do tintureiro, cai, distraidamente, numa cuba.

Mais de um século antes, e sem aparente relação, a invenção do purpurato de amónio pelo Dr. Prot, uma matéria corante de um vermelho púrpura, derivado da urina humana, denominada murexida, permite, após laboriosos processos químicos, o fabrico de derivados e cores alternativas.

Alverca cai numa cuba e ficou verde, pormenor com alguma importância, e não mais se recompôs, amaldiçoando para sempre a invenção do Dr. Prot, por a sua primeira experiência no domínio da cor não ter sido com uma primária.

A formação do jovem Alverca é normal, vulgar até. O seu trajecto em nada difere do de qualquer jovem da sua geração. Aos vinte anos, na mais paroxística das suas experiências cosmopolitas, rumou a Paris. Estudou e discutiu nos cafés e nas tertúlias de Montmartre, tomou conhecimento da revolução cibernética filtrada por uma certa idiossincrasia francesa. Destas experiências resultou, paradoxalmente, um espírito mais próximo dos valores pugnados pelos autores anglo-saxónicos. Alverca detesta as grandes narrativas, indispõe-se com a teleologia e é alérgico a planos quinquenais, resquício, certamente, da sua experiência monocromática com o tintureiro. Adora o momento, a probabilidade quase mínima de o Sol não nascer amanhã, é, no fundo, um profeta do evanescente. Delicia-se com a desordem e os consensos quase sempre lhe provocam flatulência.

Alverca é culto, palaciano e artificioso às vezes, conhece as vanguardas. Fez o tirocínio habitual de alguém que quer acreditar em qualquer coisa, sabendo antecipadamente que qualquer projecto é a afirmação paroxística do nada.

Estudou os anos 10 e 20, interessou-se pelos ‘ismos’, partilhou a obsessão pela mutilação e inversão da perspectiva, construiu, fragmentou, amplificou, desmantelou, espalmou e incorporou o objecto na superfície plana à procura da terceira dimensão; assistiu ao requiem da ‘pintura de cavalete’, promiscuiu-se com a coabitação de espaços nas ‘assemblages’ e, não satisfeito com a terceira, penetrou no universo da transparência, da cronofotografia e dos ‘ready made’, formas fantasmagóricas de agarrar o tempo, a outra dimensão.

Farto de mundo e de objectividade, lamentou, e nisso não estava sozinho, que ‘os realismos figurativos’ não tivessem levado às últimas consequências os seus axiomas, procurou a in-objectividade órfica na cor e desaguou na realidade suprema – a geometria do pensar – e no niilismo da denegação da representação.

Do canibalismo Alverquiano só se conhecem duas pequenas aversões: nunca se impressionou com o futurismo – era alérgico aos excessos de velocidade –, nem com a Pop Art, embora se conheça o hábito, pouco saudável aliás, de se liofilizar com latas de sopa Campbell.

Confessadamente nutre uma certa admiração pelo ‘Urinol/Fountain de Duchamp’, bem visível na forma reiterada e obsessiva como revisita pictoricamente o sobredito objecto na primeira fase da sua obra, normalmente apelidada do truísmo suprematismo linear.

A prática recorrente em Alverca de se fixar em objectos que emanam eflúvios, cheiros e odores entronca numa experiência mais radical dos anos de aprendizagem. Aos quinze anos, exercita-se como qualquer promissor aprendiz na cópia dos motivos e das técnicas dos mestres da história da pintura. Pintava e imitava repetida e obsessivamente, mais uma vez, Manet e o seu pequeno almoço na relva.

Alverca pressentia que aquele quadro, único porque irrepetível, era um local de passagem. À maneira de um qualquer ritual iniciático, com a repetição do gesto, esperava o dia da revelação. Ela surge, de mansinho, passados alguns anos. Em casa de um amigo, homem dado à observação e à especulação, descobre um quadro de Malevitch onde o mesmo motivo é tratado mais a seu gosto. A observação da mesma placidez burguesa, a pincelada pontilhada, a efusividade da cor é perturbada pelo irruptivo aparecimento de um personagem que ‘mija’ fora do círculo de amigos.

O momento é arrebatador. Enquanto alguns intérpretes se dividem na apreciação deste gesto inovador – considerando uns que Malevitch mais não faz do que uma apologia narcísica do seu poder mictórico, forma original, porque fragmentária, de se auto-retratar, e tema recorrente na tradição desde Velasquez; outros consideram que este é o verdadeiro salto hermenêutico de Malevitch: a auto-representação na sua expressão minimal mais não será do que a ausência de representação –, Alverca faz tábua rasa de todas estas lucubrações. O momento tinha chegado. O resto, se é que há resto, foram experiências que sedimentaram e substantivaram esse gesto originário de fixação na cor, nos objectos e ideias que destilam odores.

Toda a produção de Alverca, pictórica e teórica, embora desta nada tenha chegado até nós, foi um constante revisitar destas temáticas. Farto de polémicas sobre o fim da arte, do homem e da história, das aporias a que se tinha chegado com o abstraccionismo, decide-se por um regresso à pintura – um dos muitos regressos em que o século é pródigo –, por uma linguagem vitalista, telúrica, desordenada ao nível da expressão, onde o corpo, a vivificação do gesto pela sua casualidade, a tensão, a força física, o cinetismo, emergem brutalmente desse todo orgânico que é o fazer obra obrando, fazendo assim lembrar algum informalismo dos anos 50 de proveniência americana.


II. Alverca aparece inexplicavelmente morto à porta de uma loja de tintas, numa esquina da cidade de Lisboa, junto a uma tampa de esgoto que explodiu por excesso de concentração de gás metano, uma ocorrência normal naquela época. Estava indecorosamente vestido, contra o que era seu hábito, e trazia no bolso das calças uma gravata verde e um recorte de jornal.

Sobre estes factos construiram-se várias interpretações:

Alguns biógrafos, na linha mais realista, consideram que Alverca foi vítima da explosão, tese difícil de suportar por não ter sido encontrada qualquer marca visível no seu corpo.

Outros, mais neo-realistas, pensam que o autor foi vítima do sopro da explosão quando ocasionalmente passava no local para comprar o jornal. É verdade que havia um quiosque ali mesmo ao lado e é ainda verdade que Alverca comprava todos os dias o jornal, uma forma curiosa, irónica e quase hegeliana de passar diariamente uma certidão de óbito ao fim da história. Àquela hora o jornaleiro estava fechado, o que nada abona a favor desta tese.

Outros ainda, mais fantasiosos, na esteira de Pessoa e de uma qualquer Ofélia, consideram que a morte de Alverca foi um ‘happening’. Saturado de amor não correspondido, dando ao evento uma conotação ‘etno’, influenciado por uma tradição swalli, e na impossibilidade de cuspir o baixo ventre da amada, suicidou-se junto de lugares que exalam cheiros, alguns deles abjectos, mostrando assim o seu profundo desprezo. Esta hipótese, embora criativa e demostrando ainda a mundividência do autor, está indelevelmente marcada por um facto – não se conhece nenhuma ligação amorosa de Alverca.

Finalmente, alguns biógrafos pensam que Alverca foi vítima de uma morte onírica. Na parte terminal da carreira, sofrendo de obstipação criativa, tinha-se virado para novas linguagens. Num certo regresso às origens, revisitando algumas práticas do primeiro cubismo, andava particularmente excitado com uma tinta de esmalte industrial, recém chegada ao mercado, chamada Lexoline, presume-se que para a realização de trabalhos de cariz efémero. Por essa altura sonhava frequentemente com a infância, numa nostalgia mal disfarçada, com o tintureiro e os cheiros da tinturaria. Há muito que compreendera que a sua linguagem estava desenhada desde aquele tempo. Agora, num certo impasse e à procura de um novo impulso criativo, era visto frequentemente a vaguear de madrugada pelo porto de Lisboa, junto às margens semi-inundadas do rio, etapa propedêutica às viagens da periferia – matadouros, lixeiras e bairros da lata.

Os que sustentam a tese da morte onírica, apontam duas possibilidades:

Interrogam-se sobre se a Hipótese, que Alverca bem conhecia, de que o sonho é a realização de um desejo, teria compelido o autor para novas e repetidas inalações, que se viriam a revelar fatais, naquele espaço de mais fácil acesso na urbe? Seria a Hipótese capaz de tal crueldade? Ou teria sido antes compelido por um corolário decorrente da Hipótese? – Não se conhecem sinais de sonambulismo em Alverca.

Teria sido o sonho, não a Hipótese, que matou Alverca? Não é inverosímil. O sonho é verbo e, como poderia ter dito Goethe, o verbo é quase sempre acção.

António Cadima.

P.S. – O recorte do jornal encontrado no bolso de Alverca, em rigor um título, tinha a seguinte inscrição: ‘No fundo, eu sou um respirador.’ Mais uma vez, o incidente é motivo de disputas hermenêuticas. Para abreviar razões, e colocando de parte as hipóteses realistas, os que sustentam o suicídio de Alverca têm aqui um bom motivo para acreditar num ‘happening’. Os que acham que Alverca foi vítima do seu poder onírico também. Estes, sustentam a sua tese num notável anacronismo – a frase é de M. Duchamp, foi a resposta à pergunta ‘você considera-se um artista’?, e foi dada a Brian O’ Doherty numa visita ao ‘University Medical Center of New York’ a 4 de Abril de 1966. Alverca morre em Janeiro do mesmo ano.


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